versão 0.73.2
Texto de Apresentação:
Estes retalhos são constituídos por trechos das entrevistas, povoados por histórias modais com um valor intrínseco único e próprio, já pelo seu significado a um tempo informativo e formativo, já por relatar de vivências e experiências únicas, episódios críticos, caricatos e inesperados ou, simplesmente, por nos fazer imergir, de modo sensível e testemunhal, nas inúmeras facetas da profissão de professor/a.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Abel-1 |
pof | entrevista_Abel |
keys | Alfabetização // Educação de adultos // Ler e escrever |
nvivo | Políticas educativas: Educação de adultos // incidentes críticos |
Estive quatro anos na Educação de Adultos. Uma experiência giríssima, com pessoas com 70 anos de idade. Um dos senhores que foi meu aluno - essa eu tenho que lhe contar. Um dos senhores que foi meu aluno, era pai e sogro de dois colegas que estavam na escola onde eu tinha o curso. O senhor nem o nome dele sabia assinar; eu conhecia-o desde miúdo.
Ele chamava-me menino. Eu disse: “Então Sr. E., como é que é?”. Ele diz assim: “Eu sei o que é que quero. Quando conseguir fazer aquilo que eu quero, vou-me embora. Fique claro, eu não vou fazer exame. Eu quero uma coisa, mas não lhe vou dizer o que é”. Eu pensei: “Este homem vem para aqui aprender a assinar e a seguir vai-se embora”.
Eu explicava-lhe uma coisa e ele aprendia - ficava revoltado era com os mais novos que aprendiam mais devagar. Um dia chega-se ao pé de mim e diz-me assim: “Tenho aqui uma carta para o meu filho” - que é meu colega e que estava na América. “Tenho aqui uma carta para o meu filho, está proibido de corrigir os erros, só tem é que ler e ver se percebeu”. Eu li a carta. Era um português assim um bocado estranho, mas percebia-se o contexto da carta - isso passado quase um ano de andar lá.
Passado uns tempos chegou ao pé de mim e disse-me: “Venho aqui para lhe dar um abraço, que é o meu último dia de aulas”. Perguntei porquê. “Porque o meu filho escreveu uma carta e eu já o entendi. Ninguém mais, ninguém mais lê os segredos que eu tenho para o meu filho”.
O filho, cada vez que vem cá da América, faz o favor de vir à minha casa. Bate à porta e diz que me veio dar um abraço, dá o abraço e vai-se embora. Esta foi na Educação de Adultos.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Abel-2 |
pof | entrevista_Abel |
tempoh | Anos 80 do séc.XX |
keys | Menor reconhecimento profissional dos professores do 1º CEB |
nvivo | Obstáculos à identidade profissional |
quando estávamos a lançar as notas tínhamos que ir à secretaria pedir por favor à senhora da secretaria que nos imprimisse as fichas informativas para os pais e as pautas. Estávamos quatro ou cinco colegas e chega uma colega do segundo ciclo. A senhora da secretaria levanta-se e sai do grupo onde estava connosco. Ela vai e diz: “Senhora Doutora, é para imprimir as fichas? Eu vou já imprimir”. Bem, foi muito mau, muito mau. Foi na altura em que começaram a aparecer os mestrados e a única pessoa naquele agrupamento que tinha mestrado era uma das colegas que estava lá no nosso grupo. Eu disse: “Desculpe, mas não vai imprimir nada a ninguém, porque a senhora está-nos a tratar pelo nome e muito bem e muito bem. O meu nome é Abel, quando o meu pai me batizou não foi professor. Professor é uma profissão. Agora não vá chamar senhora doutora e trata estes abaixo de cultura geral. Portanto, a partir deste momento vai chamar doutor a toda a gente. E, a seguir, vai imprimir as nossas fichas e depois imprime as outras”.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Carla-1 |
pof | entrevista_Carla |
keys | Ramalho Eanes // escolas // pessoas // colocações // memórias pessoais comunidade // curiosidade |
nvivo | outros |
geo | Interior; região Centro |
Concorria-se todos os anos. No segundo ano, consegui ficar em Castelo Branco, cidade. Tinha uma turma de quarto ano, com uns 27 alunos, se não estou em erro. Uma curiosidade. Eu fiquei com uma turma que tinha uma irmã do Ramalho Eanes. Acabei por ir conhecer a casa de Ramalho Eanes. Ainda conheci a sua mãe. Uma senhora da aldeia, de lenço na cabeça, de roupa escura, como era tradição nas aldeias. Foi assim uma coisa interessante. Foram simpáticos. Das tais recordações que ficam. Ando com vontade de voltar lá à escola. Este ano fui visitar algumas escolas onde estive.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Carla-2 |
pof | entrevista_Carla |
keys | A punição escolar // memórias pessoais da escola |
nvivo | Incidentes críticos |
Eu, pessoalmente não tenho más recordações da minha escola primária. Levei algumas palmadas, às vezes estava distraída. Eu lembro-me de uma coisa que me marcou, que guardo com muita ternura. Quando dávamos mais de três erros, levávamos uma reguada. Uma vez pousei a mão na esquina da mesa da professora e ela disse - porque é boa gente: “Rapariga, levanta a mão senão aleijo-te!”. Se fossem outras podiam não ter feito aquilo. Tenho de reconhecer que a professora foi fantástica. Ela deu-me uma palmada porque era regra, mas não era para aleijar. A única coisa menos boa da minha escola primária foi um dia, em que eu estava no terceiro ano, e a professora [bateu-me]. Na altura, os anéis de noivado tinham assim umas estrelinhas, e nesse dia a professora já não estava bem disposta, mas ela teve razão em bater-me. Ela tinha mandado copiar uma coisa do quadro. Eu fiz de conta que tinha copiado e não tinha. Ela teve razão. Ela deu-me umas belas lambadas. Quando eu saí da escola, uma tia minha que morava lá perto perguntou-me: “Os garotos bateram-te?”. Eu disse: “Não, foi a professora”. Depois, em casa, o meu pai não achou piada. Ele já era moderno. Antigamente, não era como agora, mas o meu pai era tão moderno que foi à escola. Não foi gritar com a professora, não foi fazer chinfrim, mas foi falar com ela e disse: “Professora, se a garota não puder passar, não a passe, mas não quero que a trate assim”. O meu marido, por exemplo, fala-me de braços e cabeças partidos. É completamente diferente. Na minha escola não me lembro dessas coisas, graças a Deus.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Carla-3 |
pof | entrevista_Carla |
keys | sobreviver na escola |
nvivo | incidentes críticos |
Quando estive em V., estive lá um ano. Eu tinha lá um menino com 11 anos, forte, mais alto do que eu - sou pequenita. Desculpe a expressão, ele apanhava de uns ‘merdichas’. Os outros eram muito mais pequeninos do que ele e ele apanhava dos outros, a toda a hora, a toda a hora. A certa altura, a atitude que eu tomei foi: “Tu não te podes deixar bater! Se eles te baterem, tu bates também! Se eles te podem bater tu também podes!”. Não foi logo que eu consegui a mudança. Precisei de dizer isto mais de uma vez. Eu percebi que quanto mais a gente se baixa, pior. Se a pessoa se defende, os outros guardam-lhe respeito. No fim do ano, um dos tais que costumava picar dizia: “Professora, ele agora já se defende.”.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Carla-4 |
pof | entrevista_Carla |
keys | pepéis do professor // auxílio em caso de necessidade // família |
nvivo | incidentes críticos |
Já me aconteceu, uma vez, uma menina fazer xixi na sala. Ficou muito aflita. Eu tranquilizei-a. Ela é daquelas que eu até, às vezes, ralho com ela porque não faz as coisas com cuidado, não é muito aprumada. Mas o que é certo é que na hora da necessidade, na hora da aflição, estamos lá para ajudar. Se eles não têm lá a mãe e não tem lá o pai, nós somos a mãe e o pai. Assim de histórias, são estas…
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Carmina-1 |
pof | entrevista_Carmina |
tempoh | 2020 |
keys | Aprender ler a distância |
nvivo | Fatores de mudança |
Alias, em 2020, [na sequência da pandemia] COVID-19 em que fomos todos para casa, eu estava com uma turma - turma covid - no primeiro ano e o primeiro ano é fundamental. Todos os anos são fundamentais, mas o primeiro ano, a aprendizagem da leitura e da escrita… no terceiro período, nós viemos para casa e tivemos que nos adaptar. Isto foi uma viragem. Acho que não estou a falar só por mim, estou a falar pela minha escola e os professores. Soube-se dar a volta muito bem, mas foi extremamente trabalhoso. Antes, tivemos aquele período de adaptação e eu lembro-me de dizer assim: “Mas como é que eu vou fazer?”. Eles ainda estavam num processo, no primeiro ano, ainda não estavam a fazer uma leitura independente. Estavam no processo de aprendizagem da leitura e da escrita, estavam muito dependentes dos pais ou de um irmão mais velho. Muitos deles não tinham tecnologias. “Como é que eu vou fazer disto algo atractivo?”. Pedi ao meu marido - também é professor mas de Educação Física no secundário - para me gravar as canções por causa das letras. Eu estava a ensinar através da canção. O grafismo, que é importantíssimo, o saber desenhar a letra ou um número não é de qualquer maneira.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Carmina-2 |
pof | entrevista_Carmina |
keys | cansaço profissional // whatsApp |
nvivo | sentimento sobre a profissão |
Extremamente cansativo, extremamente cansativo, extremamente cansativo. A pessoa não parava. Alguns trabalhos que eles faziam, muitas vezes enviavam por whatsapp, muitas vezes não se via. Depois isto, depois aquilo, corrige isso, corrige aquilo. No primeiro ano, eles tinham sempre de ter ali o apoio dos pais. Era constantemente… não havia… foi extremamente cansativo. Se há cinco anos [atrás] me tivessem dito: “Olha, vai acontecer isto e isto!”
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Clara-1 |
pof | entrevista_Clara |
keys | festa // procissão // envolvimento com a comunidade |
Entretanto, para me integrar na comunidade houve uma festa em R. P. e nós, na escola, fizemos o andor para ir no dia da procissão. Eu devo dizer que flores eu sabia fazer muito bem, mas houve muita gente a aprender a fazer flores com os meninos. Agora lá as varas do andor, aquelas que vão assim… algumas já iam a desabar. Eu fui lá, depois, ao domingo… Saiu o andor da escola, a música foi buscar o andor à escola e foi muito engraçado. Eu acho que a população gostou muito disso. Acho que a população gostou muito de mim. Eu devo dizer que todos me queriam dar dinheiro no fim. Todos me queriam obsequiar com dinheiro. Aquilo chocou-me imenso porque a população era pobre e eles ainda me queriam dar dinheiro. Eu disse “Não, eu ganho o meu ordenado, eu recuso-me a receber o vosso dinheiro. Agradeço muito, muito obrigada, mas eu não quero.” Então, no fim, eu trouxe batatas, trouxe sei lá o quê… Que as pessoas me deram dos produtos e que eu agradecia, obviamente. Para mim era um excesso e eu depois distribuía, obviamente, pelos amigos… Até um bacalhau me ofereceram (risos). Mas dinheiro eu não aceitei. Eu julgo que eles estariam habituados a dar dinheiro, mas eu recusei-me. Um sítio onde as crianças ainda apareciam na escola descalças e que se aqueciam com umas brasas que traziam numa lata a arder, umas brasas incandescentes que traziam numa lata pendurada com um arame para se irem aquecendo. Eu recusava-me a aceitar um tostão que fosse e eu tinha o meu ordenado. Eu era paga. Fui paga por aquele esforço. Eu nunca, de forma nenhuma, poderia aceitar aquilo. Mas gostei, gostei muito de estar em R. P. e, de facto, fizemos esse andor que eu ainda me recordo. Tenho pena de não ter uma fotografia dele… Depois foi leiloado. O pai de um aluno foi leiloar os produtos que havia no andor e foi engraçado, foi divertido. Eu gostei. Gosto de fazer assim coisas…
ciclo | 1º Ciclo |
id | Clara-2 |
pof | entrevista_Clara |
keys | José Barata Moura // área escola // natureza // área aberta |
Olhe, para fazer uma ideia do que foi a minha geração no ensino/aprendizagem, eu dou só como exemplo que eu era professora na escola da Ortigosa e veio a aldeia perto, ao Souto da Carpalhosa, veio lá cantar o José…aquele que cantava a “Joana come a papa” e essas cantigas infantis… Não era amor que ele se chamava, era… Olhe, não me lembro. Que vergonha não me lembrar! Mas nós fomos a pé com os alunos da Ortigosa ao Souto da Carpalhosa. Portanto, se quer mais área aberta do que isto… Nós fomos a pé. E então, mais engraçado, é que os alunos que conheciam aquilo, levaram-nos pelo meio dos terrenos e depois, chegámos a uma altura em que tivemos de passar o ribeiro e nem eu nem a minha colega íamos preparadas (risos) para atravessar um curso de água. Então, o garoto que tinha os pés maiores emprestou-nos os botins. Agora imagine nós as duas em bicos de pés dentro dos botins do garoto a atravessar a vala. A Área Aberta, a colaboração entre os professores, os projetos da escola, não aparecem quando nasce a legislação. Eu acho que a legislação veio dar resposta àquilo, à prática que já se tinha. Eu fui professora, como lhe disse, no Magistério Primário e nós todos os anos fazíamos uns projetos interessantíssimos. Lembro-me de um (e eu estava sempre metida até à ponta dos cabelos nessas coisas) (risos)…fizemos um projeto de Área Escola com ateliês em que nos deslocávamos à cidade e, repare, isto implica meios de transporte! Envolveu a PSP e a rodoviária. Nós trouxemos à cidade, os diferentes ateliers que as professoras estavam a organizar e trouxemos as crianças das aldeias próximas. Eu lembro, por exemplo, do de culinária que a colega disse assim: “Tenho muita pena, mas eu vou fazer lombo. Farta de comer mal está esta gente!” (Risos). Ela com as crianças fazia lá lombo com a receita que ela tinha e todos comiam um bocadinho do lombo. Tivemos um atelier de madeiras que também foi engraçadíssimo. Havia obras na cidade e da escola do Magistério Primário via-se uma grua enorme então, as crianças foram construindo essa grua em madeira com um professor de filosofia que era professor na escola do Magistério Primário. Depois, mais tarde, a Câmara Municipal de Leiria organizou um projeto a que chamou “Leiriescola”. Portanto, e veja isto é tudo anterior… E fez precisamente isso dos ateliers eu também estive a ajudar a estruturar a forma de transportar as crianças. Nós chegámos sair da escola do Magistério Primário e ir a uma escola piloto que houve em Penafiel e que tinha muita fama. Então organizamos o passeio e lá fomos todos em excursão. Só não levamos o “palhinhas”, não é? (risos). Lá fomos todos em excursão a Penafiel. É aquilo que eu disse, nós concluímos que nós, não sendo um projeto piloto em área aberta, nós já estávamos a trabalhar há muito tempo em área aberta e, de forma imodesta, reconhecemos que até estávamos a fazer melhor, pronto. Isto é verdade! Podem achar que é um ego exacerbado, mas é verdade. Não era só eu. Era eu e todas as outras colegas.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Clara-3 |
pof | entrevista_Clara |
tempoh | 1995 |
Em 95 foi o ano da tolerância, em que se festejou a tolerância e o nosso projeto foi sobre os planetas. Nós éramos um sistema solar (isto na minha escola, na escola B de Leiria), éramos um sistema solar e cada turma era um planeta e tinha de inventar modos de viver de quem existisse nesse planeta. Depois fizemos uma mostra pela cidade, um desfile com os diferentes planetas e fizemos um espetáculo no teatro José Lúcio da Silva em que cada planeta, cada turma, exibia aquilo que tinha pesquisado e que tinha inventado. Fizemos também um projeto sobre as flores que foi interessantíssimo. Nós aprendemos a fazer flores, fomos pedir a pessoas que sabíamos que sabiam fazer flores para nos ensinarem. À minha turma calharam os Narcisos. Eu nunca tinha feito Narciso em papel. Acho uma flor linda! Lá foi uma senhora que nos ensinou a fazer os narcisos que não tinha nada a ver com escola, nem netos tinha na escola. Isto aqui dos que me lembro rapidamente… Fizemos outro sobre as tradições. Houve uma senhora que foi à escola a ensinar a fazer morcelas e depois fizemos as danças para amostra final. Eu lembro-me de ter feito com as minhas crianças as saias das raparigas em papel plissado, aquele papel que é enrugadinho… Os aventais eram guardanapos dos bolos E fizemos assim umas coisas que até resultaram muito bem e ficaram engraçadas. Portanto… Mas isto antes da pedagogia do projeto já nós trabalhávamos em projeto.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Clara-4 |
pof | entrevista_Clara |
tempoh | antes do 25 de Abril |
keys | vestuário |
Por exemplo, em relação ao peso do Estado antes do 25 de Abril, nós contornávamos. Eu lembro-me que a coisa mais ridícula que vi nesse tempo era o facto de nós só podermos usar calças compridas no horário de inverno (isto é uma coisa que já ninguém se lembra já ninguém se lembra e porquê? Porque nós utilizávamos calças na mesma, mas havia uma lei. Nós só podíamos utilizar calças a partir do horário de verão que começava em fins de março. Mas a verdade é que quem usava calças, usava calças o ano inteiro e sempre que lhe apetecia. Mas havia leis absolutamente tolas.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Clara-5 |
pof | entrevista_Clara |
Por exemplo uma experiência aliciante para mim que eu já referi foi o ensino de adultos. Eu, quando cheguei à sala, perante aquela turma heterogénea tanto em idades como em conhecimentos que eu nem pensava que existisse (isto tudo descobertas que eu fui fazendo): se eu fizesse uma pergunta eles diziam de imediato “Isso é demasiada areia para a minha camioneta”. Até que um dia eu, com má cara disse: “Meus senhores, se os senhores soubessem aquilo que eu sei, eu não precisava de estar aqui. E os senhores também sabem coisas que eu não sei. Portanto, os senhores vão me ensinar a mim aquilo que eu não sei e eu vou ensinar aquilo que os senhores não sabem”. Descobri que o mais importante a ensinar aos adultos era cidadania. Era que eles descobrissem que eram seres com direitos. Que tinham obrigações, mas que também tinham alguns direitos. Então, o mais interessante disto, por falar em entusiasmo, é que já no fim do ano letivo uma senhora redigiu um texto que falava sobre batatas. E eu, quando li o texto com a senhora até ia para sugerir algumas alterações no português. Nem sequer era na história das batatas, nem como se plantavam batatas. E a senhora disse-me assim: “Desculpe, professora, mas a senhora sabe de redações, mas quem sabe de batatas sou eu!” (Risos) e eu já nem a emendei e disse: “Tem muita razão”.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Clotilde-1 |
pof | entrevista_Clotilde |
keys | Movimento da Escola Moderna |
nvivo | Métodos de ensino: MEM |
Tenho, mas assim, particularmente, agora dizer uma… Felizmente são muitas. Mas também, porque quando se fala dos alunos e das famílias, tenho sempre algum cuidado para não ter um preferido. Mas tenho várias, várias, várias situações que me que foram muito gratas. E colegas, lamento dizer, mas assim as melhores situações são sempre com colegas ligadas ao Movimento da Escola (risos). Com pais e com crianças tenho coisas muito boas e às vezes, aqui há a uns anos encontrei - de vez em quando encontramo-nos, não tantas vezes quanto isso, agora encontramo-nos mais vezes no Facebook - , mas chegámos a fazer assim jantares com miúdos já mais velhinhos, não é? Em que vai a velhota e nos encontrámos. E há uma situação que eu lhe quero contar que foi particularmente engraçada e esta posso contar. Estava a trabalhar na sede do agrupamento, na escola de primeiro ciclo e à saída encontrei uma miúda que estava com a mãe. Uma miúda que tinha sido minha aluna, ela tinha para aí uns 17 anos já. Tinha sido minha aluna até aos dez. E estava ali com a mãe que trabalhava num ATL e que vinha buscar miúdos. E eu vi primeiro a mãe e falei com ela, e ela “olhe está ali a Daniela”. E depois ficamos ali um bocadinho à conversa e às tantas a miúda sai-se com isto “Ai professora, que saudades que eu tenho daqueles conselhos que nós fazíamos e que falávamos das coisas e que depois a professora me fazia entender que ‘tu aqui já estás a evoluir mas precisas de fazer isto e se calhar se fizeres isto aqui’”. Olhe, derramei-me a chorar! Porque eu, quer dizer, nunca tinha percebido a importância destes…quer dizer, a gente sabe que é importante, mas senti que, passado uns sete ou oito anos, a importância que aquilo tinha tido, o que aquela menina refletiu para me dizer aquilo. Como é que ela se lembrava daquilo? E especialmente falar do conselho de cooperação educativa que era uma coisa que prezo. A gente sabe que essas coisas são importantes, mas quando é dita desta forma, a força que aquilo teve.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Filipa-1 |
pof | entrevista_Filipa |
As condições não eram muito boas…o aquecimento era a lenha, o edifício era um edifício antigo, claro, no meio da serra, e os miúdos havia miúdos que faziam 4 quilómetros.
Entrevistadora: A pé?
Professora: A pé, sim, senhora, com os pais. E então, antes de saírem de casa tomavam aguardente, que era para aguentarem o frio. Faziam esse percurso com os pais. Eu tinha o primeiro ano, lembro-me que tinha o 1º ano, de miúdos que só conheciam a realidade da sua localidade, miúdos com muitas vivências ligadas ao ambiente, ao cuidado dos animais…eram as suas vivências. E eram estas as condições.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Filipa-2 |
pof | entrevista_Filipa |
Eu fui colocada no Marco de Canaveses e, claro, não ia ficar lá na serra porque não havia alojamento. E então fiquei com outra colega – era assim: eu fiquei alojada no Marco de Canaveses com essas duas colegas que foram colocadas comigo, só que eu não podia ir de boleia com elas, porque o caminho era diferente. Então como é que eu fazia? Isto é tudo muito complicado. Havia uma colega que trabalhava no centro da freguesia. E ela, então, chegava ao comboio e apanhava um táxi. O táxi apanhava-me a mim e deixava-nos, a ambas, no centro da freguesia. Depois eu ia de boleia com um colega que não trabalhava no meu edifício, mas trabalhava no edifício com as outras duas colegas, que era o nosso diretor, agora lembro-me. Depois as minhas colegas ficaram com esse colega num edifício e eu fiquei sozinha no outro. E então, quando chegava ao centro da freguesia, ia de boleia com ele para a escola.
Entrevistadora: Todos os dias fazia esse percurso de um lado para o outro?
Professora: Todos os dias, sim, sim. Eu depois ia lá por uns caminhos para o edifício dele. Era assim.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-1 |
pof | entrevista_Gabriela |
tempoh | 2013 |
keys | Contextualização curricular: participação dos pais na escola |
nvivo | Teorias do ensinar |
geo | Interior Norte |
Pronto, os pais ficavam contentes, gostavam! E cada um escrevia aquilo que achava do primeiro ano. Achei graça porque logo esta primeira miúda, que está aqui, ela entrou ano passado em Medicina. Era uma miúda muito engraçada e, olhe posso ler aqui um bocadinho de poesia que ela fez, se não se importa. “Era uma vez uma menina chamada A.C. que no dia 1 de setembro entrou para a escola e está a iniciar uma grande aventura. Mas a professora Gabriela apareceu simpática e querida para nos receber e ensinar desde o primeiro momento que estávamos ali, para aprender a ler, a escrever e a fazer contas. Para trabalhar muito e aprender a ser boas pessoas, bem formadas, para crescermos com a sua amizade e a de todos os colegas de turma”. Achei engraçado, eu até tinha sublinhado! Aqui ela também descreve um bocadinho da sala dela: “à nossa sala, foram os nossos pais contar histórias”. Porque num ano iam sempre os pais contar histórias para os filhos, um pai por mês, portanto eles escolhiam a história que queriam, ou anedotas ou lengalengas e depois os pais exploravam. E então ela diz “à nossa sala foram os pais contar histórias, ensinar-nos funções de algumas plantas ou ervas” - que eram as ervas da nossa região - , “contar-nos as suas experiências”. Porque depois, no quarto ano, fizemos um projeto que se chamava “A escola Curiosa”. Então eu falei com os pais, fizemos uma reunião, e dissemos que gostávamos de ir ao trabalho deles. Uma era professora e íamos à sala de aula ver como é que a mãe dessa menina dava as aulas. Outra era farmacêutica e fomos à farmácia ver como é que ela trabalhava com os medicamentos, como é que atendia os clientes. Pronto, fomos a uma oficina, para ver como é que o pai de um outro trabalhava na oficina. Pronto. E demos o título de “escola curiosa”, portanto, éramos curiosos, queríamos saber o que é que estavam a fazer nos outros lados. Na escola sabíamos nós. E fomos fazer assim, então a miúda também diz aqui: “na nossa sala foram os pais contar histórias. Durante este ano também houve viagens de estudo a muitos sítios, muitos lugares e aprendemos muito com eles, a nossa sala estava toda enfeitada de desenhos, de cores e de livros. A nossa sala é alegre e acolhedora e também estava muito limpinha, é por isso que todos nos sentimos ali muito bem e gostávamos. Para mim era a minha segunda casa e todos os meus colegas são uma espécie de irmãos. Todos juntos somos uma família grande”. Pronto, esta miúda tinha isto. No entanto, havia outros, mas quase todos gostavam. Pronto, este era um dos livros que fazíamos sempre que acabava o ciclo.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-2 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | família // profissão docente |
nvivo | outros |
geo | Interior Norte |
Por sermos muitos professores, se calhar aqui em 2000, 2002, há sete professores aqui no Agrupamento - sete irmãos! - e houve uma mãe de um aluno meu que é dentista - isto é um aparte para eu não me esquecer - ela é dentista, está aqui em Trancoso, e ela foi ter comigo porque tinha uma prima na SIC e perguntou se nós, pelo facto de sermos uma família tão grande de professores, se queríamos ser entrevistados, porque não haveria em muitos concelhos tantas crianças a serem ensinadas por familiares (risos). E depois eu disse “não me sinto capaz de falar para a televisão”, “mas eu digo à prima para vir cá, porque são casos raros, muito particulares e deixe que isto aconteça!”. E eu disse, “olhe, eu agradeço-lhe imenso lembrar-se de nós, mas eu acho que não tenho, portanto, capacidades para estar a falar diretamente”, pronto, a gente estava um bocadinho preocupado. Mas pronto, isto é só porque naquela altura o agrupamento tinha sete elementos da família. Todos da mesma família aqui a trabalhar no concelho, de maneira que eram muitos alunos ensinados pela mesma família.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-3 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | colocação // dificuldades // início da profissão // relato de vivências // condições de trabalho |
nvivo | perceções sobre a profissão // Primeiros 5 anos de trabalho |
geo | Leiria, zona rural |
Mas isto agora é pelo facto de me perguntar quando comecei a trabalhar, pronto, aquela altura para mim foi difícil, muito difícil, porque acabei o curso, tinha de concorrer, aqui na zona da Guarda não havia colocação para professores novos, estava tudo mais ou menos cheio e portanto eu concorri para Leiria porque era naquela altura o distrito que podia receber mais professores e então muita gente aqui da Guarda concorreu para Leiria e para outros distritos lá mais do centro. Então eu concorri para Leiria e fiquei colocada! Portanto o primeiro ano que trabalhei foi numa aldeia na Serra dos Candeeiros, portanto era perto, mas ao mesmo tempo era longe porque a gente não tinha transportes, não tínhamos carro, não tínhamos nada. A gente ficava isolada lá na aldeia. Mas esse dia que eu fui escolher a escola, portanto, não sei se era o diretor se era o delegado escolar que convocava para dizer que a gente ficava colocada no distrito, depois o distrito podia ser longe, podia ser dentro de uma cidade, portanto não sabíamos onde era. Mas nós ficávamos colocados no distrito, mas depois tínhamos de escolher a escola. Por exemplo, no dia em que eu fui, imagine por exemplo que havia 30 vagas naquele distrito, a gente ficou lá colocado e íamos escolher a escola, mas imagine que estavam dez pessoas à minha frente, ou 15 ou 20. Tínhamos uma lista escrita e ele chamava o número tanto e dizia “temos estas escolas. Venha escolher”. Pronto, aquela escola era riscada. Depois chamava o número tanto e por aí fora. Quando chegou ao meu número, já não havia muitas escolas, portanto, já não tinha muito por onde escolher. E havia uma escola perto de Alcobaça - perto, se calhar eram 15 ou 20 quilómetros - que era para duas professoras. Portanto era um horário duplo, de manhã e de tarde, e era para duas professoras. Estava eu e outra colega da minha turma que estávamos para escolher, e havia aquela escola que precisava de duas professoras e nós, naquela hora, estávamos “ai mas ficamos as duas? Nós somos capazes de dar continuidade, nós sabemos preencher toda a papelada que é preciso”, pois saímos do Magistério, teoria tínhamos muita! Mas não tínhamos prática nenhuma e nós dizíamos “pronto, vamos para uma escola onde haja um professor já mais antigo, ele é o diretor de escola, e nós vamos fazendo e vamo-nos adaptando”, mas tínhamos aquela possibilidade de ficar as duas juntas. E eu disse-lhe “Oh F. então como é? Ficamos ou não ficamos?”, “Ai meu Deus Gabriela, não sei, se calhar não damos conta do trabalho” (risos). E eu disse “ai meu Deus! Mas também é pena, podemos ficar tão longe”. Estava lá um irmão meu, que nós tínhamos ido no carro dele, e ele só disse “vós sois parvas, então se têm a possibilidade de ficar as duas e numa aldeia que não conhecem nada, ficai! E sois capazes, sois!”. Pronto, lá nos animou e portanto ficamos as duas na tal escola. Pronto, ficamos as duas, embora um bocado receosas, com medo que não fossemos capazes de saber lidar com tudo aquilo que nos esperava, porque teoria tínhamos muita, muita teoria porque no Magistério tínhamos tido muitos professores que nos ensinavam como é que se fazia isto e aquilo, mas parecia tudo descabido da realidade! O primeiro ano a gente sentiu dificuldades. Mas, nesse dia, escolhemos a escola em Leiria. Pronto, fomos ver onde ficava a escola, já nem sei como é que nós vimos, pelo mapa talvez. Chegámos à aldeia, uma aldeia rural, num descampado, pequenina, mas íamos com aquela animação de que íamos as duas. Andámos à procura de casa porque era longe, muito longe da Guarda, e ficámos até ao Natal! Portanto foi no dia 7 de outubro que fiquei colocada, portanto até ao Natal não viemos.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-4 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | colocação // ajuda entrepares // início da profissão // acolhimento |
nvivo | sentimentos e afetos sobre os colegas // Primeiros 5 anos de trabalho |
geo | aldeia, região Centro |
Fins de semana? Acho que nem autocarro tínhamos, não sei, não sei! Ficamos lá até ao Natal, lá arranjámos casa, uma casa sem grandes condições mas pronto, com o mínimo. Também um bocadinho desviada da aldeia, mas estava a senhora numa outra casa junto, portanto deixou-nos um pouco mais confortáveis porque não tínhamos medo, ela estava ali. A outra senhora, a dona da casa, vivia numa outra casinha ao lado. Pronto, alugamos a casa para ficarmos. Mas nesse dia ainda viemos embora porque não tínhamos levado nada e então viemos, durante o fim de semana, preparamo-nos para a segunda feira irmos novamente tomar posse. E lembro-me perfeitamente que fomos tomar posse em Alcobaça, à delegação escolar. Nós íamos acabrunhadas, não sabíamos bem como é que ia ser, porque já íamos só as duas não é? Apresentarmo-nos e tomar posse, e dizer que tínhamos ficado colocadas e lá fomos nós. Lembro-me perfeitamente de pensar “ai meu Deus!”. E depois eu é que tinha ficado diretora da escola, porque onde havia dois ou três professores tinha que ficar uma responsável, a diretora de escola. Portanto, eu era a diretora de escola porque era mais velha e a F. também não quis. Podia ser ela, mas não quis. E então fomos à delegação escolar, lá em Alcobaça, apresentar-nos, muito atrapalhadas, pois não sabíamos o que iríamos encontrar nem o que íamos fazer. Fomos tomar posse, mas ficamos felizes porque encontrámos um delegado escolar jovem. Um pouco mais velho que nós - se calhar tinha seis ou sete anos a mais do que nós - que nos aceitou muito bem, que nos explicou tudo o que devíamos fazer, que nos disse “sejam bem vindas, eu estou aqui para ajudar” e isso para nós foi meio caminho andado ou mais, porque se encontrássemos um professor velho, com duas pedras na mão, seria mais difícil. Mas lembro-me tão bem, parece que ainda tenho a imagem dele, um rapaz novo - se calhar com mais sete ou oito anos do que eu - mas que nos aceitou muito bem e então ele disse que era o delegado escolar, que as professoras que estavam na delegação escolar também estavam sempre disponíveis para aquilo que precisássemos. Deu-nos uma lista de material que devíamos levar para a escola, tudo: os carimbos, o giz, as folhas, o quadro. Lá fomos nós para a aldeia com aquilo, mas íamos já mais felizes porque já conhecíamos alguém, alguém que nos aceitou bem.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-5 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | família // amizade // conselho escolar |
nvivo | sentimentos e afetos sobre os colegas |
Depois fomos para a escola e pronto, era ali que tínhamos que ficar, não era? E ficamos até ao Natal. Entrámos em contacto com as crianças da escola, com a comunidade local, os pais foram várias vezes à escola. Eu lembro-me perfeitamente que eu trabalhava das 8h às 13h. A minha colega trabalhava depois, das 13h30/14h até às 18h ou 19h. Então tínhamos os horários duplos. E demo-nos bem, portanto, já nos conhecíamos, éramos colegas, já tínhamos sido da mesma turma três anos. E com os pais e com a comunidade também não houve problema! Só que sentimos muitas saudades, muitas! E para mim foi muito mais doloroso do que para ela, porque eu vivia com muita gente, com muitos irmãos e era uma festa. Portanto, tudo aquilo que fazíamos era uma festa, porque éramos muitos irmãos e ela viveu sempre sozinha, sem os pais. Ela vivia nas freiras porque os pais eram emigrantes e depois, portanto, ela só depois foi para a Guarda estudar no Magistério. Portanto, era uma rapariga que já não sentia grande vontade, nem grandes alegrias, não estava habituada assim à família e então não foi difícil para ela. Agora para mim foi muito difícil, porque eu sentia muita falta dos meus irmãos e dos meus pais, porque tinha sido uma vida inteira com eles. O primeiro ano para mim foi muito difícil, principalmente até ao Natal. Depois, no Natal, os pais dela vieram de França e compraram-lhe um carro. Pronto, a partir daí nós já saíamos muito! Já íamos para a vila, já íamos fazer as nossas compras, já íamos fazer os conselhos escolares. Porque nessa altura a gente fazia os conselhos escolares, lembro-me muito bem, que era numa aldeia em que se juntavam seis ou sete escolas. Uma vez por mês fazíamos ali os conselhos escolares, cada um apresentava as dificuldades e a evolução dos alunos. A partir daí, a partir do Natal, foi muito melhor, porque já tínhamos carro, já podíamos sair mais, pronto já se tornou tudo mais alegre! Depois a gente veio de férias, portanto já tínhamos estado com a família e tudo e depois, já com o carro, já podíamos sair quando quiséssemos. Já foi muito mais fácil. Mas para mim o primeiro período foi muito difícil. Depois habituei-me e pronto. Estivemos assim dois anos. Ao fim destes dois anos, concorremos cada uma para o seu lado. Ela ficou colocada em Coimbra não sei onde era, ali perto de Coimbra e eu fiquei aqui em Moimenta da Beira, já aqui a 40 km de Trancoso.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-6 |
pof | entrevista_Gabriela |
tempoh | 1987 |
keys | inspeção // condições da escola // instalações |
nvivo | incidentes críticos |
E também tenho coisas engraçadas, ainda antes da L. nascer. Eu estava grávida dela e estiva numa aldeia, e então nós éramos visitados pelos inspetores. Mas eles não avisavam, agora avisam, a gente sabe que vêm ao agrupamento de tanto a tanto. A gente procura ter tudo mais ou menos bem e é mais da responsabilidade do agrupamento, não é? Podem ir ver-nos dar aulas ou à nossa sala, mas a maior responsabilidade é do diretor e da direção. Mas naquela altura não! Portanto, eu lembro-me perfeitamente, eu estava grávida da L., portanto há 36 anos e havia um inspetor, que era o inspetor D. que era muito exigente na pontualidade e nós sabíamos isso. Mas, portanto, nós íamos em carros, portanto, uma professora levava esta semana o carro, para outra semana levava outra e fazíamos grupos, e deixávamos toda a gente. E nessa semana eu levava o carro. Então quando lá cheguei, vejo logo o carro do inspetor na porta. Pronto, eu fiz de conta, também ainda não eram 9h00, mas ele ia sempre um quarto de hora antes que era para ver se apanhava as professoras a chegarem tarde. Eu lembro-me tão bem, estava lá o inspetor, o carro parado - um carro verde, lembro-me perfeitamente! - e diziam que ele era assim, nem era má pessoa, mas na pontualidade era muito exigente. Eu cheguei, ele não saiu do carro, eu abri a porta da escola e entrei, e depois veio ele. Depois disse-me que era o inspetor, mas eu já sabia porque já conhecia o carro! Não conhecia o senhor, mas conhecia o carro daquilo que as outras colegas diziam. Então disse “sou o inspetor”, e eu apresentei-me e disse “seja bem vindo, entre!”, o que é que eu havia de fazer? (risos). Mas pronto, eu fiz de conta que sim, que estava a contar e que gostei que ele fosse, mas eu sabia que era assim um bocado… e pronto, ele entrou e como sempre, no inverno, naquela altura a gente tinha aqueles fogões a lenha, em que tínhamos lá no pátio a lenha partida que a Junta de Freguesia punha lá. E então, pronto, como fazíamos diariamente, íamos acender o fogão a lenha. A lenha nesse dia era grande demais e não se podia pôr a tampa no fogão, portanto, deitava fumo para a sala e a sala encheu-se de fumo e diz-me ele “isto não tem jeito nenhum! A Junta de Freguesia tem a obrigação de pôr aqui lenha com as dimensões certas”, só que a gente ainda era nova no assunto, nem pedia, nem nada. “Não pode ser! Não pode ser! Há aqui alguma criança que viva aqui perto da escola?”, “olhe esta menina, a casa dela é aqui mesmo em frente, senhor inspetor”, “diga-lhe a ela que vá lá buscar” - isto é uma coisa que nunca tinha acontecido na minha vida e nunca mais me aconteceu - “que vá lá buscar o malho”. O malho era um machado de rachar lenha bem grande, e eu disse “olha vai lá e vê se o teu pai tem lá uma machada que te deixe trazer”, e a garota foi lá e ele partiu a lenha! (risos)
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-7 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | inspeção // condições de trabalho |
nvivo | incidentes críticos |
O inspetor partiu a lenha! Olhe, quando eu contei às minhas colegas o que ele fez, que partiu a lenha. “Isto tem de ser professora, Isto não pode ser assim. E a junta tem que pôr aqui lenha com as dimensões certas para que não estejam a apanhar o fumo” e eu disse “pois senhor inspetor, isso é verdade, a gente não está cá bem”. Portanto, olhe, ele andou a cortar a lenha. Eles quando iam para as escolas, naquela altura, ficavam normalmente três dias. Pronto, aquele dia partiu a lenha, andou entretido a ver se os vidros estavam partidos, se as janelas fechavam bem. Acho que ele tinha gosto para essas coisas. Era um homem assim, virado para isso. No dia seguinte também já lá estava, eu entrei e íamos a corrigir os trabalhos de casa. Mas as quatro classes era muito chato, era muito chato ter as quatro classes! A gente já tinha pensado, “bem, eu vou entrar, ponho os do primeiro ano no quadro, trabalhar com eles, ao outro ano vou dar uma ficha, ao outro ano vou dizer para estudarem o textinho”, tínhamos que ter nas planificações. E no segundo dia ele disse-me “então quais são os meninos do primeiro ano?”, eu lembro-me que eram seis meninos que eu tinha do primeiro ano, “olhe são estes senhor Inspetor”. E ele disse “então eu vou ali com eles trabalhar para o quadro”, levou-os todos para o quadro e trabalhou com eles. Pronto, foi uma ajuda! E claro, ele estaria com um ouvido a ouvir o que é que eu estava a dizer e o que estava a fazer com os outros. Mas pronto, naquela altura até foi uma ajuda para mim e ele era um inspetor que escrevia muito bem, escrevia poemas, fazia livros e eu sabia disso. E comecei a falar com ele acerca disso. Ele ficou todo babado! “Mas como é que professora já sabe?”, e eu “ouvi dizer senhor inspetor, que escreve tão bem, que já tem editado livros”, então ele, todo contente, começava a tirar papelinhos dos bolsos: “olhe senhora professora, veja, quando eu estou à espera dos professores, tenho um tempinho vago e começo a escrever. Olhe, pode ficar com este”. Pronto, simpatizou comigo. Eu também o ia gabando (risos). Olhe e simpatizou comigo, ficou ali aquele dia, estudou, trabalhou comigo. No último dia ficámos a fazer uma reflexão sobre aquilo que viu. Mas até gostei do senhor.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-8 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | inspeção // família // dificuldades sentidas // planificação |
nvivo | incidentes críticos |
geo | aldeia de Aguiar da Beira |
Outra história, também dos inspetores: estava aqui numa aldeia de Aguiar da Beira, também tinha as quatro classes e nessa altura eu levava o D. - talvez tivesse uns quatro anitos - e tinha, se calhar, sete ou oito alunos, mas das quatro classes. E então, havia lá uma senhora, uma senhora já velhota, que tinha a cargo dela os dois netos, os pais estavam para a Suiça, então deixaram os dois netos à avó e andava um lá na escola e o outro era da idade do meu filho, era o A.. E então a senhora perguntou-me se eu o podia deixar ir para a escola também. Porque ela precisava de ir para o campo, precisava de ir às compras. E perguntou se eu o deixava ir, eu disse “olhe, não pode vir todos os dias, não é? Portanto, não é menino da escola. Mas como também cá tenho o meu filho, deixe-o vir, até brincam ali no pátio, outras vezes dou um desenho para pintarem, pronto”. Porque tinha lá o irmão e a senhora queria muito fazer trabalho do campo e não podia por causa do menino, que tinha quatro anitos como o meu filho. E, portanto, lá estavam eles a fazer um desenho, nisto chega o inspetor. Eu vejo o inspetor, o Inspetor P., também um inspetor que era assim um bocadinho rigoroso… E os outros meninos estavam a fazer fichas de avaliação. Aquilo que eu nem devia ter feito, lembro-me muito bem, porque eu tinha agrafado a ficha de Língua Portuguesa, de Estudo do Meio e de Matemática que era para irem fazendo. Por exemplo, hoje faziam a de Português, mas já estava a de Matemática atrás e a de Estudo do Meio. E não devia ser não é? Não devia ser porque se estavam a fazer Português, não deviam ver o que estava para a frente já. E então era o quarto ano estava a fazer essas fichas. Eu vejo chegar o carro do inspetor e de repente soltei as fichas - eram só dois ou três no quarto ano - soltei as fichas e meti-as na gaveta! E eles estavam a fazer Língua Portuguesa. Depois veio lá o inspetor e estavam os outros dois miúdos ali - o meu filho e o outro - a fazerem desenhos. Eu não sabia se ele aceitava isso, mas pronto, estavam! Também não podia pô-los fora. Muito fiz eu ao separar as fichas (risos). Ele dirigiu-se à escola e quando eu fui abrir a porta - claro, com todo o à vontade “senhor inspetor, seja bem vindo à nossa sala. Apresento-lhe a minha turma, é uma turma assim e assim” - e ele esteve um bocadito e depois disse “então e estes meninos?”. E eu “olhe senhor inspetor, este é meu filho. E este menino de vez em quando” - eram mais as vezes que ia, mas pronto - “como tem aqui um mano e os pais estão para a Suíça, de vez em quando vem”. E ele “muito bem, muito bem, professora! Muito bem, muito bem. Estão a fazer um desenhinho?”, depois lá perguntou ao D. “então o que estás a fazer?”, portanto não se zangou, não disse nada! Pronto, mas esteve comigo, eles pediam as planificações, tínhamos que ter as planificações anuais, mensais, semanais e até diárias. Às vezes a gente não fazia tudo, não é? Porque era muita trapalhada, muita escrita, levava muito tempo para aquilo que a gente devia ensinar. Mas ele pediu as planificações e viu que realmente as tinha feito. E ele fez-me assim “então olhe, deixe-me ver esta planificação”, era do mês anterior e depois pediu-me um dossier, o caderno diário dos miúdos quando eles estavam a escrever. E foi ver - lembro-me perfeitamente - foi ver se coincidia o que eu tinha posto na planificação com o que realmente tínhamos feito. Olhe veja bem, este era isso. Não interessava muito a entrada ou saída certa, mas interessava-lhe se realmente nós tínhamos feito aquilo que estava na planificação. E a gente fazia quase sempre. No entanto, era difícil porque a gente tinha de fazer as planificações e tinha que fazer com que coincidisse mesmo. Por exemplo, dizíamos “leitura do texto da Andorinha”, e depois tínhamos de fazer o texto, fazer o ditado, as palavras difíceis, a divisão silábica. E ele quis saber se coincidia. Portanto, esse inspetor era mais rigoroso nesse aspeto, enquanto o outro não pediu assim nada de especial. Pronto, esta questão dos inspetores, fui visitada algumas vezes por eles, mas também não criaram problema nenhum. Nem eu a eles, porque eu também os punha à vontade e falava com eles acerca das dificuldades que sentíamos e viam que era sincera. Também nunca tive problemas com eles.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-9 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | inspeção // educação inclusiva |
nvivo | incidentes críticos |
E tive apenas, se calhar há dez anos para cá, a visita de uma inspetora que esteve aqui mas que foi lá à minha sala, e eu nessa sala tinha uma criança invisual e tinha um com trissomia 21. Portanto, estes miúdos devem andar, se calhar, no oitavo ou nono ano. Portanto, não foi há tantos anos assim e tinha uma criança de etnia cigana. Portanto, era uma turma, o resto da turma era uma turma que acompanhava muito bem, mas havia estas crianças. E eu tinha muito apoio, tinha a psicóloga e a terapeuta da fala. E a outra terapeuta que acompanhava aquela menina invisual. Mas pronto, tinha momentos em que a gente estava com todos na sala e não era fácil. Então esteve lá a inspetora, e disse-me a coordenadora “olha vai para a tua sala, a inspetora”, e eu disse “olha deixa-a vir, dexa-a vir que é para ela ver o que eu lá tenho, deixa-a vir que faz bem”. E ela chegou e disse-me “hoje venho estar um bocadinho aqui na sua sala”, “faz bem senhora inspetora!”, “e onde quer que me sente?”, “onde a senhora quiser, onde a inspetora quiser”. Sentou-se e nesse dia o quarto ano estava a apresentar as elevações de Portugal, as serras, os rios. Eles tinham feito em casa um trabalho, portanto em grupo, depois nesse dia iam apresentar, portanto nem foi muito a mim que ela viu, porque foram mais eles que estiveram a apresentar, eu estava a coordená-los e orientá-los, mas ela gostou muito. Portanto, tinham sido trabalhos feitos em grupo, por eles, e cada grupo ia apresentar.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-10 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | sumários // relatórios // tecnologias digitais |
nvivo | perceções sobre a profissão docente |
Íamos escrever os sumários de hora a hora, todas as horas tínhamos de escrever os sumários naquele momento do intervalo de dez minutos. Porque antigamente não era isso. Agora, cada hora saíam dez minutos. Os miúdos, em vez de saírem, os nossos pequeninos, ficam ali na sala a fazer barulho. E naquele momento nós tínhamos de fazer os sumários. Tínhamos de ver se algum miúdo faltava para marcar falta através desta tecnologia a que ainda não estávamos habituados. Aqueles dez minutos eram gastos, nem podíamos sair cá fora e ainda com aquele barulho todo dos alunos e dos contínuos ali em volta da gente - “oh professora isto, oh professora aquilo” - e depois o entrar tanta gente nas nossas salas de aula. Isso por um lado é bom, mas eram terapeutas da fala, terapeutas ocupacionais, psicólogas, professores do ensino especial. Não sei, portanto, porque havia crianças que precisavam e então, às vezes, até saía o miúdo da nossa sala. Tanta coisa! E depois fazer os relatórios daquilo tudo. Fazer os relatórios juntamente com o psicólogo para a avaliação dos miúdos e depois ter de chamar os pais, temos de ter uma hora semanal para contacto com os encarregados de educação.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-11 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | presidente a junta // festa // relação com a comunidade |
nvivo | incidentes críticos |
geo | Trancoso |
Agora, por exemplo, estava-me a lembrar de uma história: eu chegava todos os dias pelas 9h00, nessa altura estava sozinha com as quatro classes. Eram 17 alunos e eu tinha tal proximidade a um senhor que havia, velhinho, e ele todos os dias passava junto à escola para ir para a serra buscar lenha. Todos os dias ias buscar lenha à serra, mas tinha que passar pela escola, pelo caminho juntinho à escola. E um dia eu estava a entrar, abria a porta da escola e estava lá os miúdos e ele chegam ao pé de mim e diz “oh professora ande cá, ande cá!”. Eu fui lá ver o que é que ele queria e assim, a querer esconder dos miúdos, tirou do bolso das calças dele uma mão cheia de castanhas assadas e descascadas - para ver como são as coisas tão simples - “ande cá professora que tenho aqui castanhas assadas, é para si mas não diga nada!”. Ora veja bem, era a simpatia que o homem tinha por mim, que gostava que eu ficasse contente. Mas sempre tive boa relação com as pessoas. Assim, má relação… Ah! Lembro-me de uma vez que não gostei nada do presidente de junta. Portanto estava numa aldeia, estive lá quatro anos, e nós queríamos fazer uma festa de Natal. Pronto, e como sempre nós fazíamos um pedido à Junta de Freguesia para nos ajudar a organizar qualquer coisa para depois comprarmos prendinhas para os meninos. Qualquer coisa assim. E eu mandei-lhe um ofício, uma carta a dizer “senhor Presidente, agradecia que tivesse a amabilidade de nos dar qualquer coisa para as prendinhas dos meninos”. E ele mandou-me a dizer que não, que não tinha dinheiro para dar. Pronto e eu digo assim “Meu Deus do céu, eu nunca estive em nenhuma aldeia em que o presidente da Junta não colaborasse”, depois uma senhora que era vizinha dele - era avó de uma menina - e falou com ele. E ele disse “Não, não temos cá dinheiro nenhum para dar, não damos nada!”. E essa avó disse-me assim “oh professora, não deixamos de fazer a festa, não deixamos de fazer a festa. Não é pelo facto do presidente não querer dar nada que nós deixamos de fazer a festa. Por isso, se não podemos dar um carrinho maior, damos um carrinho mais pequeno”. Era assim uma senhora que colaborava bastante, mas ele também lhe disse a ela que não dava nada. Então eu disse “eu vou falar com ele!”. E então eu vinha para Trancoso, parei junto à casa dele, toquei à porta e disse “olhe, senhor presidente de junta, olhe que eu não peço para mim. Eu peço para os seus meninos, são os meninos da sua freguesia”. E ele assim, todo arrogante, “professora já disse, já mandei recado que não dou nada”. Mas assim muito mal humorado. E eu “pronto, não quer dar não dá! Mas lembre-se que não deixamos de fazer a festa por isso. E olhe, os meninos não são meus. Eu estou cá este ano, para o ano posso não estar, mas são seus. O senhor tem obrigação, são da sua freguesia, os meninos são seus e continuam a ser este ano e para o ano e para o ano. E eu tenho certeza que o presidente da junta não deve agir assim. Portanto, não é para mim que eu peço. Eu estou a pedir para a escola e para os meninos”. Mas talvez, daquilo que eu me recordo, tenha sido assim a coisa mais próxima de ser mal recebida. Portanto, também não foi bruto mas assim com duas ou três pedras na mão, assim com uma arrogância, “não dou nada, nem quero saber disso para nada”. Mas eu também tive a coragem de ir lá a casa e dizer “olhe, os meninos não são meus, são seus. São meus este ano mas para o ano podem não ser”. Talvez, os encarregados de educação não gostem muito desta atitude, porque se ele não podia dar 50 dava 20.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gabriela-12 |
pof | entrevista_Gabriela |
keys | relação professor aluno // amizade // modos de trabalho // emoções |
nvivo | Teorias do ser professor // incidentes críticos |
Eu, por exemplo, uma professora bastante minha amiga, que depois tornou-se muito minha amiga, mas que no princípio ela e eu… Ela era para a esquerda e eu era para a direita ou vice versa. E depois eu fiquei lá de apoio na sala dela. Depois tornámo-nos grandes amigas. Mas no princípio era mesmo o contrário. Se ela pensava branco eu pensava preto, se eu gostava do azul, ela gostava do vermelho. E eu fui para lá dar apoio, que eu estive aqui quatro anos a dar apoio aqui na cidade. E lembro-me tão bem que para mim era tão difícil lidar com essa colega. Pelo facto de como ela tratava os alunos. Ela, portanto, fazia chorar os garotos. Lembro-me perfeitamente, um dia eu cheguei lá a dar apoio. Eu tinha lá dois sobrinhos meus, nessa turma, e lembro-me ainda hoje me dizem “oh tia, quando te víamos entrar para a nossa sala era uma alegria tão grande, tão grande”, porque aquela professora era desde as 9h00 até às 16h00 a fazer contas, a ler, a escrever, não os deixava levantar do sítio e eles, coitadinhos, crianças pequeninas. E lembro-me perfeitamente que um dia de manhã cheguei lá, e estava uma miúdito no quadro a fazer os trabalhos de casa. Eram contas de dividir, dificílimas para eles meninos do terceiro ano. O menino chorava e chorava. Olhe, chorava, chorava e ela era “porque tu és um burro, porque tu és um burro, porque não tens as contas, porque vais para casa e não trabalhas. Eu não sei que pais tu tens”. Imagine isto numa sala de aulas e eu já andava a dizer-lhe “Oh C., temos que ter calma, temos que ter calma, então os meninos não aprendem assim”, “Oh Gabriela, cale-se! Cale-se, por favor, isto não vai lá, tem que se ser duro com eles!” E pronto, naquela altura em que se davam bofetadas e essas coisas todas e então esse miúdo estava no quadro e eu entrei e o miúdo chorava e eu assim “bom dia amigos! Então como é que está tudo isso?”, e ele a soluçar, “então o que é que se passa?”, e ela “é aquele burro, está no quadro e não é capaz de fazer nada!”. E eu disse-lhe “oh C. eu posso ir lá ao quadro, ajudar-lhe a ensinar as contas de dividir ao N.?”, “vá lá Gabriela, a ver se consegue melhor do que eu”. E eu “calma, então olha N. vai lá fora, vai à casa de banho, lavas a carinha e depois vem cá e eu ajudo”. Depois eu fui para o quadro. O miúdo foi à casa de banho. Já vinha com outro espírito, mais calmo. “Ora vamos lá então, isto não custa nada. E se não aprenderes hoje, aprendes amanhã ou depois. Então ensinamos as vezes que quisermos”, depois lá estive a explicar as contas, ele começou a sossegar e começou a entender. E a professora “pois Gabriela, tem que vir sempre para a minha sala”, “olhe a primeira coisa é que tem de ter calma. Não são todos iguais. Aos berros, ninguém aprende”. Mas essa senhora, ela queria que eles soubessem tudo como antigamente, como a gente sabia as serras e os rios todos. Não podia ser. E então eles viviam aterrorizados.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Gisela-1 |
pof | entrevista_Gisela |
keys | saudades // família |
nvivo | Primeiros 5 anos de trabalho |
Tenho muitas saudades dessa primeira escola. Ainda este Natal eu liguei à senhora, eu ligo todos os anos, a primeira casa para onde eu fui, ela agora está num lar. Já até a senhora do lar me dizia “Eu não sei professora, se ela sabe quem é”, eu disse “Não faz mal, olhe, passe que eu quero falar com ela”. E ela lembrou-se de mim. Ela disse que reconhece a minha voz e neste Natal eu falei com ela, com a senhora. Eu tenho saudades da terra onde estive. Já fui lá visitá-la depois de estar lá. Eu era tratada quase como uma filha. Eu tinha o meu quarto, vivia com um casal com filhos e eu tinha o meu quarto, mas muitas vezes, principalmente à noite, ela chamava-me para ir comer com ela e dizia “Venha cá para o pé de nós, venha para a lareira”. A gente via naquela senhora uma mãe, um pai, era a nossa família.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Graziela-1 |
pof | entrevista_Graziela |
keys | Educação Especial |
Eu lembro-me de ter lá uma professora de História, do 1º Ciclo, mas também de História, e estava na Educação Especial, que nós tínhamos muitos. E ela dizia-me assim: “Olha lá, a S. não me diz o nome”. E eu: “Mas ela a mim diz-me. Eu chamo-a e ela vem, dá-se pelo nome, dá-se por S.”. E então diz ela: “E tu como é que fazes?”, e eu na altura disse…ela diz “Diz-me o nome”, e ela não entendia essa linguagem. Que era uma miúda bastante deficiente. E eu dizia-lhe: “Como te chamas?”. Portanto, ela entendia “como te chamas”, mas não entendia “diz-me o nome”. Pronto, já está a ver a deficiência, o grau de deficiência da miúda. E…e tinha outros miúdos…um miúdo deficiente, se a pessoa lhe der azo, ele abusa muito. E nós temos que ser muito exigentes com eles. E eles sabem quem é o professor que exige e quem é o que não exige. E então, eu tinha lá também outro deficiente, que era filho adotivo de pais velhos, e que me levava dez camisolas para a escola.
Entrevistadora: Vestidas?
Graziela: Vestidas. Eu chegava lá e dizia-lhe: “Tens que tirar as camisolas”, e ele tirava as camisolas e ficava com duas ou três. E esse miúdo deficiente não sabia fazer a barba, o pai era adotivo e velho, um dia disse-me: “Oh professora, eu faço-lhe a barba com a máquina, mas ele está sempre a fugir, sempre a fugir”. E eu…o que é que eu faço, converso com o Conselho Executivo e contei a situação, disse: “Passa-se isto assim e assim, poderíamos comprar os materiais e eu ensinava-lhe e fazer a barba, aqui”. Pronto, eram estas coisas que eu tentava trabalhar com eles, porque um miúdo deficiente, eles precisavam de aprender, por exemplo, a palavra “paragem”, a palavra “mãe”, “pai”, mas só a palavra visual. Pronto, porque depois…portanto, eles sabiam, alguns, sabiam que aquela palavra queria dizer mãe e pai, mas se fosse preciso o nome completo não sabiam, nem entendiam. Portanto, está a ver o grau de dificuldade. Mas voltando ao da barba, então comprámos os materiais, e eu vou com o miúdo para a casa de banho, ensinar-lhe a fazer a barba. E então, ele foi para a casa de banho, preparou o material dele, da barba, e agora vamos fazer. Eu então disse-lhe: “Põe lá a espuma”, e ele lá começou a fazer. Quando chegou aqui à parte do buço, é que foi o caraças [risos] porque eu não sabia fazer. O que é que eu faço?, vou chamar um funcionário. E disse: “Oh Sr. J, venha-me aqui ajudar”. E ele foi lá, a primeira coisa que ele lhe ia fazer era tirar-lhe a gilete para ele lhe fazer a barba, e eu disse: “Não”, portanto está a ver…a minha ideia bate certo. E então, ele ia-lhe tirar a gilete: “Não, como é que o Sr. J. faz a barba?” e ele ensinou. Ele diz-me assim: “Faço isto”. Metia aqui a língua. Pronto, e eu então disse-lhe, ao miúdo: “Fazes, ora tenta fazer”, e ele tentou, aprendeu a fazer a barba rapidamente. Portanto, isto foi um alívio para os pais…muito grande. E elas, quando eu estive lá, quando me encontrei com elas no café, falaram-me nisso. E outra coisa, por exemplo, eu tinha…era outro aluno diferente, que a mãe exigia que ele tivesse tarefeira.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Graziela-2 |
pof | entrevista_Graziela |
eu trabalhava num gabinete pequeno…e…não me lembro muito bem o porquê, mas sei que recebi um miúdo com dificuldades de aprendizagem. E eu então chamei-o, e ele não queria vir. E veio, e eu sabia que ele ia fazer distúrbios. O que é que eu faço? Fechei a porta à chave, guardei a chave. E disse-lhe: “Vamos conversar”, e ele: Pum, pum, pum, pontapé nas mesas, nas cadeiras, e eu ali encostada à parede, impávida e serena. E ele a continuar a dar chutos em tudo quanto era canto, mas a mim não me deu nenhum chuto. Quando se cansou, eu perguntei-lhe: “Podemos conversar?”, e ele: “Sim”. Pronto, está a ver os problemas de comportamento que eu tinha?
ciclo | 1º Ciclo |
id | Graziela-3 |
pof | entrevista_Graziela |
recordo no início, que houve uma professora de Matemática…e eu não lhes respondia, eu respondia-lhes desta forma: por exemplo, eu passei ao 10º escalão para aí com 45 anos. Eu disse assim a uma professora de Matemática: “Vou fazer o meu relatório porque eu vou passar ao 10º”. “Ah, não me diga, no meu tempo só ia para professora primária quem era burra”, exatamente isto. Mas eu vou-lhe dizer, eu fiquei em choque e nem respondi. Eu vou-lhe dizer porque é que eu não respondi: porque essa professora, no ano seguinte, foi professora de Matemática da minha filha.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Graziela-4 |
pof | entrevista_Graziela |
Olhe, eu vou-lhe contar uma história: eu tinha…esse miúdo das mãos de pato, ele não abria a boca, até lhe chamavam a cara de cera. Cara de cera porque ele não tinha movimentos oculares, não tinha…ele só abria um bocadinho. E então um dia, eu ouvi na televisão que no Hospital de S. José fizeram uma operação aos maxilares a uma pessoa. O que é que eu faço? Falei com o V. N., que não sei se se lembra dele, falei com o V.N., que era o Presidente, e disse: “Oh V.N., ouvi isto assim e assim. Eu gostava de ir ao Hospital de S. José com este aluno, a Lisboa”. A escola contactou o Hospital de S. José, em Lisboa, e o médico recebeu-nos…
Entrevistadora: Ah, em que ano? Em que ano é que isso foi, professora Graziela?
Graziela: Deixe-me ver…eu estou a fazer as contas…foi no ano de 2000…a minha filha nasceu em 1990, foi no ano de 2002…penso eu. No ano de 2002/2003. E nós fomos a Lisboa ao Hospital de S. José. E então no Hospital de S. José, nós…portanto, eu…mal conhecia aquilo, saímos em Santa Apolónia, metemo-nos num táxi, e fomos para o Hospital. Pronto, já estava tudo combinado, tudo de acordo, não é? E o médico disse que àquele miúdo não era possível fazer nada. Pronto, para minha pena. Entretanto, depois ainda levámos o miúdo ao dentista, à Faculdade de Medicina Dentária.
Entrevistadora: Com os pais, ia sempre com os pais, era?
Graziela: Quando eu fui a Lisboa, fui com a mãe. Mas quando fomos à Faculdade de Medicina Dentária, foi o professor que arranjou a consulta, que era o professor B., porque tinha lá o filho em Medicina Dentária. E, portanto, nem o miúdo pagou. E era para continuar os tratamentos. Mas depois, como eu saí…perdi-lhe o rasto ao miúdo, não sei se ele foi lá mais ou não, mas eu penso que não, porque a mãe era um pouco desleixada.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Graziela-5 |
pof | entrevista_Graziela |
keys | Educação especial |
Pronto, então é assim, o mutismo seletivo…foi na escola da BE, em Arcozelo. Era uma aluna que, eu estive lá…93, penso que foi em 93, estive lá 2 anos. E…e eu vou para lá para o apoio, apanho uma aluna e eu sem a especialidade, sem nada, como é que eu vou trabalhar com esta aluna? Mas eu vou-lhe dizer diretamente tudo, que vai ficar surpreendida. Vou-lhe falar tudo, como eu falei com a aluna. No primeiro ano, eu não consegui fazer nada com a aluna, porque ela estava…eu até estive a substituir essa turma, e ela ia à nossa beira e era…que era para ir à casa de banho. Ninguém entendia, mas aprendeu a ler! Mas ela em casa falava. O que não falava era na rua. Eu vou ao Magalhães Lemos, que era onde ela estava a ser seguida, porque eu também fazia contactos com hospitais. Vou ao Magalhães Lemos falar com a médica. E essa médica ajudou-me, e disse: “Essa miúda fala, a sugestão que eu lhe dou é que arranje um gravador…um gravador que a mãe lhe deu, uma gravação onde a miúda esteja a falar, uma cassete”. Então eu, o que é que eu faço? Eu sabia que ela era inquilina de uma colega, que estava lá na escola. E dizia-me que a miúda dizia muitos palavrões. E que ela em casa falava muito. Mas chegava à rua e não falava, nunca falou com a professora da escola, nunca falou com os colegas, estava no 3º ano quando eu a apanhei. E então, o que é que eu faço?, um dia acabei…isto tudo por carolice, não é? Porque eu gastava da minha gasolina para ir aos hospitais, ninguém me pagava nada, sabe disso? E eu estava no gabinete com a miúda, e…saiu toda a gente da escola, só estavam as funcionárias. E eu disse: “Oh D., então eu hoje vou ver se consigo pôr a miúda a falar”. Pego na cassete, e…com o gravador, ela não sabia que eu tinha a cassete. Eu disse-lhe assim: “Olha eu sei que tu falas. E tu vais falar comigo, porque senão, vão descobrir, na tua turma, que tu em casa só dizes palavrões”, mas eu lá disse-lhe os palavrões todos, diretos. Só dizes isto e isto, e isto, e isto. E ela ficou a olhar para mim. “Eu sei que tu falas. Falas ou não falas?”. “Sim”. Assim baixinho. “Como é que se chama a tua mãe?”. “Maria”. Então, o que é que faço? Pumba, a cassete. Onde ela estava a falar, as asneiradas e tudo. “Quem é esta que está a falar?”. “Sou eu”. “Então falas ou não falas?”. Mas eu tinha de me impor, está a ver a minha garra. Eu já saí em 2008 e ainda falo com esta garota [risos]
ciclo | 1º Ciclo |
id | Graziela-6 |
pof | entrevista_Graziela |
keys | Educação especial |
“Falas ou não falas?”. “Falo”. “Então é assim, a partir de hoje, vais começar a falar na tua turma, e com a tua professora, senão eu vou lá contar que tu dizes palavrões. Em casa. Tu queres?”. “Não”. Sabe o que é que eu fazia às segundas feiras? Pegava nela, sozinha, metia-a no meu carro, veja o risco que eu corria, levava-a ao supermercado, um supermercado que eu conhecia, e…ela chegava lá, e eu dizia-lhe assim, oralmente: “Vais comprar isto, isto e isto. E, se fizeres as compras como deve ser, e se pagares, e tudo, eu dou-te um pacote de Sugus”. Portanto, isto é como a foca, mas nós aprendemos isto no Piaget, a foca se fizer o trabalho, dão-lhe a sardinha. Pronto. E então ela lá fazia…ia ao talho pedir a carne, pedia a carne que eu queria, pedia…pronto, fazia as compras, umas compritas que eu ia fazer para mim. Percebe? Que era para ela ser obrigada a pedir.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Graziela-7 |
pof | entrevista_Graziela |
Não temos quem nos proteja, e isto é uma coisa boa para ficar aí registada. Uma semana…aparece-me lá…ai, como é que se chama? A Proteção de menores, com a psicóloga. Alguém da Proteção…alguma assistente social, porque a C….veio falar comigo porque a C. estava retida no Hospital de Gaia porque acho que a mãe lhe tinha atirado com a faca. E então…que a miúda tinha só um arranhãozinho. Eu realmente vi o arranhãozinho, mas uma coisa tão insignificante que não lhe liguei nenhuma. E de vez em quando até lhe levantava a roupa, assim na brincadeira, para ver se ela não estava pisada, e nunca a vi pisada. O que é que eu disse à assistente social e à psicóloga? Fui buscar o caderninho dela, mostrei-lhe o caderninho e disse: “Olhe, não tenho nada a apontar à mãe, a miúda traz os trabalhos feitos, a mãe não faz mais porque não sabe, porque não pode, porque não lhe ensinaram, a miúda vem para a escola, a mãe vem buscá-la, eu falo muito bem com a mãe, lido muito bem com a mãe, não tenho problemas nenhuns. Está a ver aqui o caderninho da miúda? Vem sempre muito limpinha, com as possibilidades da mãe, mas vem sempre muito limpinha para a escola. Não tenho problemas nenhuns com aquela mãe”. E depois…a mãe…pronto, soltaram a miúda, que é mesmo o termo. Mas acho que a mãe ainda deu porrada nos polícias nos hospitais, lá no Hospital. Depois, um dia mais tarde, as miúdas tinham que atravessar a rua, para ir para a cantina, que era em baixo. E houve uma mãe que me disse que a M. deu uma bofetada na filha. E vai fazer um escândalo à escola, mas não era contra mim, era contra a M.. E disse-me que ia à polícia, e eu disse-lhe: “A senhora vá. Pronto. A senhora vá”. E foi. E foi. E eu depois passei para ir com a minha filha para a explicação e vi-a, lá dentro, na polícia. E foi. Entretanto, a M., um dia, falou comigo, e disse-me: “Oh professora, veja lá o que é que vai dizer!”. E eu…está a ver? A proteção que nós temos. E eu disse-lhe assim: “Eu vou dizer a verdade. Eu vou dizer a verdade, eu não estava lá, eu não vi”. Falei com a empregada, que levava os miúdos, e disse: “Oh D. R., viu alguma coisa?”, “Eu não, eu não vi nada, não vi ninguém”. “Pronto, é isso que vai dizer à polícia”. Depois o caso até foi arquivado. Sabe porque é que estas mães vão fazer queixa à polícia? Porque têm tudo grátis nos Tribunais. Porque se tivessem que pagar, não iriam lá. Percebe o que eu lhe estou a dizer? E é assim, vou-lhe dizer uma coisa que, se quiser contar conta, se não quiser, não conta, mas vou-lhe dizer…isto foi a verdade. Mas imagine que eu até via. Que até acontecia e eu via, sabe o que é que eu iria dizer? Que não vi nada. Porque eu não tinha proteção nenhuma.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Graziela-8 |
pof | entrevista_Graziela |
Mesmo no 2º Ciclo, eu ia a casa dos pais. No 2º Ciclo, quando o aluno não aparecia na escola, eu ia a casa. Olhe, eu cheguei a ir aqui a um bairro, mas aí fui com o meu filho, que eu não ia sozinha, a um bairro social que é abaixo da linha, que lhe chamam o Iraque, não sei se conhece?
Entrevistadora: Não… Aqui, do lado de cá, aqui em Gaia?
Graziela: Não, aqui em Valadares, mesmo abaixo da estação de Valadares, tem lá um bairro social, que lhe chamam o Iraque, portanto já está a ver o estilo de bairro. Eu cheguei a lá ir, a esse bairro. Uma vez fui lá com o meu filho, não tinham nada dentro do frigorífico, tinha €20 na carteira, isto já para aí há 20 anos. Eu fui aos €20 que tinha na carteira e dei-lhe os €20. Fiquei tão chocada… Mas, cheguei a arranjar casa a um aluno que o puseram fora, a ele e à avó, percebe…
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Ilda-1 |
pof | entrevista_Ilda |
Havia uma escola nova, que não estava a ser ocupada porque a diretora não estava disposta a sair do seu comodismo, portanto, que era aquela escolinha com a casa da diretora, portanto, ela só tinha que atravessar o patamar para ir para a escola, e nós, as outras pessoas, davam aulas, eu, por exemplo, dava aulas a 28 meninos, num primeiro andar de uma casa de habitação… Pronto, os meninos a andar faziam tremer o candeeiro da senhora do rés-de-chão, que se estava sempre a queixar. E eu… pronto, ingénua, não é, escrevi para a Câmara a dizer: “mas porque é que não vamos para a escola nova? Temos ali uma escola a estragar-se, está nova”. Bem, a diretora ficou furiosa comigo, pronto, de facto eu ultrapassei-a, não é? E disse: “vêm aqui estas novatas, cheias de teias de aranha na cabeça…”, e eu a pensar: “teias de aranha?”. O que eu sei é que eu era para ficar mais um mês, e de repente a outra professora apresentou-se
ciclo | 1º Ciclo |
id | Ilda-2 |
pof | entrevista_Ilda |
keys | assaltos // escola P3 // violência doméstica // gravidez juvenil |
Eu tenho uma certa tendência para grupos difíceis - que é ao pé da minha atual escola, chamava-se R.D., portanto, era um bairro de lata, na altura, era uma escola P3, portanto uma escola moderna, mas que já não tinha nada, porque já tinha sido assaltada milhares de vezes, e até o esquentador já tinham levado. E fiquei com uma turma de segundo ano, terceiro ano, e quarto ano de repetentes. Quatro meninos do segundo ano multi-repetentes, portanto já tinham 11/12 anos, e não sabiam ler… dez meninos do terceiro ano, pela primeira vez, e dez meninos do quarto ano repetentes. Portanto, era assim uma mistura. Pronto, lá implementei este modelo de diferenciação pedagógica, com estas coisas, com os ficheiros, com o plano individual, com estas coisas todas. Os P3 têm três salas - ou duas, no caso eram três -, tinha uma colega ao lado que gritava, gritava, gritava, uma coisa horrível. Pronto, e volta e meia lá era assaltada a escola, não é? A sala dela ficava de pantanas, as salas ficavam todas de pantanas. A minha sala ficava impecável. Porque um dos cabeças era um do segundo ano, (risos)
E1: Esta não mexo…
Ilda: Exato! Ou seja, no fundo, para mim isto era o indicador de que aquele espaço, ele sentia-o como dele. E por isso não (incompreensível). E nunca mais me esqueço desse menino, que me marcou tremendamente, porque o L., coitado, levava sovas do arco da velha, e já andava naqueles gangues. E um dia chegou-me à sala com as mãos todas entrapadas, e eu perguntei: “L., o que é que te aconteceu?”, “foi a minha mãe”, “o que é que ela te fez?”, “queimou-me as mãos, porque disse que eu roubei 1000$00”, 1000$00 na altura. E enquanto não confessou, pôs-lhe as mãos em cima do fogo. Ou seja, isto é de uma violência, é de uma violência… Pronto, na altura não se falava na CPCJ, nem de coisa nenhuma, isto hoje era impensável, ainda bem, não é? Mas foi terrível, terrível! Eu quando estava grávida do meu filho encontrei uma menina daquela escola, não minha aluna, mas aluna de outra sala, com 13 anos, grávida, também, portanto ela nem me falou… Porque, coitada, não é? Devia ter imensa vergonha.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Ilda-3 |
pof | entrevista_Ilda |
Uma experiência que para mim foi marcante, porque, pronto, como é que eu trabalho a iniciação à escrita e à leitura? É a partir dos enunciados deles. Portanto, é numa perspetiva discursiva, para que eles percebam que a escrita é uma representação da fala, a escrita não é uma coisa mecânica, a escrita não é cópia, não é reprodução. A escrita é a tradução do nosso pensamento. E da nossa fala. E portanto, eram textos orais, que eu escrevia, inicialmente era eu. E que eles depois, num momento diário, liam à turma. E depois, uma vez por semana, trabalhávamos um texto de cada menino, eles faziam descobertas, e depois trabalha-se a consciência fonológica, e por aí fora, até adquirirem o código alfabético. Aqueles dois meninos, irmãos, indianos, falavam um com o outro, não falavam nada português, eu não sabia se eles me entendiam, a P. era repetente, do primeiro ano, que ainda por cima não era legal, mas como, coitadinha, andou ali aos caídos, fizeram-na repetir o primeiro ano, então ficaram os dois na minha turma. O N. muito mais solto, era a primeira vez que estava na escola, e eu falava com eles e eles faziam que sim a tudo, e depois falavam um com o outro. E eu pensei: “mas como é que eu vou fazer?”. E então, a certa altura, queria era que eles tivessem um texto para ler aos colegas, naquele momento de leitura dos textos, e de apresentação dos textos. E então andei atrás deles, e dizia: “olha, vocês têm que…”, tinham um caderninho, A5, para escrever esses textos, “não querem fazer um texto? Olha, daqui a pouco é o trabalho do texto do N.”, porque era por ordem alfabética, e portanto, “brevemente será o texto do N., e tu não tens textos”, não percebia se eles me percebiam ou não. Mas eu insistia: “olha, não queres escrever um texto? Eu escrevo, vá, diz lá, olha, queres contar”, a mãe vinha todos os intervalos à escola, levar o lanche, e eu comecei a dizer: “olha, querem contar que a mãe vem cá?”, eles faziam que sim, “ok, então eu vou escrever «a minha mãe», está bem? Está aqui, «a minha mãe vem levar o lanche», é? Sim? Então eu vou escrever «vem levar o lanche», olha, está aqui «A minha mãe vem levar o lanche». Amanhã vais ler aos meninos, está bem?”. No dia a seguir mostrei-lhe o texto, e ajudei-o a ler, não é? E ele repetia “a-minha-mãe”… A partir daí começou “a minha mãe, a minha mãe”, começaram a surgir os textos, era tudo “A minha mãe”. Dito por mim, depois escrito por eles. E aquilo andou… e depois no trabalho de texto, eles são convidados a fazer descobertas, que são, no fundo, analogias. Este é um bocadinho do meu nome, este bocadinho lê-se como a palavra não sei quê, pronto, e depois pegamos nesses bocadinhos, fazemos listas de palavras, etc. O N. e a P. nunca tinham descobertas, não é? Eis senão quando um dia, o N., muito seguro de si, vai ao quadro e diz: “Ir. N.” Ai, eu fiquei tão contente! Fiquei tão contente que eu nem sabia o que havia de fazer. Eu sei que o N., de repente, não sei como, ele estava a ler tudo. Ou seja, para mim foi uma revelação, não é? Que é, a escrita é um motor da fala e da própria escrita, e neste caso, foi um motor de aprendizagem da língua portuguesa. Ou seja, ele começou a ler primeiro do que começou a falar. Claro que, de algum modo, ele já conhecia as palavras, mas não se atrevia, provavelmente, a dizê-las, ainda por cima porque tinha ali a muleta da irmã, não é? E podiam comunicar os dois, mas no fundo, a mediação da escrita, permitiu que ele passasse a comunicar em português.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Ilda-4 |
pof | entrevista_Ilda |
Pronto, esse ano estive nessa escola, lembro-me de ter lá a inspeção, e nós tínhamos uma correspondência, é outra prática que eu tenho, correspondência com outra turma, porque é uma estratégia deslumbrante, eu acho que eles ganham um sentido da leitura e da escrita fantásticos, não é? E sei que tínhamos, nesse dia, combinado que íamos escrever a carta, já não sei, a carta coletiva, ou não sei o quê, tínhamos o plano. E o tempo de estudo autónomo, e depois ler uma história, e não sei quê. Aparece uma tal inspetora, uma famosa, como é que ela se chamava? Já não me lembro (risos), mas sei que a senhora se pôs a falar comigo, e eu muito embaraçada, porque quando eu estou com os miúdos, não consigo estar atenta a que outra pessoa que fale comigo, quer dizer, eu acho que é uma falta de respeito, não é? Mas eu não conseguia resolver o problema, não conseguia desligar da senhora, não é? E eles lá iam fazendo o plano individual, sozinhos, e depois não lemos uma história, não fizemos não sei quê… e antes de irmos embora, fizemos o balanço do dia, e tinha uma muito perspinheta, a E., ainda me lembro dela, quando eu li então, leitura de uma história: “não, não fizemos, por causa dessa senhora!” (risos)
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Inês-1 |
pof | entrevista_Inês |
Inês: Com 18 anos. Eu com 18 anos, com 13 alunos. Tinha alunos que eram maiores que eu. Então, lembro-me que não foi muito fácil, sobretudo onde fiquei colocada. Fiquei colocada no concelho de Odemira, numa escola isolada, no meio do campo. Só a escola. Não estava habituada a este aglomerado. Aqui, no Alentejo, são pequenos lugares, a escola está inserida no aglomerado populacional – lá, estava no meio dos sobreiros. Lembro-me que o meu pai me foi levar e chegou lá e disse: “Não, tu aqui não ficas. Não ficas aqui.” Não havia telefone, nada. E, numa casinha próxima, perguntámos onde é que os professores ficavam e a senhora disse: “Os professores dormem na escola” – “Na escola!?” – “Sim, sim. Dormem ali na sala de entrada, pronto, os professores têm estado aí, têm dormido na escola”. E o meu pai disse: “Não vais ficar aqui, não vais dormir na escola”.
Então, voltámos e fomos a Beja, falar com o diretor regional, o diretor escolar, que, nessa altura, as coisas eram tratadas ainda assim. Ele, coitado, com muita pena minha, viu assim uma menina de 18 anos, parecia que tinha 13 ou 14: “Olhe, é assim, veja lá se consegue ficar, porque se recusar o lugar, depois é exonerada e fica sem poder concorrer agora. Veja lá.”. Então, lá voltámos. O meu pai foi-me levar de novo, com muita pena… então consegui uma senhora, para aí a um quilómetro da escola, que me arranjou um quarto. Entretanto, tinha de passar por um ribeiro, para ir para a escola. Eu disse: “Então, quando isto tiver mais água, como é que isto se atravessa?” A senhora disse: “Costuma ser com um burro. Há aí um senhor que tem um burro…”. “Ah, mas o diretor escolar disse-me: Veja lá se consegue, porque, entretanto, há professores que vão mudar e talvez consigamos aqui um lugar perto de casa.”. Então, fiquei lá só 15 dias, que foram péssimos, sem ter telefone, sem ter correio…
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Irene-1 |
pof | entrevista_Irene |
keys | 25 de Abril // Condições da escola // Colocação // Comunidade |
nvivo | fatores de mudança // Obstáculos |
portanto, logo que se deu o 25 de Abril, a comissão de moradores, as pessoas, não sei se aquilo era uma comissão, era o grupo de pais começou a construir uma escola para que os seus filhos pudessem estar ali. Portanto, eu fui para essa escola que estava inacabada. A escola não estava pronta, não tinha pátio, não estava ainda rebocada da parte de fora. Tinha ainda algumas paredes em tijolo, não tinha mobília nenhuma, não tinha nada. E eu quando cheguei para ver a escola, tive uma recepção de aldeia muito boa. Contactaram-me, pediram por tudo que eu aceitasse o lugar, porque eles comprometiam-se de facto a terminar a escola e a trazer as mobílias mínimas. Porque o que eu ia fazer é recusar, dizer que a escola não estava pronta, portanto não tinha condições. Eles pediram para eu não divulgar isso e pediram-me muito. E eu fiquei muito hesitante. Pensei, porque a escola de facto não tinha nada. -“Eu compreendo, eu não me importo de ficar aqui, embora esteja muito longe da minha terra, mas eu concorri a nível nacional e tenho todo o prazer em ficar na escola. Eu não tenho condições para trabalhar”, então a população comprometeu-se, fizeram-me uma grande receção quando eu disse que sim, como se aquilo fosse um acontecimento muito importante. E foi para eles o facto de terem pela primeira vez uma professora para os filhos, porque havia crianças que morreram atropeladas inclusivamente, era muito perigoso aquele caminho e portanto eu acabei por aceitar. Eles comprometeram-se, não conseguiram fazer aquilo que se tinham comprometido. Trouxeram algumas coisas da casa deles e lembro-me que os primeiros dias os meninos sentavam se numas cadeirinhas pequeninas que os pais traziam. Depois arranjaram-me um quadro tripé, daqueles quadros antigos. Depois arranjaram umas carteiras do tempo de alguns pais e avós. Foi o que conseguiram arranjar. Na altura os recursos eram poucos, não havia assim muitas mobílias nas escolas e pronto. Mas fomos de alguma forma apetrechando a escola, mas posso dizer que chegámos ao final do ano ainda sem um pátio feito e sem uma mobília que tivesse de facto condições boas para trabalharmos. Tínhamos condições mínimas. Fomo-nos ajeitando e eram quatro turmas, quatro classes, 27 alunos. Eram muitos, muitos deles pequeninos, de primeiro ano. E isso também me levou a aceitar lugar, porque eram crianças que os pais iam trabalhar e eles tinham que se deslocar dois quilómetros para lá e dois para cá, com aquela idade, tão pequeninos. Pronto. E aceitei. F
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Isadora-1 |
pof | entrevista_Isadora |
tempoh | 1982/83 |
keys | Colocação // amizade // Interior // Desafios |
nvivo | Primeiros 5 anos de trabalho |
geo | Tabuaço |
Em 1982-83 concorri e tive a sorte, ou azar também… Na altura, pareceu-me mal. [Estive] numa escola, em Tabuaço, por 15 dias. Nós escolhíamos e íamos a Viseu. Éramos chamadas, íamos sendo chamadas à medida que ia sendo a nossa vez. Depois, tinhamos várias opções das escolas com lugares vagos que pudesse haver. Naquele dia, havia uma escola por um mês e esta de 15 dias. Como era muito longe, eu escolhi essa escola. [risos). Nesse dia - pode não acreditar, mas é verdade - fui de manhã para Viseu e o autocarro para Tabuaço partia no dia seguinte, de manhã, muito cedo. Eu não tinha hipótese de vir a casa e depois voltar para Viseu para apanhar o autocarro, então dormi em Viseu, em casa de uma amiga. Comprei roupa interior, escova de dentes - porque eu ia por 15 dias - e umas pecinhas de roupa e lá vou eu. Era uma quarta-feira e só ia ficar quinta e sexta-feira. Quando cheguei lá tive uma boa surpresa porque a colega já se ia apresentar ao trabalho no dia seguinte. Eu fiquei lá em casa de uma colega, portanto, quinta, sexta, que ela deu-me boleia para Viseu. Havia essa disponibilidade dos colegas, eu lá não conhecia ninguém. Não tinha lá nada. Mas soube lá na educação escolar que estava lá uma colega de Viseu, contactaram com a colega e perguntaram se eu podia ficar em casa dela, se podia dar alojamento e a colega disse que sim. Depois, na sexta-feira à tarde, regressámos a Viseu e ela deu boleia. Portanto, praticamente, só fui conhecer a escola e vim-me embora, o que foi muito bom porque depois fui novamente colocada e já tive uma hipótese [de trabalho], em Tondela, onde estive mais um ano
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Lisboa-1 |
pof | entrevista_Lisboa |
É assim, para ser professora… Eu queria muito ser professora. Foi sempre uma das atividades que eu gostava de escolher para a minha vida. Ser professora era mesmo o que eu gostava de ser. Claro que houve alguns percalços na vida, mas, de facto, numa situação em que já estava para começar a trabalhar no estado, na segurança social (na altura era a caixa de providências), depois começaram as minhas irmãs a dizer-me “Então se gostas, porque é que não tentas? Porque é que não vais?” Mas a situação estava um bocado difícil, mas pronto. Segui o conselho e fui, concorri para a admissão ao magistério. Entrei para a Guarda, na altura estava em Lisboa. Entrei para a Guarda e foi aí que eu tirei o meu curso de professora.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Lisboa-2 |
pof | entrevista_Lisboa |
Ah, não foi fácil. Não posso dizer que foi fácil porque com um filho bebé atrás de nós é complicado. Mas eu, de facto, ainda tive a vantagem… Vantagem/desvantagem (risos) porque é mesmo assim… Porque o meu marido esse ano também não trabalhou. Acabou o curso e ficou em casa, portanto, era desvantagem não estar a trabalhar, mas também era vantagem porque me ajudava de outra forma. E então, ele ficava com o miúdo, ele também não mamava, era amamentado com o biberão, eu não tinha de lhe dar a mama, ele não tinha de andar comigo. Então ele ficava com ele, ia levar-me à escola e ia-me buscar, mas ficou com o pai. Isso já facilitou um bocado. Como eu andava no distrito, melhor ainda.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Lisboa-3 |
pof | entrevista_Lisboa |
É assim, tenho histórias boas, mas tenho uma que vou falar já dela. Vou começar por ela porque é uma história que me ficou para a vida e é uma história que me emociona muitas vezes. Eu estive aqui no concelho de Trancoso, estive aqui numa escola bem perto. Em Golfar, mais propriamente. E essa escola tinha uma turma não de muitos alunos, eram 11 ou 12, mas também tinha os quatro anos. E tive uma criança que eu até aqui tenho uma fotografia, que é o miúdo que me acompanha a vida toda (mostra a fotografia) não sei se está a ver. É este menino. Este menino era de Golfar e era uma criança… Eu digo era porque ele já cá não está. Era uma criança muito afável, uma criança que se esforçava imenso e não foi logo no início que eu comecei a perceber que o esforço dele era mais para me agradar a mim do que propriamente ele querer ser o melhor aluno. E esta criança só fez o quarto ano comigo porque eu nessa escola só estive um ano. No final do ano trouxe-me esta fotografia e uma pulseira de prata. E eu disse “Então, oh filho, a pulseira, olha, dá às tuas manas, ou a uma ou a outra. Sabes que eu às vezes nem uso pulseiras e…dá-lha a elas que elas ficam contentes, mas a fotografia vou guardar com muito carinho”. Porque ele até tinha escrito na fotografia “Para a professora Lisboa, eu gosto muito de si e quero que nunca mais me esqueça” é a mensagem do miúdo. Bem, ele fez o quarto ano, depois foi para o ciclo e no final do quinto ano esta criança que ia de bicicleta ter com a mãe a um terreno, foi atropelada e faleceu. Portanto, foi assim uma tragédia que me marcou (silêncio, comoção). E tenho outras, histórias muito agradáveis. Às vezes passo por elas e volto a relembrar. Cartas que me escreviam, fotografias que tirávamos… São histórias que ficam para a vida.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Lisboa-4 |
pof | entrevista_Lisboa |
Que diz “Para a melhor professora que qualquer aluno pode ter (risos). Eles eram muito queridos por isso é que eles escreviam estas coisas assim. E diz-me assim:”Professora Lisboa, vou escrever-lhe honestamente o que a professora significou para mim nestes últimos três anos. Eu e os meus colegas estávamos na sala de aula. O meu maior desejo nesse tempo era que um professor ou professora entrasse pela porta vestida com uma bata (risos). — Veja bem que a bata era uma coisa muito importante! (risos) — quando a professora entrou (porque eu ia com a bata, sim senhor, não dececionei,) quando a professora entrou eu fiquei muito contente e surpreendida ao vê-la pelo meu desejo se ter realizado. Nesse mesmo dia, depois das aulas, percebi que a escola para mim era como se fosse a minha família e, a partir desse dia, apliquei-me bastante. Passado um ano passei para o terceiro ano e a matéria era um bocado mais puxada. Por vezes falava muito e a professora dizia-me que eu tinha que me esforçar mais (risos). Por diversas vezes os meus colegas pediam-lhe um rebuçado (é verdade que eu normalmente trazia sempre uns rebuçaditos dos peitorais para a tosse e eles às vezes pediam-me um rebuçado, um lenço, dinheiro…) A professora demonstrou humildade e um enorme carinho por nós. E quando a professora Lisboa falava com a Diana (era uma criança assim típica da aldeia. Essa miúda, como tinham fechado a escola da aldeia dela, foi transferida para Trancoso que eu na altura já estava em Trancoso. E essa miúda era muito engraçada e achavam-lhe todos muita graça porque era uma miúda mesmo típica da aldeia, se bem que era referenciada como tendo dificuldades de aprendizagem estava a ser acompanhada pelo ensino especial). Portanto, quando a professora Lisboa falava com a Diana de um assunto sério e ela ficava a olhar para si… (depois pôs reticências, ela não disse tudo), eram momentos muito engraçados. Momentos que ficaram gravados na minha memória para toda a vida. Com esta carta quero dizer-lhe que foi uma excelente professora e quero agradecer-lhe por me ter ajudado a chegar a esta fase. Um beijinho muito grande, Ana”. Tenho assim estas lembranças que ficam gravadas para sempre. Isso é um facto.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Lisboa-5 |
pof | entrevista_Lisboa |
Não, fez muitas questões que realmente…muitas questões relacionadas com a escola e…pronto…são as tais recordações que a gente tem. Eu até tenho aqui algumas fotografias que lhe posso mostrar, de atividades que fazíamos. Esta aqui, por exemplo, foi no final do ano (mostra), os meninos finalistas que iam para o segundo ciclo já… Tenho aqui um que era de etnia cigana, este miúdo aqui era de etnia cigana era um miúdo muito querido. Depois teve alguns problemas no segundo ciclo que eu não entendo muito bem, mas pronto. Depois ainda esteve numa casa de correção, mas eu nunca tive nenhum problema com ele, normalíssimo. Inclusivamente ele nem queria sair da escola porque não me queria deixar. Chorou e tudo. Depois tínhamos atividades no carnaval, por exemplo. Fazíamos as máscaras com eles, os fatos de carnaval… era um grupinho jeitoso (risos)! Tenho outra aqui onde está o tal miúdo que foi atropelado. Depois tínhamos aquelas festas de natal e essas coisas…de natal ou de fim de ano em que nós próprias também fazíamos parte dos teatros e dessas coisas. Por exemplo esta, eu e a minha colega (mostra foto). Foi em Freches esta fotografia.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Mara-1 |
pof | entrevista_Mara |
Nós saíamos da escola e tínhamos, por exemplo, um mês em que íamos a uma escola de um concelho vizinho da Escola do Magistério Primário do Porto. Lembro-me de ir a Matosinhos, fui a um bairro no Porto, um bairro já com bastantes problemas a nível social. E víamos realidades diferentes, onde tirávamos notas, fazíamos relatórios, fotografias – que era até uma coisa muito inovadora, na altura, mas já fazíamos registos fotográficos disso – e tirávamos apontamentos dos métodos de ensino, porque também tinham a preocupação de nos levar, mesmo na prática, a sítios onde houvesse um tipo de trabalho diferente, práticas pedagógicas diferenciadas. Foi nessa altura, mais ou menos, que apareceram, por exemplo, as primeiras P3, de área aberta – que foram construídas de raiz, uma delas em Matosinhos, em que eram marido e mulher que trabalhavam, e as salas, eram três salas, só com meia parede, não era até ao teto, meia parede a dividir, mas depois tinha espaço comum, em que as três turmas se juntavam para fazer assembleias de escola - que eu nunca mais me esqueço disso, ainda hoje uso muitas vezes: não com outras colegas, mas faço disso algumas práticas da minha sala de aula – em que se via trabalhos fantásticos da exposição de trabalhos pelos alunos, em que depois, mais tarde, vim a deixar de ver isso, e agora parece tudo novidade e nada disso é novidade, porque isso já vem de há mais de 30 anos – eu vi isso, lá está, no meu 2º ano de formação.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Marlene-1 |
pof | entrevista_Marlene |
keys | Amizade |
nvivo | incidentes críticos |
geo | Castro Marim |
Eu quando comecei a dar aulas à noite, em Castro Marim, na primeira noite, tinha o carro estacionado ao pé da escola, apareceu um GNR para falar comigo. E o que é que o GNR foi dizer? Que tinha lá um senhor que roubava, fazia isto, fazia aquilo, que eu tomasse atenção. O senhor chamava-se Z. J. Bem, depois eu fiz uma tática, não sei se foi boa ou má, mas até resultou. Eu disse: “Olhe senhor Z. J., eu tenho medo que apareçam por aqui fulanos. Só abale aqui da escola depois que eu ir embora!”. Acabou por ficar uma amizade com o senhor. Quando a minha família matava o porco, ele ia. Eu acabei por guardar esse carinho, de uma pessoa que era um zé ninguém. E ele sentia-se muito importante. Eu nunca tive nenhum problema com ele. Nós vamos aos poucos criando as estratégias para conseguirmos sobreviver. Nem tudo está nos livros.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Marlene-2 |
pof | entrevista_Marlene |
keys | COVID // Memórias // Ex-alunos |
Um dia destes, ainda usávamos máscara, cheguei à escola - esta para mim foi giríssima. Cheguei à escola antes das nove horas e um rapaz estava a por um vidro no ginásio que se tinha partido e diz-me assim: “Bom dia professora! Ainda anda ai?”. Mas eu não estava a ver quem era. Diz ele: “Sou o R.! Você dava-me com cada seca!” (risos). Foi o último ano em que dei aulas à noite na secundária - também estava em intervenção de escola. Ele diz-me: “O meu pai diz-me que se eu tivesse ouvido aquela mulher e a mim, hoje era um homem!”. Trabalha numa vidreira. Lá conseguiu fazer o 9.º ano [de escolaridade]. Ele andava com as piores companhias, moços que fumavam charros. Depois ao sair da escola eu disse: “Dê cá um abraço!”. Quer dizer, são estas histórias que nos levam ainda a acreditar.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Marlene-3 |
pof | entrevista_Marlene |
keys | Relações // Festa // Comunidade // Universidade dos tempos livres |
Fiz muita coisa ao longo da vida. Orgulho-me do que fiz, como fiz, as relações que estabeleci, porque são todos ciclos de vida. E olha, gostei de, por exemplo, ter promovido uma festa cigana com o delegado de saúde. Foi giríssimo. Na Universidade dos Tempos Livres chegamos a ter 600 e tal alunos. Nós temos que abraçar o que vê e não chorar o que já passou. Eu gostei muito, mas acabou, passe muito bem.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Mónica-1 |
pof | entrevista_Mónica |
E então foi, olhe … eram assim umas, para mim já eram assim umas velhotas que estavam a dar aulas na altura [risos]. Umas velhotas que são—eram bem mais novas do que o que eu sou agora. Eram velhotas, eu também era uma criança [risos]. Mas olha, acolheram-me muito bem. Acolheram-me muito bem, gostei muito daquilo. Orientaram-me, por exemplo, era uma turma de segundo ano e aqueles miúdos que tinham mais dificuldades na leitura e tal—que tinham—elas tiraram-me os meninos da turma e puseram nas turmas delas, portanto elas limparam—uma coisa anormal para a época, porque na altura, quando nós entrávamos, eram normalmente as piores turmas que eram distribuídas aos professores novos. Aqueles que tinham mais dificuldades, mais problemas e tal. E aquelas quatro colegas, que eram um lugar, eram cinco professores ao todo, eram cinco lugares, aquelas quatro colegas limparam-me a turma para ficar tudo—
ciclo | 1º Ciclo |
id | Mónica-2 |
pof | entrevista_Mónica |
Era, porque eu lembro-me que naquela altura andava tudo a chorar baba e ranho por causa das turmas que tinham, que era horroroso, olha, eu dá-me impressão que era uma colega nossa que tinha uma consciência política muito avançada, digamos assim. Era uma colega católica, mas que tinha uma perspetiva de esquerda, vamos falar assim, do que devia ser a educação e do que devia ser também o acolhimento dos professores na escola. Porque realmente nós íamos com, talvez, com o rei na barriga, a pensar que sabíamos muita coisa, e elas, essas colegas, tiveram a capacidade de aceitar as minhas coisas que eu levava e fazerem-me entender que as coisas delas, que [elas] faziam, também não eram assim tão reacionárias como nós pensaríamos à primeira vista que eram. E dá-me a impressão que foi essa colega que influenciou o comportamento das outras colegas, mas foi… para mim, foi impecável. Foi a validação que aquilo era—
ciclo | 1º Ciclo |
id | Mónica-3 |
pof | entrevista_Mónica |
Ai sim, durante bastantes anos. Então, elas com dezoito anos ou menos já estavam a trabalhar. Acho que elas… já estavam a trabalhar naquela altura; reformavam-se aos quê? Aos cinquenta, cinquenta e tal anos? Portanto… já tinha feito… já tinha feito uns bons anos de carreira, que ela contava as histórias dela também. Tinha lá andado no meio dos montes, também. Eu ainda não tinha andado no meio dos montes, mas depois no ano a seguir [risos] comecei.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Mónica-4 |
pof | entrevista_Mónica |
pessoas
Depois é assim: toda a gente almoçava na escola porque não tinha tempo para vir a casa, porque as casas, normalmente, toda a gente ficava longe a não ser uma ou outra que eram lá da terrinha onde nós ficávamos. E depois fazia-se grande paródia, faziam-se uns grandes lanches, grandes almoços em conjunto; uma levava uma coisa, outra levava outra e fazia-se o almoço. Havia muita solidariedade, por exemplo, nas questões das boleias: Íamos apanhando as pessoas… porque muitos sítios onde se trabalhava não tinham transportes públicos. Ou se ficava lá, por exemplo, nessa escola que eu agora me estou a lembrar, em Beira, Paredes, pertíssimo daqui, se eu não tivesse boleia de uma colega, eu não podia vir a casa, pura e simplesmente. Tinha que lá ficar. Havia assim essa questão. Agora é assim, muito respeito pelos professores, muita deferência a nível dos pais e a nível dos miúdos; a nível dos miúdos talvez um bocadinho de medo ainda porque eu lembro-me… já mais tarde, já bastante mais tarde, aqui no Porto, eu fui para uma escola assim, ali de Noêda, no bairro, a escola de Noêda, e a primeira coisa que o um dos miúdos me trouxe foi uma régua [risos]. E eu perguntei que era aquilo. Era uma régua. “Para quê que quero isso?” “Foi o meu pai que fez, que se eu me portar mal, a senhora professora bate-me.” “Está bem, então fica aqui.” Ainda estavam muito marcados aqueles tempos do castigo físico e… dessas coisas.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Mónica-5 |
pof | entrevista_Mónica |
keys | retornados // deficiência // choque eléctrico |
marcou-me muito porque tinha, também, uns miúdos que eram de uma casa de acolhimento de miúdos, tipo tutoria, e havia lá assim meninos… olha, havia meninos com grandes problemas psicológicos, por exemplo, um deles matou um gato à cabeçada, por exemplo, nós sabíamos… e não tinham apoio psicólogo nenhum. Havia outro, que era o M, que tinha vindo às aulas já com umas sequelas de África, da guerra. Tinha vindo com um primo mais velho que estudava engenharia, arrebanhou os primos e trouxe-os todos para Portugal, e depois foram distribuídos por instituições. E depois, aos fins de semana, juntava os primos todos e iam todos para uma casa ali, para… Cabo do Mundo, ou qualquer coisa assim. E esse miúdo era tão revoltado, por exemplo, tão revoltado que era de um colega da turma ao lado, tão revoltado que descaía-se, punha-se completamente nu, e trepava por cima dos telhados. [Depois] andavam os monitores lá da instituição atrás do rapaz, e o M a correr todo nu por cima dos telhados [risos]. Depois eu fiquei com o M na minha turma e com o irmão dele, que era o A. O A tinha uma deficiência numa perna, era um menino muito doce; o M cheio de fúria, até me dava choque. Quando eu me chegava ao M até [mimologismo], dava-me choques! E lembro-me, muitas vezes, o A a dizer assim: [a imitar sotaque] “M olha para o olho azul bem arregalado da professora!” Como quem diz: Olha que ela não está satisfeita contigo [risos]. Mas olha, são miúdos que não me esqueço nunca daqueles miúdos…tinha muitos miúdos, naquela altura, de retornados, daqueles retornados que não tinham tido sorte de trazer fosse o que fosse e havia ali muita carência
ciclo | 1º Ciclo |
id | Mónica-6 |
pof | entrevista_Mónica |
keys | problemas com os pais // problemas de Saúde // bullying a professor |
É uma profissão, pela parte dos pais. Vou-te dizer que o ano passado uma mãe mandou-me para o caralho. Foi assim [risos]. Foi mesmo. Porque eu telefonei-lhe a dizer que a menina [dela] estava-se a portar muito mal e ela mandou-me para o caralho. E eu a dizer assim: “Ó L, vou telefonar à tua mãe que é para a tua mãe saber.” E ela, a miúda: “Oh, tá, telefona.” Depois isso reflete-se também nos miúdos. Telefonei para a mãe, mandou-me para o caralho. Deu-me um ataquinho, fui parar ao hospital, subiram-me as tensões de tal maneira que desmaiei, caí… fui parar ao hospital.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Mónica-7 |
pof | entrevista_Mónica |
Foi complicado. Foi complicado porque é assim, nós primeiro não tínhamos lugar físico para! Não havia lugar para andar com os meninos para um lado e para o outro. Só há salas de aulas, não havia mais nada. Então iam para a cantina para fazer o ninho. Iam para uma arrecadação que nós tínhamos transformado, naquela altura, num tipo de biblioteca, porque que nem biblioteca tinha, era uma escola pequenina. Portanto, depois tinham um contentor, outros iam para o contentor. Portanto, não pensaram nos recursos para implementar aquela coisa, porque eles não pensaram que era preciso mais gente, mais salas, mais empregados, mais o que fosse. Porque normalmente fazem esse tipo de intervenção pensando na “prata da casa” e pensando que o pessoal docente vai tapar o buraquito todo que aparecer, não é? Porque ficas mais meia hora com aquela criança que não sei quê… até estás a almoçar lá, até vais ver à cantina como é que a coisa está a correr… Portanto, há essa ideia de que o professor tapa tudo, então faz-se umas ideias, uns projetos bonitos, que até pode ter dado resultado lá naquela senhora, mas quanto tu vais a um seminário promovido pela pessoa que queria replicar aquilo pelo mundo inteiro, e o ninho que [ela] traz é o ninho dos melhores alunos e não o ninho das outras crianças que nós queríamos ver o quê que eles pensavam, é lógico que os melhores alunos falavam lindamente, gostavam imenso do ninho. Gostavam, [diziam] que aquilo tinha sido maravilhoso, tinham aprendido muito, pois, é como outro dizia: Vocês aprendem de qualquer maneira, os outros é que é um bocadinho mais difícil [risos].
ciclo | 1º Ciclo |
id | Mónica-8 |
pof | entrevista_Mónica |
Quer dizer… aquela parte [em] que eu precisava do psicólogo, quer dizer, “o quê que eu posso fazer com o fulaninho ou com o sicraninho…?” Agora temos psicólogos na escola, é bom. E assistentes sociais, bom. “Olha, o quê que acha aqui do coiso?” “Eu não sei bem…” E eu não sei nada. Olhe, a mãe… há um miúdo que veio de outra escola qualquer. A mãe diz que ele é autista. Autista! Disléxico. É disléxico. E realmente o miúdo a nível de leitura e de escrita tem muitas dificuldades, principalmente a escrita, e troca as coisas. A nível oral é muito bom. Há ali qualquer coisa. “Ah, mas nós não podemos fazer nada enquanto não vier o relatório do fulaninho, do sicraninho, do beltraninho.” Então para quê que eu quero um psicólogo, não é para fazer esse despiste? “Olhe, tenho ali aquela menina…” Eu tenho um quarto ano; um quarto ano que tem miúdos a nível de segundo, é verdade. Têm apoio especializado, dois deles têm apoio especializado. Têm um RTP, têm um apoio especializado que até é dado aqui por uma nossa conhecida, que é uma excelente miúda, mas o quê que ela está a fazer? A trabalhar a divisão silábica? Pronto, especialize-se lá o trabalho. Estás a perceber? Há assim… porque depois vêm as coisas e nada… E mesmo a equipa do EMAEI, que é a equipa do ensino especial, não fala com os professores, do que se passa. E depois é preciso o relatório dos professores, então vá… [Uma] mãe manda o relatório do não sei quantos—mandei para o EMAEI—[sobre] o Francisquinho, assim: “Olha, o Francisco está com muito trabalho. É melhor a psicóloga fazer uma avaliação cognitiva, curricular, do menino, a ver quais são as dificuldades do menino.” Mandei para a psicóloga. A psicóloga: “Ó professora Mónica, nós já sabemos bem quais são as dificuldades, então é melhor fazer o relatório para enviar para o não sei que mais.” Estás a perceber? E isso desgasta—
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Nélia-1 |
pof | entrevista_Nélia |
keys | Amizade // Convívio // Relações |
nvivo | outros |
geo | Monte Gordo |
Porque aqui, por exemplo, há 30 anos ganhava-se amizade no trabalho e, neste momento, não. Nós estamos com colegas, trabalhamos com colegas, com todo o respeito, mas aquela parte pessoal, nós acabamos de alguma forma por manter uma determinada distância. Eu costumo contar que, por exemplo, eu trabalhei em Monte Gordo há 25, 26 anos e à hora do almoço, à hora do intervalo, encontrávamo-nos e íamos tomar um cafezinho, ainda saíamos da escola para almoçar “Ai, não sei o que faça hoje de almoço”, “olha, ontem fiz um esparguete, não sei quanto experimenta”. Quer dizer, isto que se passava há 25, 26 anos, neste momento não se passa nada. Às vezes, até me rio e costumo dizer que eu acho que sou a única pessoa que tem roupa para passar a ferro (risos), pelo facto de também pertencer a uma geração mais velha. Neste momento, eu sou das mais velhas aqui no meu agrupamento, sou das mais velhas a nível do primeiro ciclo e então este tipo de conversas já não, porque é assim … a conversa agora é “não sabes o que fazer de comer. Olha está ali ‘o tacho’, vai comprar ao ‘tacho’ ou vai comprar não sei onde”. Quer dizer, as coisas a nível social também mudaram e evoluíram e ainda bem. Eu continuo a viver no campo. Eu vivo junto de Cacela Velha e então continuo a viver no campo. Portanto, a minha casa fica a 15 quilómetros de Tavira e 15 quilómetros de Vila Real, da cidade. E, às vezes, no outro dia dizia-me uma colega “hoje estava tão aflita e a minha mãe telefonou-me e disse ‘oh filha mas porque é que não vais’ e eu ‘a Vila Real comprar comida? Enquanto eu vou a Vila Real faço uma panela de sopa’” (risos)
ciclo | 1º Ciclo |
id | Nélia-2 |
pof | entrevista_Nélia |
keys | Educação especial // parentesco // Nome |
nvivo | Primeiros 5 anos de trabalho |
Olhe, é assim a nível de educação especial, por exemplo, lembra-me que tinha uma miúda com uma deficiência mental e a miúda em determinada altura foi para a escola e nós chamávamos a miúda F e a miúda não respondia. Depois veio uma tia com quem ela foi criada e a tia dizia “olhe, ela não responde por F, ela responde por C”. Resultado, a mãe dela era deficiente e tinha sido, penso que, enganada - vá lá, aquele termo poderá agora ser considerado violação - , por um patrão, porque ele quando foi a tribunal disse que não a conhecia e que nunca lhe tinha feito nada. E ela disse “Ah não te lembras o me fizeste no palheiro?”. Então, o que é que aconteceu? De maneira que a mãe pensasse que a menina tinha morrido - porque não tinha condições - ou que lhe tinham tirado… de maneira que a mãe percebesse que tinha a filha, o que é que fizeram? Derama míuda a esta cunhada que não tinha filhos, mudaram-lhe o nome, e daí a menina ter sido registada com o nome de Fe era chamada de C. Para a mãe não entender que era a mesma miúda. Mas achei graça naquela altura, que a mãe ia buscá-la, às vezes, à escola para ajudar a cunhada.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Roberta-1 |
pof | entrevista_Roberta |
tempoh | 1980 |
keys | Colocação // Desafios // Confrontos |
nvivo | Incidentes críticos // Primeiros 5 anos de trabalho |
geo | Lisboa |
Bom, eu nesse ano fui colocada três meses numa escola que era num bairro bastante problemático, portanto foi logo uma colocação que me deixou arrepiada porque era no bairro da Liberdade, em 1980. Em 1980, aquele bairro era bastante problemático. Todos os dias apareciam notícias de crimes e de coisas no bairro da Liberdade e portanto, como é óbvio, eu fui para lá com muito receio, não é? Em termos de receção, eu lembro-me de ter sido muito mal recebida. As pessoas eram muito simpáticas, mas estiveram muito pouco tempo comigo. Eu nem me lembro de quem eram já. Mas lembro-me que eram professoras muito simpáticas, mas que estiveram muito pouco tempo comigo. Eu entrava à tarde, das 13h às 18h, e passaram-me a bola entre a saída delas e a minha entrada. E disseram “tens uma turma, tem 36 alunos, dos cinco aos 13 anos”. E acho que era uma turma de segundo ano, mas não interessava o ano porque eles não sabiam nada. E era uma verdadeira selva. Portanto, em relação a isso, não tive qualquer ajuda. Eu nem sequer conseguia falar com as colegas. Eu trabalhava de tarde, com duas ou três colegas ao mesmo tempo, mas era em pavilhões pré fabricados. Portanto, eu nem me reunia com os outros professores, trabalhei muito sozinha, mas também só durou três meses. Esses três meses foram curtos, mas deixaram marcas porque essa turma era muito complicada. Miúdos de cinco anos, completamente bebés, e outros de 13, que já eram repetentes e estavam todos no mesmo nível de ensino - que já não sei qual era, se era primeiro, se era segundo -, mas a verdade é que eles estavam todos muito atrasados no nível académico e eram muito indisciplinados. E tive, por exemplo, uma situação de um desses miúdos de 13 anos que levou uma cobra para a escola, para me assustar claro, e eu tive que fingir que não me assustava e deixei-o vir com a cobra até à minha secretária, para ele mostrar a cobra à turma e fazer aquele espetáculo todo. Lembro-me de ter tido imenso medo, mas fiz isso tudo e ele depois lá ficou pacato e não me chateou mais. Mas todos os dias tinha este tipo de confrontos.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Roberta-2 |
pof | entrevista_Roberta |
keys | Corpo docente envelhecido // Memórias // Transições |
nvivo | outros |
geo | Lisboa |
E pronto, aí apanhei uma turma de primeiro ano que já era toda equilibrada em termos de idades, mas tinha metade da turma de Campo de Ourique e metade da turma do Casal Ventoso. E portanto tinha uma mistura bastante boa, quanto a mim, porque equilibrava bastante. E estive aí até o final do ano. Um primeiro ano numa escola de Campo de Ourique que eu gostei imenso, onde eu gostei imenso de estar. Depois acho que fui um ano para uma escola em São Sebastião, que não foi assim muito agradável, não tinha muita dificuldade mas tinha um corpo docente muito envelhecido. Eu era a única miúda, eu tinha 19 anos e nesse aspecto custou-me. Depois voltei a Campo de Ourique por mais dois anos e adorei. E aí fiquei amiga de alguns professores e foi muito bom. Depois andei por algumas escolas em Lisboa até ter sido colocada… Deixa ver se eu consigo lembrar-me… a partir da altura em que nasceu a minha filha eu fui colocada… Ah! estive noutra escola, também, na D.M., em Lisboa. E depois engravidei da minha filha e logo depois de fazer a licença de parto, fui colocada numa aldeia no Algarve. E não queria ir para lá e fiz várias diligências para não ir para lá. Entretanto fui colocada lá e acho que pus atestados médicos, já não sei como é que resolvi a situação, e depois, como já não podia pôr mais atestados médicos, consegui uma cunha para ir para o Ministério da Educação. Eu que tinha dito que não aceitava cunhas! E a pessoa que me perguntou se eu queria uma cunha, eu comecei aos gritos com ela e disse que não aceitava. Passado dois meses estava entre a espada e a parede: ou ia para o Algarve, para um sítio que era uma aldeia e que nem sequer dava para vir ao fim de semana a Lisboa porque só tinha camionetas e eu não conduzo - nunca conduzi, nem conduzia - e portanto ou ia para o Algarve e tinha que me separar do meu marido e da minha filha, que tinha seis meses na altura ou aceitava uma cunha. Pronto, pedi a cunha!
ciclo | 1º Ciclo |
id | Roberta-3 |
pof | entrevista_Roberta |
keys | Comissão instaladora // Ludoteca // Amizade // Relações // Projetos |
nvivo | Fatores de mudança // oportunidades // Sentimentos sobre profissão |
Por exemplo, quando fui coordenadora há mais anos com a professora T. - nessa tal comissão instaladora - foi uma fase também muito engraçada, porque nós quando chegámos, tivemos lá um apoio enorme de uma professora. Nós fomos para lá porque tínhamos uma colega que estava lá a dar aulas. E a diretora engraçou connosco, ou seja, gostou muito de nós, achou que nós éramos muito interessadas e interessantes, então quis conceber um projeto em que nos rentabilizava. Eu fui para a ludoteca e criei a ludoteca. A outra professora, que era a C., tinha acabado de fazer formação na área da língua portuguesa e foi também trabalhar o Português com os alunos e com os professores, e dar formação na escola. E o outro professor, que é o professor Z.C., que ainda está na escola comigo, tinha uma especial vocação para as plantas e sabe imenso e então ficou a trabalhar Estudo do Meio com os alunos, a desenvolver projetos e também não tinha turma. Portanto nós ficámos os três, e éramos os três amigos, da mesma idade, já éramos amigos fora da escola, portanto foi muito divertido porque ficámos os três sem turma, no fundo a fazer aquilo que nós queríamos fazer e gostávamos de fazer. Foi muito bom!
ciclo | 1º Ciclo |
id | Roberta-4 |
pof | entrevista_Roberta |
keys | Greve // Reivindicação // Sindicatos // Desafios |
nvivo | Sentimento sobre a profissão // Obstáculos |
Eu não tenho nenhum partido. Nem nunca pertenci a nenhuma organização nem nada de nenhum movimento. Sou de esquerda e sempre que entendi que devia fazer greve, fiz. Eu sou sócia do SPGL e sempre fiz greve. Aliás, na nossa escola, nesta escola onde eu estou agora, houve uma altura em que praticamente todos os professores faziam e a escola fechava porque tínhamos todos os mesmos princípios e, portanto, se havia razão para fazer greve, se achávamos que havia, fazíamos todos. Às vezes havia uma ou outra pessoa que não fazia ou que fazia porque não queria trabalhar sozinha. Neste momento eu estou um bocado farta dessa luta, embora tenha feito greve agora no dia 16, quando a FENPROF fez. E eu fiz greve com vontade. Eu acho que toda a luta é justa, mas eu estou muito cansada e estou farta de descontar dinheiro - porque eu fiz greves a vida toda - e o que eu vejo à minha volta é que toda a gente está a refilar e são muitas as pessoas que estão a refilar. Mas do que eu vejo, pelo menos à minha volta, só as pessoas de idade é que fizeram greve e isso fez-me um bocado impressão. Só eu e outras pessoas tão velhas como eu, ou mais velhas, fizeram greve. Fomos quatro e desses quatro, só dois é que têm turma. Portanto, só duas turmas é que foram afetadas. As outras seis turmas trabalharam e as outras seis turmas têm professores novos, entre os 30 e os 40, que estão cheios de problemas mas que não fizeram greve, embora tenham ido à manifestação e tenham refilado. Mas não fizeram greve. Claro que se justificam com a falta de dinheiro, eu também quando faço greve também perco dinheiro. Claro que perco mais, porque ganho mais. Mas eu sei o que é perder dinheiro e sei o que é estar aflita de dinheiro, porque muitas vezes estive com falta de dinheiro ao longo da minha profissão. Nem sempre o meu marido trabalhou e, portanto, houve alturas em que tinha mesmo muito pouco dinheiro, portanto eu sei o que isso é. Mas fico triste de sermos só nós, os mais velhos, a fazer greve nesta altura do campeonato. Quer dizer, eu pensava que dava agora a vez aos mais novos. E, não sei, vamos ver, isto agora se calhar vai mudar um bocado. Eu acho que as pessoas estão a acordar e se calhar agora vai haver mais gente a fazer greve. Mas eu acho que as razões são todas justas. Não sou a favor desta greve de todos os dias nem nada disso, mas por exemplo, aquela greve que era de todos os sindicatos entristeceu-me termos sido só nós a fazer.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Roberta-5 |
pof | entrevista_Roberta |
keys | Agrupamentos de escola // Projetos // Computadores // Desafios // Recursos materiais |
nvivo | Fatores de mudança // obstáculos // oportunidades |
Ah sim, os momentos marcantes foi quando começamos a ter que nos reunir com outras escolas, porque eu fiz parte dessa altura, no sentido de formar agrupamentos. Foi complicado porque o nosso agrupamento, a Câmara, tanto queria agrupar para um lado da cidade, como queria agrupar para outra. E foi complicado e acabámos por ficar com o P. M., portanto ficámos com escolas da outra colina. Estamos muito longe das outras escolas, e nesse aspeto não foi nada bom. Houve muita crispação no início. Agora acho que as coisas estão mais, já estamos há muitos anos juntos e, portanto, acho que não é grande o problema. Apesar de estarmos separados fisicamente, acho que estamos juntos. Mas foi difícil e para mim foi desagradável e foi desagradável justamente aquilo que eu expliquei. Quer dizer, nós éramos autónomos na nossa escola, éramos reis e senhores e fazíamos aquilo que queríamos e tínhamos condições excecionais, nomeadamente, nós tivemos uma sala - porque eu e a T. concorremos a projetos que deram muito dinheiro à escola - uma sala com 11 computadores que dava para 22 alunos. Essa sala deixou de ser sala de aula, passou a ser a sala dos computadores, portanto dava para uma turma inteira. Isto numa altura, em 1990 e pouco, numa altura em que não havia computadores nas escolas. E a nossa escola estava de facto muito à frente. Para além de que havia professores como eu, a T. e a C., que era outra professora, que acompanhávamos os miúdos nessa sala para fazerem tarefas. Portanto, fazia parte também do nosso projeto. Passado poucos anos essa sala teve de ser encerrada, os computadores foram-se estragando e deixámos de ter internet, que tivemos sempre. Na altura, era paga por um projecto qualquer. Deixámos de ter internet, andámos 20 anos para trás, foi horrível! Até agora, só este ano é que a minha escola tem internet. Só tinha nas salas, uma entrada em cada sala. Agora é que já há no espaço da escolas e mesmo assim é complicadíssimo porque há uns computadores que estão estragados e uns que não dá para mandar imprimir e pronto. Existe uma série de problemas. Eu estou numa sala, é a melhor sala, tem um quadro interativo que está estragado, mas que serve de projetor e, portanto, tenho um projetor enorme, uma tela enorme sempre ligada ao computador, o que é muito bom. Portanto, sou privilegiada. Alguém ficaria naquela sala e fiquei eu, mas com a condição de sempre que quiserem utilizar este material, eu troco de sala. A verdade é que poucos professores pedem, porque se calhar também não é prático para eles, mas eu disponibilizo-me a ir com a minha turma para outra sala para quê? Para que este material possa ser usado. Mas realmente só este ano é que as condições melhoraram um bocadinho. Por exemplo, anteontem, recebemos umas colunas que andávamos a pedir há dois anos.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Roberta-6 |
pof | entrevista_Roberta |
keys | Visita de estudo // Família // Doenças // Comunidade // Educação inclusiva // Obstáculos // Oportunidades // Institucionalização |
nvivo | Incidentes críticos // Obstáculos |
geo | Lisboa |
Assim de repente, histórias engraçadas tenho imensas de certeza, mas de repente não me lembro de nenhuma para contar. Posso contar uma, que eu nunca me esqueci desse momento. Mas tenho muitas outras, de certeza, e não me lembro agora. Então eu estava a organizar uma visita de estudo com a minha turma de quarto ano, a meias com outra professora que também ia levar o quarto ano, ao Porto. Íamos três dias para o Porto, e correu muito bem. E eu queria levar a turma toda e havia um aluno cigano, cujos irmãos andavam também lá na escola e que, sempre que havia visitas de estudo, essa família não deixava os miúdos irem. E disseram-me logo “ah, o D. não vai!”. E eu disse “Ah, eu vou falar com o pai”. Mas o pai dava-se muito bem comigo, desde sempre, e fazia tudo o que eu pedia. Eu, quando o chamava, ele vinha logo. E se eu pedia para ele comprar ao miúdo um caderno, ele comprava. Pronto, era muito cumpridor e contava-me tudo o que se passava com os apoios que tinha. Ele incompatibilizou-se com várias pessoas lá na escola, essa incompatibilidade era associada às questões dos apoios que ele tinha, porque havia quem achasse mal que ele tivesse aqueles apoios todos. Eu nunca falei nisso. Ele foi-me sempre dizendo o que é que ganhava, o que é que não ganhava. E o que eu sei é que ganhei um amigo, que de vez em quando encontrava-o, eu vou à Feira do Relógio regularmente e encontrava-o. Uma vez fui a um concerto de Xutos e Pontapés e lá estava o meu aluno, com ele, a vender balões, porque o meu aluno também vendia e andava no metro também a pedir. Enfim. Um dia quando nós estávamos a organizar isto, eu pensei “como é que eu vou convencer o pai do D. a deixá-lo ir?”. Chamei o senhor, tive uma reunião com ele, expliquei-lhe como é que ia, para onde é que íamos, como é que íamos. E disse-lhe “ele vai comigo, vão mais pais e vai outra professora”. E entretanto expliquei-lhe os custos que aquilo ia ter e disse que não era preciso pagar a quantia que ia caber a cada um porque nós tinhamos juntado bastante dinheiro em vendas. Mas que era preciso, pelo menos, entrar com uma determinada quantia. E ele só me disse assim “está bem, quanto é que eu tenho de lhe dar?”. E sacou de um molho de notas “Quanto é que eu tenho de dar?”, e eu disse qual era o mínimo que nós tínhamos estipulado para os miúdos com dificuldades e ele deu-me logo. Se eu tivesse dito três vezes mais, ele tinha dado três vezes mais (risos). E depois a piada disto é que o aluno já estava no quarto ano e não sabia ler. Ele era do ensino especial e não sabia ler, coitado, estava a começar a aprender a ler no quarto ano. E o que é que aconteceu? Nós tínhamos que nos encontrar no Cais do Sodré muito cedo, às 07h30 da manhã. E eu fui daqui, fui de minha casa mais cedo. Cheguei lá às sete e já lá estava o D. com uma mala de cartão. Mesmo mala de cartão! E quando eu cheguei ao pé dele, disse “Então já chegaste há muito tempo?”, e ele “ui, há tanto tempo! Já estou farto de ler”, e eu “Trouxeste livros?”, “Já estou farto de ler”. Ele, que não sabia ler, levava o Tio Patinhas ou lá o que era para se entreter e disse-me “Já estou farto de ler”. A excitação da viagem foi tanta que ele foi para lá cedíssimo, sozinho, ele estava ali sozinho, com dez anos, numa estação de comboios. Foi connosco e foi espetacular. Para mim foi muito bom e para ele também. Depois tenho outras histórias muito bonitas. Tenho um um aluno - que ainda é o meu menino - que é um aluno que eu tive quando fui em 1994 para esta escola. Eu tive-o do primeiro ao quarto ano, e ele quando estava no primeiro ano perdeu a mãe, portanto, com seis anos, perdeu a mãe. Da mesma maneira como eu perdi a minha com um cancro nos pulmões, sendo que aquilo que eu passei com 30 anos - que foi ver a minha mãe sem conseguir respirar e com oxigénio em casa e a ver-se que ia morrer - ele passou com seis. E depois disso, depois da mãe morrer, eu protegi-o imenso! Ele estava com o pai, ficou com o pai e eram três irmãos. E o pai já bebia muito e começou a beber ainda mais depois da morte da mãe. Mas ele tratava bem dos filhos, só que eles viviam numa casa horrível, com umas condições horríveis, e eu um dia trouxe-o à minha casa para passar o fim de semana comigo, a ele e ao irmão. Eu era professora dele, mas trouxe-o a ele e ao irmão, que era de outra professora, para passarem o fim de semana aqui em casa com os meus filhos. Bem, primeiro, mal chegaram tive que lhes tirar quilos de piolhos, irem direto para a banheira, depois pronto, tivemos um fim de semana muito intenso, fomos ao cinema, fizemos coisas, passeamos, compramos roupa. E depois eu fui levá-los a casa, e eu era defensora de que aqueles miúdos tinham que estar com o pai, porque o pai era pai e apesar de não ter um comportamento exemplar, era pai, gostava muito deles e acabava por se calhar ser melhor do que eles serem retirados à família. Mas quando fui levá-los a casa - eles também tinham vindo para a minha casa todos mordidos porque havia pulgas na casa deles - quando eu fui levá-los a casa e vi a casa… E vi uma rapariga que lá estava que era uma companheira do pai, nessa altura, que era uma miúda com 15 anos, fiquei tão horrorizada, tão horrorizada! Com o mau cheiro, cheirava a xixi porque a irmã deles fazia xixi na cama com 12 anos e depois dormiam num beliche que se armava, nem sequer podiam ter o beliche aberto. O pai e a dita cuja também dormiam num sofá que também era fechado. Era tudo apertadíssimo, uma coisa horrível! Depois, nos dias seguintes, apareceram outra vez todos picados e pronto. E eu tinha sido consultada pelo assistente social que acompanhava e acabei por falar com a assistente social e dizer o que é que eu tinha visto e isso contribuiu para que eles fossem retirados ao pai. Para mim foi um bocadinho violento. De certa maneira percebi que fui eu que os retirei, não é? Se eu não tivesse atuado - não fui eu que retirei - mas eu dei azo a que eles fossem retirados. E senti muita responsabilidade nisso. Mas acho que correu tudo muito bem. Eles foram para a Casa Pia. Curiosamente estavam lá quando aconteceu o caso do Bibi, mas acho que não lhes aconteceu nada. Mas ele continua a ser meu amigo e encontramo-nos de vez em quando. Agora falamo-nos no Instagram, de vez em quando, e andamos a combinar… Ah, mas isto para dizer que ele queria ser cozinheiro e é cozinheiro! E o irmão é pasteleiro. Portanto acho que estão os dois com trabalho. Estão os dois bem, o irmão já tem uma mulher e uma filha. E ele já tem mulher há bastante tempo. Está tudo bem encaminhado. Estragou-se a relação com o pai, não sei bem porquê. Ele disse-me “não tenho estado com o meu pai e o meu pai é sempre a mesma coisa”. Mas acho que não fiz mal, porque acho que eles precisavam deste apoio. E tiveram sorte também, porque nem todos os sítios são bons.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Roberta-7 |
pof | entrevista_Roberta |
keys | Família // Obstáculos // Apoio social |
nvivo | Obstáculos |
Era horrível e o pai no estado em que estava, tanto tinha aquela rapariga como tinha outra qualquer. Eu tinha dado várias coisas para eles levarem para a irmã que tinha dez anos e a rapariga que tinha 14 - tinha dado várias malas que eram da minha filha e coisas assim - e a rapariga disse “Isto é para mim, isto é para mim”. Pronto, e como era a mulher do pai… e eles ficaram com um ar, nem refilaram nem nada e eu fiquei horrorizada com aquilo. Tudo aquilo me fez imensa confusão, tive uma noite sem dormir depois de ter saído de lá. Ou seja, eu fiquei impressionadíssima. E depois não dormi essa noite. Na segunda feira falei com o assistente social e disse o que pensava. Isso não é propriamente uma história alegre, mas é uma história. Para mim, foi das histórias mais importantes. Não só essa, depois também tenho a de uma aluna minha, mas é uma história parecida.
1º Ciclo
ciclo | 1º Ciclo |
id | Zacarias-1 |
pof | entrevista_Zacarias |
keys | Permanecer na escola // Fuga |
nvivo | outros |
Ui! Também apanhámos tanta coisa, desde miúdas, tive uma miúda que passou o terceiro período a escrever papéis que não queria sair da escola, que ia fugir. Cheguei a ter uma gaveta cheia de papéis e comecei a ficar preocupado. Disse que ia mostrar à mãe, disse que não queria que eu mostrasse à mãe. Mas houve uma altura em que tive que convencê-la mesmo, que tinha que mostrar à mãe. Ela não queria sair da escola, queria que a chumbasse de propósito para não sair da escola. Estava-me a preocupar bastante naquela altura, até pedi para mostrar os papéis a uma psicóloga para ver que caso era aquele, porque realmente aquilo não era muito normal. Eu sei que há miúdas que no final do ano dizem que não querem ir embora e tal, mas aquela não. Escrevia-me textos de manhã, punha na secretária, às vezes nem via que os deixava lá. Chegou uma altura que fiquei muito preocupado.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Zacarias-2 |
pof | entrevista_Zacarias |
keys | Comunidade // Família // Conselho escolar // Visita de estudo |
nvivo | incidentes críticos |
Normalmente, é assim, nessas atividades que fazíamos a comunidade ia sempre, ia o avô, ia o pai, ia sempre tudo. Agora, em termos caricatos, houve uma altura que também tive uma colega, estávamos num conselho escolar, e achou por bem convidar também os pais para irem ao passeio de fim de ano. Fomos a Aveiro. Lá, a nossa preocupação foi correr atrás dos pais. Nunca tinham visto o mar. Já não bastava os filhos, mas preocupamo-nos mais com os pais do que com as crianças (risos). E disse-lhe “nunca mais quero cá ter pais ao pé de mim, que andamos nós atrás dos pais depois” (risos), que eles é que iam lá pelo mar dentro sem conhecerem aquilo, e nós aflitos!
ciclo | 1º Ciclo |
id | Zacarias-3 |
pof | entrevista_Zacarias |
keys | Visita de estudo // ver o mar // pobreza // apoio do professor |
nvivo | outra |
A maior parte deles não, naquela altura no interior muitos não tinham visto. Naquela altura era quase uma tradição nossa levar os miúdos a ir ver o mar, porque havia muitos que nunca tinham visto o mar. Agora já não, felizmente! Mas naquela altura havia muita gente mesmo. Sabe que nas aldeias a gente lidava com tudo e com casos extremos de pobreza. Havia muita coisa, muita miséria, muitos miúdos que iam para a escola sem comer, em condições miseráveis, apanhámos de tudo. E aí o professor, às vezes, ainda era um apoiozito até para os pais e até mesmo para os miúdos.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Zacarias-4 |
pof | entrevista_Zacarias |
keys | Condições de trabalho // Escola // Meio rural // Dificuldades |
nvivo | Obstáculos |
Olhe, eu estive numa escola um ano que era ao lado de um curral de vacas, paredes meias, o quadro tinha um metro quadrado e estava pendurado com dois arames, a um canto. O chão, buracos por todo o lado, se deixava cair um lápis, lá ia o lápis. E tinha escolas também muito bem equipadas. Felizmente não há muitos casos de escolas a esse nível, mas havia muita falta de tudo. Os políticos nunca ligaram muito ao primeiro ciclo. E quando íamos pedir ,pensavam que estávamos a pedir para nós, “Ah estão aqui a chatear outra vez e a pedir ajuda”. Até isso os incomodava.
ciclo | 1º Ciclo |
id | Zacarias-5 |
pof | entrevista_Zacarias |
keys | Dificuldades // Família // Comunidade |
nvivo | Obstáculos |
Nas aldeias, em todas elas, normalmente existiam muitas dificuldades. Os pais também não eram muito funcionais, uma ou duas famílias de que me recordo que os pais também, coitados, precisavam de apoio e também não tinham. Mas ligavam à escola, gostavam e recomendavam aos miúdos. Não havia falta de educação, havia uma boa relação. Passávamos na rua e era como se fossemos um elemento da comunidade, íamos a qualquer lado e era como se fossemos da comunidade. Ainda hoje! Conto-lhe uma situação. Nós às vezes fazíamos umas festinhas só para nós e no fim do ano resolvemos fazer lá assim uma festinha; havia uma senhora que tinha um aviário e foi lá levar dois franguinhos à escola para comermos (risos). As escolas não eram bem o centro da aldeia, mas davam muita vida, muita vida! Era o barulho, era o movimento.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Adelina-1 |
pof | entrevista_Adelina |
keys | Dificuldades // Condições de trabalho |
nvivo | Obstáculos |
geo | Mindelo |
Não tenho assim…eu acho que são todas mais positivas, do que propriamente negativas. Pronto, as instalações eram muito más! Eu depois fui para Mindelo e no Mindelo era novamente uma casa senhorial em que eu dava aulas, penso eu, no sítio onde os animaizinhos tinham dormido. Mas pronto, muito bem, porque até era quentinho o sítio. Mas pronto, era assim um bocadinho… por outro lado, só era muito complicado porque nós não tínhamos acesso automóvel. Eu não tinha possibilidades de comprar automóvel e, portanto, tínhamos que fazer os percursos todos de comboio era muito complicado (risos). Eu vivia em Gaia, nessa altura e, portanto, eu fazia o percurso de trólei até ao Porto e depois da estação da Trindade até ao Mindelo. Isso fazia com que eu tivesse saído mais ou menos às 6h00 da manhã de Gaia. Tinha acabado de ter a minha primeira filha e, portanto, era assim uma coisa um bocadinho complicada. Pronto, com aquelas questões maternais, porque eu alimentava a C. com leite materno e, portanto, durante a manhã eu tinha que tirar o leite para conseguir fazer o resto do trabalho durante a manhã e depois vir muito depressinha, chegar ao infantário e a primeira coisa que eu fazia era dar-lhe a mama para me aliviar um bocadinho. Pronto, profissionalmente também gostei de trabalhar naquele meio.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Adelina-2 |
pof | entrevista_Adelina |
keys | Saúde // Dificuldades // Assistente social |
nvivo | Obstáculos |
Depois outra coisa, nós e a escola, para alguns alunos… eu lembro-me que muitas das vezes também éramos nós que despoletávamos um bocadinho as questões sociais… havia alunos, eu tinha um aluno que sistematicamente chegava à escola com dor de dentes. É evidente que todos nós somos capazes de entender que uma dor de dentes, para mim, é das coisas mais horríveis. Então, o menino, pronto lá conseguimos que o menino - também já tínhamos um bocadinho historial da assistente social que nos fez o historial deste menino - vivia só com a mãe, o pai estava preso, e a mãe tinha muitas complicações de saúde e estava sistematicamente no hospital. Portanto, houve alturas em que o menino estava a viver quase sozinho. Apesar de, enfim, darmos conhecimento à Junta de Freguesia, à assistente social mas, no entanto, houve ali um período em que, como é capaz de perceber, há um trabalho que tem que ser feito. Primeiro, perceber se alguém da família quer ajudar esta criança. Se se esgotar esta possibilidade, se calhar teremos que ver outra possibilidade, Mas esgotar estas primeiras possibilidades, que eram as ideais, não é? Portanto, entregar a criança às famílias. Houve uma altura em que nós dissemos: “Não, a gente tem que fazer alguma coisa”. Lá conseguimos consulta de dentista, que também é uma coisa rara, no centro de saúde. O único centro de saúde que eu conheço que tinha dentista era o de Leça da Palmeira.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Adelina-3 |
pof | entrevista_Adelina |
keys | Saúde // Apoio social // Institucionalização // Dificuldades económicas |
nvivo | outros |
Mas realmente, dentista não há em sítio nenhum, a não ser em particular ou nos hospitais - nos hospitais agora, que na altura até nem sei. Conclusão, eu corri um risco. Meti o menino no meu carro e ia fazer as consultas com ele. Levava-lhe a roupa para casa para lavar, depois dizia-lhe: “Atenção, a roupa não pode ir, logo à primeira, para lavar porque senão a roupa esgota-se”. Ele dizia: “Está bem professora, está bem!”. Depois, o final da história é feliz e menos feliz. Este menino teve mesmo que ser institucionalizado - é uma verdade. Mas depois eu fui visitá-lo à instituição e, enfim, acho que teve um percurso interessante porque ele depois fez o curso de pasteleiro e conseguiu um emprego. Pronto, são aquelas histórias giras e que nos tocam e que ficam, e realmente essas para mim foram as fundamentais.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Aldina-1 |
pof | entrevista_Aldina |
keys | Família // Encarregados de educação |
Mal-estar, é pouco. Mas guardo, acima disso - e vou-lhe contar só por graça, porque vai-se rir- guardo nestes 39 anos, guardo sempre o bom senso, sempre o bom senso e o respeito por mim, pelo trabalho dos meus colegas, mas sempre por mim. Porque havia alguns pais que diziam assim “oh professora, a professora de Ciências faz coisas que não deve”, porque eu dizia aos meus alunos - e fui dizendo conforme fui envelhecendo - dizia aos meus alunos “qualquer coisa que vocês tenham com a professora A, B ou C, vocês não vão dizer lá fora, vocês conversam comigo. Falamos em aula, ou conversamos em aula em grupo, ou conversam sozinhos comigo”. Porque há coisas que nós achamos que é assim e depois precisam de ser purificadas, entre aspas, precisam de passar ao crivo e “venham falar comigo, nós conversamos”, e aos pais eu dizia sempre a mesma coisa, “qualquer coisa que tenham contra este, contra aquele, conversem comigo, mandem-me mail. Mandem uma mensagem na caderneta, telefonem para a escola. Eu posso não reagir rapidamente, mas reajo”. Portanto, conversamos e eu tenho sempre encarregados de educação que dizem “a professora diz para nós virmos falar consigo, e olhe, surgiu isto aqui, e eu vim falar consigo”. Nestes 39 anos, o que eu guardo, sobretudo… mas que eu acho que também tem a ver com a minha maneira de estar, com o ser clara. Eu sou capaz, às vezes eles na sala de aula dizem “uma pessoa chamou-me filho da…” e eu digo “quê? chamou-te filho da puta. Mas tu não és filho da puta, a tua mãe não é nenhuma puta. Portanto, tu não és filho da puta”, eu digo isto em sala.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Carmo-1 |
pof | entrevista_Carmo |
keys | Condições de trabalho // Laboratório // Comunicação social // Instalações |
nvivo | Obstáculos |
Eu passei por fases muito complicadas. Ainda tenho uma história que eu vou contar porque foi muito importante para mim, já vais ver qual. Quando eu estava na E., eu dava aulas em salas de laboratório, naquela altura eram todos miseráveis. Eu tinha que dar aulas em apneia, com minha cabeça fora da janela para respirar um pouco. Eram cheiros nauseabundos, mesmo naquela altura. Depois, passo para uma escola sem instalações cobertas. Na altura, mandávamos, diariamente para o ministro fotografias das condições que existiam, dos seus [dos alunos] joelhos cheios de sangue. Também fizemos postais ilustrados, com ajuda do meu irmão [interrupção longa por chamada telefónica]. Depois, por último, fizemos uma manifestação em bicicleta com a escola toda com cartazes a dizer: “Queremos um ginásio, não queremos um aquário!” Chamei a TVI, a SIC. Está filmado, porque apresentei num cogresso. No ano em que eu saio [dessa escola], começam a construção do pavilhão. Por isso, eu penso que tudo o que nós fizemos teve o seu efeito e eles têm, entretanto, condições mais dignas.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Carmo-2 |
pof | entrevista_Carmo |
keys | Maria de Lurdes Rodrigues // Ministra // Avaliação de desempenho // Formação |
nvivo | Políticas // Obstáculos |
Outra fase que me marcou muito foi exatamente essa entrada bombástica da [ministra Maria de] Lurdes Rodrigues. Eu escrevi uma carta para ela, foi publicada na altura. O Matias Alves, aí do Porto, convidou-me para escrever um manual a misturar Educação Física e Cidadania, na altura, deu-me um prazo muito curto. A carta que escrevi para a ministra não teve resposta, então foi publicada pelo Matias Alves, nesse boletim que se chamada ‘Correio da Educação’. Eu percebi que, com todas as medidas que ela foi tomando, com o modelo de avaliação de desempenho - uma injustiça e de uma falta de qualidade abismal - a forma como ela tratou os professores, com o facto de ela ter tirado toda a hipótese que nós tínhamos de formação. Ela tirou-nos! Nós tínhamos, na altura, tínhamos tempo para fazer formação, tempo específico, vários dias por semana - eu usava sempre. [Ela e sua política] rebentou com isto, com a avaliação do desempenho docente. Desrespeitou tanto os professores. Foi uma fase que marcou um bocado e que, de alguma forma, também veio a condicionar a minha saída da faculdade e a minha opção de ficar [como] professora na escola.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Cecília-1 |
pof | entrevista_Cecília |
Não, não foi sempre a mesma escola. Como disse, o grupo 200 era um grupo bastante difícil, no final dos anos 1980 e 1990. Nós saltávamos muito, porque andávamos em mini-concursos, os horários eram incompletos… foi um percurso bastante difícil. Estive em muitas escolas, nem sempre aqui na área do Grande Porto, por isso tive experiências bastante enriquecedoras, desde o ensino recorrente, também trabalhei com várias faixas etárias e tive a certeza – agora fazendo, também, um retorno um bocadinho atrás - que gostava mesmo e era mesmo aquilo que queria. Quando fui colocada numa situação, assim quase de fim de linha, tive oportunidade de agarrar outro desafio. Tive oportunidade de entrar numa multinacional ligada aos medicamentos, efetivamente, com uma remuneração e um desafio até, em termos profissionais, muito relevante. Fiz o percurso todo, fiz as entrevistas todas, fiz os exames médicos e fui aceite, como candidata. Entretanto, recebo uma chamada do CAI a dizer que tinha um horário de oito horas na escola de N. O meu marido olhou para mim e disse: “Nem penses, tu estás louca. Tu, com uma proposta destas…” – de uma empresa reconhecida, em termos internacionais. Uma empresa portuguesa, mas com um reconhecimento grande. “Nem pensar, não vais sequer ponderar, porque…”. Eu pensei aquela noite e disse: “Não, não é isto que eu quero, eu quero a sala de aula.”. Eu tive a certeza que era mesmo isto que era a minha profissão e que não conseguia deixar a educação. Era isto que me fazia feliz e continua a fazer feliz.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Cecília-2 |
pof | entrevista_Cecília |
Muito diferente, porque aprendi muito, também. Trabalhei com outra faixa etária, com ensino recorrente, mas com pessoas já acima dos 50 anos de idade. Eu, a certa altura – as aulas eram aulas muito práticas - aprendia mais com eles do que eles aprendiam comigo, porque eram, no fundo… tudo o que eu lhes transmitia eram práticas do dia-a-dia, aquilo que lhes podia servir, no fundo, para o dia deles, para lhes tornar o dia mais fácil. Eles passavam-me muitas coisas do conhecimento deles, também, da terra… era muito engraçado, porque eles faziam questão de me tratar muito bem. Foi um ano muito difícil, porque eu saia às 23h… era muito protegida, porque era a única professora mulher - era muito protegida por eles. Como fazia a viagem todos os dias, vinha todos os dias para o Porto, eles vinham sempre com aqueles miminhos, com os cogumelos, com a carqueja, com o coelhinho ao fim-de-semana. Eu dizia: “Não quero…!”. Eles faziam sempre questão e trataram-me sempre muito bem. Foi uma experiência muito enriquecedora, porque aprendi muitas coisas com eles, desde o apanhar os cogumelos a saber que cogumelos é que não se podiam apanhar e que eram venenosos… aprendi muito, gostei muito, também, de lá estar. Fiz lá muitos amigos, e faço questão, se não todos os anos, de ir muitas vezes a Vila Pouca e ao Bragado – de dois em dois anos, quando não consigo ir todos os anos – e estar com eles, porque são pessoas que nos marcam, ao longo da nossa vida, são pessoas que nos marcam e que vão ficando. Nós deixamos um bocadinho de nós e eles deixam também as marcas connosco.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Cecília-3 |
pof | entrevista_Cecília |
Houve algumas situações que vieram na comunicação social, e mesmo eu estando na direção… pais que entravam pela escola e que, sem qualquer razão, nem ouviam sequer os professores, nem ouviam sequer os diretores de turma, punham tudo em causa e, acima de tudo, não acreditavam no trabalho dos professores. Isso fez com que os professores também não tivessem vontade…. a motivação… fosse muito pouca para crescerem, para crescerem na profissão, e ficassem na tal base dessa pirâmide, não acompanhassem a evolução da sociedade. Portanto, acabaram por se desmotivar porque, em termos de carreira, se calhar, não fez sentido fazerem formação ou tanta formação quanto seria necessário. Também não acreditam, ou deixaram de acreditar, na avaliação do desempenho docente… deixaram de acreditar, no fundo, na escola que tinham.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Cecília-4 |
pof | entrevista_Cecília |
eu tive, neste agrupamento, as chamadas turmas difíceis, também turmas de alunos dos considerados bons alunos, algumas turmas com a professora L… mas turmas difíceis, turmas SEF. Tive um ex-aluno… no outro dia, ia a sair cansada, mas muito cansada, da direção, seriam 20h. Vi um carro a chegar, vermelho, assim todo turbinado, como se diz. Então parou: “Ó professora Cecília!” Eu olhei e quem era? Um aluno - que eu posso dizer o nome, que depois vai salvaguardar, de certeza, na entrevista - era um aluno, o B., que era um aluno que eu já tinha aberto não sei quantos processos disciplinares. Coitado, era um aluno [que] não tinha pai, não tinha mãe, era o avô, ele estava entregue ao avô e era o aluno que me deu mais problemas… que não imagina. Então, o avô passou as passas do Algarve com aquele neto. Todos os dias estava na escola, ele teve não sei quantos processos disciplinares… ele não era meu aluno, mas eu estava na direção e todos os dias ele ia à direção e todos os dias eu falava com ele e todos os dias tentava que ele mudasse de comportamento. Eram sempre as faltas disciplinares a cair na aplicação. Entretanto: “Ó professora Cecília!”. Eu fiquei tão orgulhosa, nem imagina, porque ele foi lá de propósito. Então, o que é que ele lá foi fazer? Ele estava no carro com a namorada, que era mulher, e foi lá mostrar-me o bebé, que tinha acabado de ser pai. O bebé tinha para aí 15 dias, tinha uma empresa, era picheleiro, tinha uma empresa de pichelaria. “Ó professora Cecília, está a ver? Tanto me deu na cabeça e olhe, está a ver? Tenho uma pichelaria. Quando precisar…!” – portanto, estas coisas… - “… eu sou pai, está a ver?” – então tinha no carro escrito F., que era o nome do filho. Eu fiquei tão feliz. Disse: “Ó B., estás a ver os cabelinhos brancos, estás a ver? Foste tu, alguns daqui foste tu…!” Mas fiquei tão feliz… foi um dos alunos mais complicados, e uma pessoa conseguir dar rumo a um aluno destes… não conseguimos salvar todos, mas pronto, conseguimos, efetivamente, dar rumo a um aluno. São estas coisas que, no fundo, também nos marcam e ficamos – não se esquecem de nós. Foi propositadamente à escola mostrar-me que tinha atinado e que tinha sido pai e mostrar-me o filho. Fiquei mesmo feliz
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Constança-1 |
pof | entrevista_Constança |
keys | novatos // veteranos // hierarquias na sala dos professores |
nvivo | Percursos |
Portanto, havia alguns velhotes que tinham lá uma - como nós dizemos agora sou eu a velhota - tinham lá uma camilha e houve um episódio muito interessante que, no primeiro dia, quando lá cheguei, não fazia a mínima ideia e entrei na sala dos professores e havia um pequeno bar para os professores. Cheguei bastante antes da hora, expectante com tudo o que me iria acontecer, e sentei-me lá numa camilha que não era suposto, mas eu não fazia a mínima ideia! E então apareceram uns colegas mais novos logo a seguir e quando tocou para a saída disseram-me “olha tu és nova?”, e eu “sou, cheguei hoje”, lá me apresentei e tal, “olha, mas não te sentes aí”, e eu “porque?”, “essa camilha é dos mais velhos”. E eu vim a perceber porquê, porque tinha uma braseira por baixo, dois a empregada começou a pôr lá - velhos hábitos que agora já não existem, não é, estas mordomias - os lanches que as pessoas tinham encomendado e de facto era o chazinho, era tudo pessoas que de facto eram as mais velhas da casa, duas delas eram umas freiras e, portanto, rapidamente percebi o meu lugar. Eu fiquei lá muitas vezes, porque tive sempre essa postura de me tentar integrar e não ligar muito a essas coisas. E como era Lisboa, acho que também tinha um espírito mais aberto e, portanto, quando calhava eu sentava-me lá até de propósito, porque achava que não devia de haver territórios privados. E pronto, fui bem aceite. Não houve problemas, nunca ninguém me hostilizou, mas o ambiente nas outras duas mesas era muito mais interessante porque eram gente da minha idade (risos).
ciclo | 2º Ciclo |
id | Constança-2 |
pof | entrevista_Constança |
keys | Condições de trabalho |
nvivo | Percursos |
geo | Pontinha - Lisboa |
Foi muito diferente. Primeiro fui colocada numa escola, quando eu fui ao local não existia a escola, ainda! (risos) Primeiro choque! Fiquei muito contente porque parece- me um código de uma escola mesmo ao pé de casa dos pais, que era a D.P., portanto, excelente. Era a D.P., que agora é um agrupamento de escolas, e portanto eu dirigi-me lá… Não, minto! Primeiro apareceu-me um código que era de uma escola ali para o lado da Pontinha, que não fazia a mínima ideia onde é que era. Depois disseram “Não, não. Nós emprestamos o código, mas vocês têm que se dirigir à D.P.”. Então lá fui eu À D.P. e disseram “ai não, a colega não vai dar aulas aqui, a colega vai para a escola em Telheiras”. Telheiras era uma zona ainda de campo, relativamente próximo, mas de campo, em que não havia nada. Havia umas fábricas de umas bolachas, havia uns pombais enormes, havia um colégio de freiras que ainda existe com uns terrenos enormes e umas quintas. Eu nem sabia ir para lá, portanto tinha que se ir pela segunda circular, tinha que se atravessar a segunda circular e que era um pouco assustador. Portanto, havia um autocarro que passava na segunda circular e eu chego lá e de facto não vejo escola nenhuma. Eu disse “o que é que se passa?”, e disseram “a colega foi colocada realmente, mas a escola não existe ainda. Portanto vocês vão ficar aqui e estamos à espera de ordens de direcção geral”. Então começámos a ir para ali no início de Setembro, as aulas só começavam em Outubro, na altura, e começámos a fazer trabalhos, constituir as turmas, fazer aquelas coisas e ver as planificações. E quando vou à escola e vejo que só tinha o cimento da base do edifício administrativo, fiquei muito preocupada, mas depois rapidamente nos acalmaram: “Vocês com certeza vão dar aulas é num anexo da DP”. Então esse ano demos aulas num prédio, foi muito engraçado, aqui na estrada de Benfica, que eu agora quase que passo lá quase todos os dias. Um prédio mesmo, que depois ficou a servir de apoio à Direção-Geral para os concursos e depois para a inspecção. E agora é um lar de terceira idade, porque foi vendido entretanto. Pronto, ficámos aí um ano porque a escola ia ser pré fabricada, mas demora tempo a construir, era preciso toda uma logística, ainda, que não estava minimamente avançada para se começar as aulas. Então só no ano seguinte é que fomos para lá.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Constança-3 |
pof | entrevista_Constança |
keys | Desigualdades sociais // Linguagem das crianças com estrato social alto |
nvivo | Incidentes críticos |
geo | Campo Grande – Lisboa |
E aí de facto, tive alunos muito diferentes e por várias razões. Não havia alunos de campo, não é, começam a ir alunos do Benfica para essa escola, alunos de Carnide e alunos ali da zona do Campo Grande. Portanto alunos com poder económico. Eram alunos de estrato social médio alto e depois havia uma franja muito reduzida de alunos aqui de um bairro menos protegido que frequentavam essa escola. Portanto, foi ter que fazer uma aprendizagem de linguagem com crianças diferentes, claro, mas pronto depois a pessoa habitua-se e vai andando. A mesma coisa aconteceu - nessa altura eu estava no secundário - quando eu fui para o segundo ciclo. Acabei por me efetivar, fazer o estágio.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Constança-4 |
pof | entrevista_Constança |
keys | Desigualdade de oportunidades // Desigualdades sociais // analfabetismo dos pais |
nvivo | Incidentes críticos |
geo | Portalegre – Alentejo |
Provavelmente também chegou a ser directora de turma.
Constança: Não, nesses dois anos não fui. Curiosamente não fui e, portanto, essa realidade de contacto com as famílias não tive no Alentejo. Ia sabendo, pelos colegas, de algumas questões e fui-me apercebendo das dinâmicas familiares e das dificuldades que algumas crianças tinham em frequentar a escola. Algumas dormiam nesse colégio em Portalegre. Portanto, os pais que tinham mais poder económico. Eles ficavam lá durante a semana, mas nem todos tinham o poder económico para poder pagar a estadia e, portanto, alguns faziam muitos quilómetros durante a noite e no Inverno era penoso, quer dizer, quando saíam da escola já era noite, chegavam a casa tardíssimo e iam trabalhar. Dava para perceber, até pelas mãozinhas deles, a vida era difícil. Porque eu não tive contacto com as famílias e as famílias dessas crianças que moravam longe, também não eram muito presentes na escola, como é óbvio. Trabalhavam no campo, não tinham grande disponibilidade para ir à escola. Havia alguns bons alunos, mas muitos deles tinham muitas dificuldades, porque a maior parte dos pai ainda eram analfabetos, e portanto naquela época eram muitos, ainda muitos analfabetos. Portanto, eu diria que as crianças que estavam no colégio eram as crianças mais favorecidas e portanto, essas, até tinham um ambiente dentro do colégio em que estavam com colegas, podiam estudar em conjunto e até tinham lá professores.
Sim, e as próprias freiras ajudavam as crianças, portanto, havia uma realidade muito adversa.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Constança-5 |
pof | entrevista_Constança |
keys | reprodução social // vocabulário social // valor social da escola |
nvivo | Incidentes críticos // Obstáculos |
geo | Lisboa |
E depois quando se vive em bairro… eu tenho uma criança este ano que é filha de um senhor que foi meu aluno com o irmão, são dois gémeos, e a criança é muito pequenina, muito irrequieta, mas responsável de certo modo, porque tem uma mãe - que também foi nossa aluna -, que casou com um dos irmãos e agora por acaso até vive com o outro. Portanto são famílias muito complicadas! Mas a miúda agora diz “Professora, não se pode ir embora porque ainda tem que ser professora dos meus filhos”. Ela diz que eu não me posso ir embora. Já fui do pai, da mãe, dela e, portanto, agora tenho que ser dos filhos dela. E eu disse “não, M., não penses nisso” , mas a miúda é muito engraçada, e é uma família interessante nesse aspeto, porque os pais do pai dela já tinham muitas dificuldades em manter o pai na escola. A mãe, então, foi pior ainda. É uma pessoa que neste momento até trabalha no refeitório da escola, tem muitas dificuldades, mas tem uma perceção da importância da escola e incute aquilo na miúda. De forma que a miúda, embora viva de facto num bairro desprotegido, tenha algumas dificuldades e desiquilíbrio emocional (porque ela está sempre a chuchar no dedo), portanto é uma criança meia abebezada meia adulta, e ela tem noção e lá em casa incutem-lhe o valor da escola e da aprendizagem. Mas depois também não tem ajudas. Portanto, e há ali ainda uma debilidade que se prende até com o vocabulário que as pessoas usam em casa e tudo mais. Mas já é um salto, esta miúda é um nítido caso de rutura. Ela está no Centro de Estudos à tarde, ela mete-se nas atividades todas, a mãe, se ela não leva o livro, vai a correr à escola para levar o livro e até interrompe a aula. Portanto, há uma preocupação em tentar, mas não é fácil. Nós sabemos que estas coisas demoram muito tempo. Todos estes hábitos. E um bairro tem muito peso! O mal destas crianças é estarem ali. Mas esta miúda está a querer e ela tenta, ela quer ser boa aluna, tem algumas dificuldades. Ela tenta e vai se esforçando e mete-se em todas as iniciativas. É muito engraçado ver porque o pai e a mãe não estavam nessa dinâmica, nem pouco mais ou menos. O pai não tem contacto, não vai à escola, mas a mãe é muito presente, até porque trabalha lá dentro, e vê-se a preocupação dela em querer que a miúda singre e seja boa aluna, seja responsável. A miúda no início amuava muito e era um bocadinho refilona, mas a mãe incutiu-lhe regras de educação. É muito engraçado ver. Há mais uns casos destes que nós vamos assistindo por ali porque já vou conhecendo as famílias.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Constança-6 |
pof | entrevista_Constança |
keys | Violência na escola // violência sobre os professores |
nvivo | incidentes críticos |
geo | Lisboa |
Houve um episódio que me marcou, que me fez descer mais ao nível deles ainda, e tentar perceber o porquê. Havia lá uma aluna que, quando eu estive na direção, portanto não foi nessa altura que eu dei aulas, eu depois fui para a direção, para presidente do Conselho Executivo, e uma dessas meninas que era de cor, era muito agressiva. Ela por bem era um doce, mas quando ela estava virada do avesso era um furacão autêntico e ela espancou uma colega minha, professora de história, no pátio. E eu, com um colega que estava comigo na direção, fomos a correr e tentar separar. Apanhámos também. Ela quando agredia - já tinha agredido colegas - ela arrancava punhados de cabelo das colegas, era uma coisa… Ela tinha uma força anormal, portanto parecia que estava completamente possuída, eu nunca tinha visto uma coisa daquelas. Parecia um filme de terror. E essa colega ficou com problemas, não continuou a dar aulas e isso marcou-me. Marcou porque fiquei perante uma situação de fragilidade de um docente que estava a dar o seu melhor, mas que não conseguiu chegar àquela miúda porque ela era de facto muito difícil. Era muito, muito, muito difícil. De repente ela dava-lhe um clique e ela passava para a bravura, de um doce para um ser completamente explosivo, sem controlo emocional qualquer, sem filtro, sem nada. Tinha uma vida horrível. Ela chegou a viver na rua, portanto aquela miúda tinha razões de sobra. Agora os outros também não tinham culpa e também não sabiam ler. E esta colega, coitada, era inexperiente, alguma fragilidade e não soube lidar com a situação da melhor maneira e foi vítima. Foi uma vítima muito feroz da situação e fez-me repensar na altura. Fez-me repensar e fez-me perceber rapidamente que as escolas não tinham os meios que precisavam. Nós já na altura reivindicávamos apoios psicológicos para esta miúda, acompanhamento, ela era desprotegida em termos familiares, completamente entregue a ela própria. Depois estava numa instituição, ela fugia da instituição. Portanto, fez-me questionar muita coisa em termos sociais, não tanto enquanto docente, mas aprendi a lidar com estes miúdos, dando e tirando. Tive algumas situações muito complicadas nestes anos todos, de tal maneira que pensei escrever um livro, mas depois achei que o livro ia ser tão penoso para mim e para quem o lesse que achei que não. Mas tive histórias muito complicadas. Meninos com desequilíbrios emocionais gravíssimos, aspergers não medicados, não controlados, porque hoje aparecem nas escolas mas já estão minimamente controlados. Crianças que quando se irritam - porque não são percebidas pelos outros e têm o seu direito -, que são inteligentíssimas, mas que rapidamente passam do estado de amorfismo para uma bravura, que levam tudo à frente, que uma vez apanhámos um saltar o gradeamento, só tive tempo de o pendurar pelas calças. Pronto, coisas assim muito, muito, muito duras, em que me obrigam a perceber - obrigaram-me a mim e obrigam aos professores que estão no terreno - que nós precisamos de grandes apoios nas escolas que ainda não temos. Isso é que me abanou! Ajudou-me a compreender melhor as situações, porque isto são sempre aprendizagens, eu acho que vou aprendendo imenso ao longo da minha vida como professora .
ciclo | 2º Ciclo |
id | Constança-7 |
pof | entrevista_Constança |
tempoh | 2006 |
keys | Mega Agrupamento de escolas // efeitos nas condições de trabalho // Dificuldades na gestão de mega-agrupamentos |
nvivo | Arquiteturas de prática |
geo | Lisboa |
Olhe os modelos são muito diferentes. Primeiro, quando era só a nossa escola, nós conhecíamos todo o corpo docente, todo o corpo docente. Faziam-se muito mais projetos internos. Havia uma dinâmica diferente. Gerir 300 e tal professores é diferente de gerir cento e tal. Gerir uma escola é diferente de gerir seis escolas, e há agrupamentos maiores. Não tem nada a ver1 E eu senti isso. E era só o Agrupamento P.S., agora como coordenadora da P.S., com este diretor, com quem eu tinha uma ótima relação, uma pessoa extremamente humana, mas ele próprio não tinha noção do que era um agrupamento. Eu já tinha, porque eu já tinha formado o primeiro, com as escolas de primeiro ciclo e do pré escolar. Eles só se juntaram a nós e isto foi horrível, porque são realidades diferentes, com idades diferentes. O próprio diretor tinha dificuldades nas reuniões de pais, em falar com os pais, porque falar com o pai de uma criança de pré escolar não é a mesma coisa que falar com o pai de um aluno do secundário. E, portanto, são realidades diferentes. O que é que as escolas ganham? Articulação, os alunos têm uma sequência, dá alguma estabilidade aos pais a esse nível, é economicista para o Estado. Há vantagens, sim. Mas há grandes desvantagens em termos humanos e sociais. E há professores que têm desgastes enormes porque circulam de escola em escola, nem vivem muito bem uma nem outra. Nós temos pessoas divididas entre a nossa escola e a escola secundária, portanto, que dão aulas num lado e no outro. Tenta-se minorar o mais possível nos horários, mas não é fácil. E portanto, há professores que, além de não serem da zona, chegam ali, dão aulas em duas escolas e às vezes em três, porque vão completar horário a uma terceira escola. Portanto, este aspecto eu acho que é muito penoso. Portanto, gerir uma escola em que se conhece toda a dinâmica é mais fácil e mais humanizada. Eu acho que os megas agrupamentos tornaram-se um pouco desumanos. Eu acho que os directores são uns pequenos heróis destes agrupamentos porque têm que fazer uma ginástica enorme. Têm que ser gestores, têm que ser pedagogos, e é muito difícil. Em agrupamentos pequenos talvez seja benéfico. Em agrupamentos muito grandes eu acho que não se ganha muito. Acho que o prejuízo é maior do que o benefício.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Esmeralda-1 |
pof | entrevista_Esmeralda |
keys | O professor como modelo |
nvivo | incidentes críticos // Pessoas críticas |
E aconteceu que na minha escola, passados uns anos, na escola onde estou atualmente, a EB23 D. apareceu lá uma jovem docente. E essa jovem docente foi fazendo progresso, foi convidada para a vice-diretora, entretanto agora, neste momento, com a reforma da diretora, ela é a diretora da escola. E ela disse-me, nós tínhamos a prática de ter lá um jornal escolar, ainda no tempo da A., e esse jornal era um espaço onde nós não só colocavamos os trabalhos dos alunos, que eram muito giro era em papel, não era digital, porque nós agora continuamos a pôr as coisas no site, mas eu acho que não tem o mesmo impacto. Aquilo era em papel e os miúdos gostavam de ver lá os textos, escritos, corrigidos por nós, e os desabafos dos professores. E então eu ia dizer-lhe, conheci a S., ela chama-se S., e a S. vem-me dizer,
– Não se lembra de mim? – Era uma adulta, não é? Com filhas.
– Tenho uma menina chamada Mafalda. E é a minha filha mais velha. E chamei-lhe Mafalda por causa de si, professora.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Esmeralda-2 |
pof | entrevista_Esmeralda |
keys | Cidadania // apoio emocional // gangs juvenis |
nvivo | incidentes críticos |
geo | Lisboa |
Não sei se eu lhe disse, eu tenho uma criança que tem necessidades educativas especiais, sem dúvida, que no início do ano viu o pai ser morto no dia do aniversário. Esfaqueado. Vem nas notícias. E essa está a ser acompanhada, evidentemente, eu sei que ele não vai ter um rendimento que eu precise ter. Estar sempre a gerir a minha exigência com a minha compreensão e com a ternura, porque às vezes eu já não tenho vontade de lhe dar ternura, porque ele desafia permanentemente. Mas eu percebo que esse desafio é a carência da atenção. Portanto, onde é que ele está o tempo todo? Na escola. Porque se ele sair da escola, a família não controla, ele vai fazer disparates com os gangs, com os grupos. Eles partilham essas coisas, as coisas más que fazem. No outro dia dizia-me ele. “Eu já fiz coisas más.” Estávamos a falar, eu sou professora de Cidadania também. Pronto, era isso que eu ia dizer. Mas por acaso foi sobre o Natal, para preparar um… Eu gosto de preparar umas coisas em que eles fazem definições. Olha, estava com elas aqui a corrigir as definições. E então definições de coisas boas, não é? De dádiva, e depois eu explicava o que é que era para eles. Partilhar, amor, amizade, lealdade. Ao mesmo tempo ia explicando e ia pedindo que eles escolhessem três e me fizessem a definição. E ele pergunta-me “e coisas más?” E eu “não, K., não”. “Mas eu já fiz coisas más”. A noção do bem e do mal. Isso também é importante. E ele quis partilhar. “Eu matei com uma pedrada uma galinha.” Eu disse “mas o que é que a galinha te fez?” “Foram os outros mais velhos que me pediram: Tens que ter coragem para matar a galinha”.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Esmeralda-3 |
pof | entrevista_Esmeralda |
keys | Auto-estima // Estratégias curriculares // Teatro |
nvivo | Incidentes críticos |
geo | Lisboa |
Para lhe dar outro exemplo, tive pais este ano a pedir-me que uma menina, a L., era mais fraquita e ela nas aulas aquilo não dava grande coisa. Quando a coloquei a fazer de conta que ela era a Carlota Joaquina (no ano passado a peça era uma história de Portugal em 52 minutos e 3 segundos. (RISOS) Assim parvoíces, com os quadros da história de Portugal). Então ela tinha que decorar um texto longo e depois tinha que ralhar com os filhos, sobretudo com o D. Pedro, porque ela gostava mais do D. Miguel. A rapariga soube o texto e a mãe disse “ela tem que continuar o teatro”, veio-me pedir para a L. continuar porque não imaginava o efeito que aquilo tinha tido na autoestima da L.. Ela foi para casa a dizer “agora consigo, eu consigo responder nas aulas, eu consigo aprender” porque ela acreditava que não servia.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Esmeralda-4 |
pof | entrevista_Esmeralda |
keys | Interculturalidade // Estratégias curriculares // Teatro |
nvivo | Incidentes críticos |
geo | Lisboa |
e eu disse “agora para o Natal nós vamos fazer uma coisa muito simples, vamos apenas dizer o Natal na voz dos poetas, vamos escolher poemas e vocês vão decorá-los. Como temos pouco tempo, vamos escolher estrofes, um grupo de estrofes para cada um. E depois vamos dizer, vamos fazer uma performance, ou vão para a frente, ou vão para trás, ou saltam. Há sempre uma mudança, há a roupa diferente, a camisola vermelha que vamos ter que arranjar, pronto. Vamos fazer daquilo um evento, uma festa de Natal. E depois a festa das luzes nas várias religiões, ou seja, o equivalente ao nosso Natal. O Budismo, o Hinduismo, o Judaísmo, etc. Os mais velhos vão fazer isso, nós temos até o nono ano, e os mais pequeninos dizem poemas. E a E. era tão tímida e disse”Olha E., meu amor, tu levas estas duas estrofes, para decorar. Vais pedir à mãe, para as ler contigo, tentar decorar contigo, etc.” Quando veio o dia do ensaio, logo na sessão seguinte, eles eram três, não é que ela chega-se à frente com uma enorme segurança, diz aquilo com uma graça, e ela é pequenina, tem 10 anos, uma carinha laroca, a dizer aquilo com tal segurança que o clube todo, os miúdos todos, são 22, se levantaram para lhe bater palmas.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Fátima-1 |
pof | entrevista_Fátima |
eu comecei por fazer o Magistério Primário, em 1969-1971. Tinha o quinto ano, o antigo quinto ano, e fiz o Magistério Primário. Comecei a dar aulas com 19 anos. Eu era tão catraia que me lembro que comecei a dar aulas na Benedita e, no primeiro dia de aulas, eu lembro-me perfeitamente que ia com um vestido todo ameninado e de sandálias, com uma carteirinha a tiracolo, e passei por um grupo de colegas mais velhas, bastante mais velhas, que estavam com um senhor que eu não sabia quem era. E passei e disse: “Bom dia”. E fui para a minha sala. Daí a pouco bateram-me à porta e era o senhor Inspetor. E disse: “Ai, desculpe, que passou por nós e eu pensei que era uma aluna da sexta classe, e peço desculpa porque eu não a identificava como uma colega”. Portanto, eu comecei a dar aulas com 19 anos.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Fátima-2 |
pof | entrevista_Fátima |
E depois, como estávamos perto de Peniche, claro, quando queríamos dar uma voltinha num fim-de-semana que não vínhamos, íamos até Peniche. Curiosamente, lá, juntamos um grupo de funcionários públicos que iam para a ponta do distrito, portanto, o distrito de Leiria, Peniche era a ponta. Então, eram funcionários da Câmara, das Finanças, professores, e lá nos juntávamos todos na esplanada, no Verão. Uma vez fomos às Berlengas…mas também me lembro de que, de vez em quando, estávamos na conversa e, quando alguém tinha algum descuido, em termos de que podia ser politizado, alguém dizia “Atenção! Cuidado!”, porque havia lá uma sede da PIDE. E havia a prisão do Forte de Peniche. E então, aquela zona do Forte era sempre complicada. E tenho memória de duas coisas de que nunca mais me esqueci: uma delas foi um Domingo em que eu e a colega fomos a Peniche arejar um bocadinho, penso que fomos à missa, salvo erro, e depois já era assim tarde, tínhamos um autocarro já assim à noitinha, mas como ainda não eram horas do autocarro, fomos dar uma volta à beira-mar e passámos pelo forte. E às tantas começámos a sentir dois homens atrás de nós. Eram polícias, não sei se eles iam fardados se não, não me recordo. Mas talvez sim, nós identificámo-los como polícias, eram da PIDE. E então nós mudávamos de passeio, eles mudavam de passeio; nós mudávamos de rua, eles mudavam de rua…e começamos a pensar: estamos a ser seguidas. Duas meninas, duas jovens, aqui, na zona do Forte, a esta hora…o que é que se passa? Até que fomos no autocarro e pronto, não nos disseram nada, mas é um episódio de que eu não me esqueci. E outro foi um dia dois amigos da minha colega que vinham de Lisboa – eu sou uma fala-barato, depois nunca mais me calo – dois amigos dela que vinham de Lisboa, vinham de uma reunião, eles eram do Sindicato dos Empregados de Escritório, salvo erro, portanto, eles estavam um pouco envolvidos com a política. E então convidaram-nos para irmos jantar com eles a Peniche. E nós fomos. Uma noite de chuva e vento…e onde é que eles quiseram ir jantar? A um restaurantezinho – ainda lá ia dar ao sítio – que ficava mesmo ao pé do Forte e tinha um gira-discos em que as pessoas podiam pôr discos, à escolha. E eles puseram dois discos, mas acho que eram do Zé Afonso, uma coisa assim…eu tive tanto medo, tanto medo, eu só pensava: se chega aqui a polícia, vamos todos dentro! Não aconteceu nada, mas lembro-me perfeitamente dessa sensação de medo do que pudesse acontecer, porque eles eram atrevidos.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Fátima-3 |
pof | entrevista_Fátima |
Sim, sim, porque, eu costumo dizer: isto está-me no sangue, porque ainda a semana passada eu lancei um livrinho…porque eu depois - já tinha os meus filhos na Universidade - fiz uma pós-graduação em Museologia, e isso levou-me a fazer uma investigação interessante relacionada com os museus e com a minha terra, porque eu sou do Juncal e houve aqui no século XVIII-XIX uma cerâmica do tempo do Rato, do tempo de Coimbra e Viana, e que funcionou durante 106 anos essa fábrica, a Real Fábrica, porque teve o título de Real. E, curiosamente, no Juncal as pessoas sabiam que tinha cá havido uma fábrica importante, mas não sabiam muito sobre ela, embora desde meados do século XX a maior parte das pessoas aqui trabalhasse na cerâmica. E então essa pós-graduação levou-me a fazer pesquisa – já tinha publicado o livro dos azulejos – sobre a cerâmica do Juncal, tive acesso aos documentos da Real Fábrica, isso ainda antes da publicação do livro dos azulejos. Na altura, o local dessa fábrica - que era uma casa senhorial, mas que estava meia em ruínas – estava à venda. Eu e o meu marido, e mais algumas pessoas, interessámo-nos muito por tentar junto da Câmara Municipal que comprasse aquele edifício e aquele espaço que é um espaço grande e, finalmente, passados 20 anos, a casa está a ser recuperada para um espaço cultural. E depois, nesse âmbito, da pós-graduação, todos os trabalhos que eu fiz foi sobre a cerâmica do Juncal. E então, ainda a semana passada inaugurámos uma exposição sobre a cerâmica do Juncal do século XX. E um livrinho que eu escrevi nessa altura, e que nunca foi publicado, foi agora publicado: sobre um painel que tem uma história muito curiosa, um painel de azulejo que está numa casa que está em ruínas. É uma história curiosíssima porque a casa, que é uma casa pequenina, humilde, mas que tem lá uma data de 1702, salvo erro, terá sido de uma família de apelido Poa - porque não há cá outra, portanto, a família Poa eu lembro-me de viver ali. Agora os filhos vivem noutros sítios, e os netos, mas lembro-me de eles viverem ali. E tem um painel da Senhora das Dores na parede, um painel com azulejos da Real Fábrica. E então, chegou até nós pela tradição oral que a dona da casa era parteira e que quando ia fazer um parto acendia a lamparina à Senhora das Dores, a pedir proteção à Senhora das Dores e, ao mesmo tempo, quem visse a lamparina sabia que ela estava ocupada. Curiosamente, nos meus tempos, e ainda hoje, há pessoas que vão lá acender a lamparina. E nos anos 40 e 50, e eu ainda me lembro, havia uma senhora, que era conhecida pela Ti Carriça, uma senhora muito pobre, uma doçura de uma velhinha, eu lembro-me dela vestida de preto, de lencinho – não tenho aqui nenhum livro à mão para lhe mostrar a fotografia dela - e ela mandava acender a lamparina. O meu marido diz que a mãe lhe dizia que, quando ele nasceu, a mãe mandou acender a lamparina à Senhora das Dores, e ainda hoje eu conheço um indivíduo que, em janeiro, quando faz anos, vai acender a lamparina, porque a mãe fazia isso. Enquanto foi viva ela fazia isso: sempre que fazia anos o filho, ela ia acender a lamparina. Essa história está escrita há muito tempo, desde a minha pós-graduação, nunca foi publicada, e agora como corre riscos sérios, o painel, e os donos, o dono, pelo menos o cabeça de casal da herança, faz questão de não mexer ali e de não deixar ninguém mexer. Não quis vender à câmara, não quis que a câmara restaurasse, não deixou tirar, foi um pretexto – e a própria câmara municipal me desafiou, quando soube que eu tinha a história escrita - para publicar a história. Um amigo pintor ilustrou-a muito bem e foi publicada fez domingo oito dias. E, portanto, eu costumo dizer que há pessoas reformadas que dizem: “Mas agora o que é que eu vou fazer?” Eu tenho é pouco tempo para fazer as coisas todas que eu quero fazer! Apesar de ter 70 anos, sinto-me bem, faço voluntariado, não sei ser de outra maneira, pronto.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Fátima-4 |
pof | entrevista_Fátima |
eu, às vezes, levava o meu filho que nasceu em maio – eu entrei em estágio em outubro - o meu filho mais velho nasceu em maio, eu estive um mês em casa e depois voltei para a escola ainda antes das férias. Lembro-me que às vezes saía a correr porque tinha leite a escorrer pela blusa abaixo, para ir dar de mamar ao bebé, porque havia formações e coisas que eu não queria perder. Portanto, por ter um bebé. Eu levava-o na alcofa para a escola e ficava em cima da secretária da rececionista enquanto eu ia às reuniões. Depois, sem esperar, mas felizmente, fiquei grávida em dezembro do segundo ano de estágio. Foi um bocadinho complicado, mas eu costumo dizer: “Abençoada a hora”, porque ele foi sempre um menino de ouro, um excelente aluno, hoje está muito bem na carreira e deu-nos imensa alegria aquele menino. Mas, na altura, foi um bocadinho complicado.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Fernanda-1 |
pof | entrevista_Fernanda |
Eu ainda ontem tive uma mãe que, num café, me abordou e me disse: “Oh professora, eu tenho de lhe dizer que o meu filho teve 100% na prova de Português e uma grande parte desse sucesso a si se deve. Ele vai para humanidades. O M. vai para humanidades, mas ele é capaz de ser bom em qualquer coisa” (porque tem-se agora a representação social de que as humanidades são para alunos menos competentes, mas não. O M. é extraordinário! E a senhora veio dar-me um abraço e disse-me: “Parte deste abraço é para si” (comoção). E são essas as minhas medalhas. São essas as minhas medalhas…
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-1 |
pof | entrevista_Glória |
directores de turma, e tínhamos reuniões semanais com a assistente de Inglês e de Português, e às vezes com a metodóloga, mas isso era às vezes. E na primeira reunião semanal com a assistente, uma senhora que eu nunca mais vi graças a Deus, e pronto, perguntou-nos logo “então qual é a unidade de didática que escolheram?”. Ora eu, que tinha vinte e poucos anos e tinha saído da faculdade, naquele tempo em que nós eramos ensinados para Filologia, não eramos ensinados para o ensino, não é? Eu fiquei completamente à nora: que é isto de unidade didática? As outras minhas colegas – que nós éramos 6, éramos 6 estagiárias – já eram pessoas experientes, já tinham dado aulas e eu não! Pronto, elas trataram logo de dizer “eu escolhi isto”, “eu escolhi aquilo”, e eu percebi o que é que era uma unidade de didática. Mas foi tudo assim, quer dizer, foi a perceber, foi a escarafunchar, foi muito difícil, pronto. No Português foi muito difícil, foi muito mau. E a metodóloga era muito, muito, muito exigente. Depois tínhamos que fazer a tese, eu agora não me importo de fazer trabalhos escritos, e escrevo para o jornal e etc e tal, mas na altura nós não estávamos habituados a fazer esses trabalhos. A tese, pronto, a tese, eu escolhi uma tese qualquer, sabia lá eu, queria lá saber, eu gostava era de estar com os alunos. Uma tese qualquer que fui escrevendo para lá, e escrevi e tal, e ainda me lembro do tema, era estudo comparativo – era muito interessante agora – estudo comparativo entre o uso do quadro preto e o uso do retroprojetor. Isto era em 73, o retroprojetor era muito, muito, muito actual. Pronto, a metodóloga disse “ai! Que coisa tão fraca de texto e não sei quê”, oh pá, quero lá saber! Graças ao senhor [risos] deu-se o 25 de abril, em 74, e nós fomos todos para a frente do ministério gritar “abaixo o exame de Estado! Abaixo o exame de Estado! Abaixo o exame de Estado!” e acabou o exame de Estado, eu não tive que defender a tese, felizmente! Felizmente! E foi assim. E depois acabei!
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-2 |
pof | entrevista_Glória |
Eu tive muitos, muitos episódios, eu e uma colega que… nós eramos seis, desculpe que estou a gaguejar, nós eramos 6, eramos 7, mas uma desistiu no Natal. E eu não desisti porque a minha mãe e o meu marido não me deixaram, porque eu estava à beira de bater com a cabeça na parede. E depois, 4 ficavam em L., nas escolas de L., e… estava tudo aberto porque quem é que fazia estágio? Só os malucos. E duas vínhamos para a província, que era eu que ia para L. e a minha colega A. que ia para S. E, portanto, como nós vínhamos para a província, imagine só o estilo: eu, em Português não, mas eu em Inglês era muito boa! Foi-me dito [risos] foi-me dito que eu era muito boa, que tinha… eu nunca tinha dado aulas, daquelas, não é? E elas disseram, as senhoras, a assistente e a metodóloga disseram que eu intuitivamente agarrei o método. De maneira que era muito boa. Muito boa, muito boa, mas depois não tive a melhor nota! E o que é que me disseram? “Ah, como é para ir para a província, não precisa assim de uma nota tão grande”. “Aaaaaaah”. Pronto. Pronto. Tive 15,5 mas eu queria 16. Eu merecia o 16!
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-3 |
pof | entrevista_Glória |
mas, entretanto, outra coisa muito estúpida, mas enfim, a primeira vez que a metodóloga de Português, a M. A., que até fez uma Gramática e tudo, era uma senhora já na altura muito bem cotada em termos de educação de Português. A mim nunca me ensinou nada mas ela não estava lá para ensinar. E entrou-me pela aula dentro, dia 19 de outubro, nunca mais me vou esquecer, eu ia morrendo de susto! [risos] ainda por cima a senhora tinha enviuvado há muito pouco tempo e ia toda de preto [risos] enfim, bom! Mas isso era eu que era uma cachopa, não é? Pronto, e depois eu estava a dar não sei o quê de Gramática, no quadro, como sabia, não é? Nunca ninguém me tinha ensinado. E ela levanta-se e diz ’isto não é nada assim!” e então fez ela o resto da aula. É claro que eu, depois, no fim, ela no fim depois fazia a crítica, não é? A crítica oralmente. E eu larguei-me a chorar, pois naturalmente o que é que se há-de fazer? Eu sou uma mimalha, ainda hoje com esta idade toda, e ela disse-me “não é preciso estar a chorar, não é preciso, valeu a pena vir à sua aula quanto mais não fosse para ver a linda camisola que traz”. De maneira que eu fiquei muito animada [tom irónico]. E depois no fim do ano, pronto, disse-me “olhe, você quando crescer vai ser uma boa professora”, e eu fiquei… e fui! [risos] o estágio, o meu estágio foi, o nosso estágio naquele tempo era uma série de episódios para esquecer, para esquecer, para esquecer.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-4 |
pof | entrevista_Glória |
quando eu cheguei lá ele era o senhor diretor. Pronto, ainda. O senhor diretor… eu cheguei, como era habitual apresentávamo-nos na secretaria, as pessoas apresentavam-se na secretaria, eu trazia um papel do ministério em que finalmente, ao fim de três anos a concorrer para Leiria e não ter vagas, eu trouxe um papel de Lisboa a dizer que tinha vaga quer quisessem quer não [risos] na E.E… E eu, eu levei algumas bofetadas da minha mãe por ser um bocado… arrogante não, mas assertiva como se diz agora - que eu detesto a palavra “assertiva” e “assertividade” – e apresentei-me na secretaria com o papelinho e fui recebida pelo chefe da secretaria. O chefe da secretaria recebeu o meu papelinho e foi lá dentro ao senhor diretor, e eu à espera, claro. De mini-saia, em Leiria, nos anos 1970, nem queira saber! Pronto, 26 anos, 25. E veio o senhor chefe da secretaria, com quem depois me dei muito bem, o chefe da secretaria veio e com ele vieram dois professores, pouco mais velhos do que eu, a olharem para mim. A olharem, “quem é esta?”, nunca me tinham visto, eu tinha chegado de véspera, e tal. E o senhor chefe da secretaria diz “Muito bem! Sim senhora, mas olhe a senhora é de Germânicas, é do 3º grupo mas nós não temos aulas de Inglês para lhe dar”. Eu sabia que aqui na escola havia a experiência Veiga Simão, e portanto as crianças Veiga Simão tinham aulas de Inglês, portanto as crianças Veiga Simão quando eu cheguei aqui, era aquilo que deu origem ao 7º unificado. 7º e 8º só. Que deu origem aos unificados. E portanto havia inglês, e eu, muito calmamente, perguntei: “então mas não há aulas de inglês na experiência?”; “há sim senhora, mas essas turmas já estão dadas!”, isto em outubro, “mas já estão dadas?” - eu perguntei – “são professoras com habilitação própria? Com o estágio feito?”. “São professoras da escola e já foram os horários dados” e que tal e que tal. E eu calei-me, o que é que eu havia de fazer? “Pronto, então está bem. Então, posso dar Português”. E ele foi lá dentro buscar um horário [risos] isto parece um filme, eu tenho isto tudo escrito [risos] não é para nada, mas fico toda contente. Ele veio com um horário todo de História, horário completo de história. E eu disse “pois, mas eu não sou do 1º grupo, eu não sou professora de História. Eu sou professora de Inglês e de Português, portanto, não posso dar história”. “Mas então não quer este horário?”, “Não!”. Foi lá dentro outra vez, mas entretanto os dois colegas lá no fundo da secretaria, ainda estou a vê-los, a olharem e a ouvirem. E eu muito pispineta, muito pispineta não, que eu não era, mas pronto. Veio com outro horário e então esse horário tinha, eram muitas turmas, tinha… não me lembro, mas também não interessa, umas quatro ou cinco turmas de Português – okay, pode ser – e três turmas de História. E eu disse “Pois, está bem, eu o Português não me importo de dar, mas eu não sei dar história, eu não fui habilitada para dar História”. E o senhor chefe da secretaria que já estava a perder a paciência comigo [risos] coitado! [risos] estava mesmo a perder a paciência e disse “Mas a senhora não fez a quarta classe?”, “Fiz, claro!”, “Então pode dar História”. E eu disse assim “Então dê cá o horário, se eu com a quarta classe posso dar História eu vou dar História!”. E dei História.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-5 |
pof | entrevista_Glória |
Um dia entro [risos] no gabinete do conselho diretivo, que era o antigo gabinete do senhor diretor, com aquelas mobílias antigas, todas bonitas – que agora estão no museu escolar de que eu sou diretora – e entrei e estava o meu colega que estava cessante, conselho diretivo cessante, ao telefone a dizer “eh pá mas vem e tal” e digo eu assim “oh N. estavas a falar com quem?”, “olha estava aqui a falar com um colega de P. de M. a ver se ele quer vir tomar conta da direção”… um colega que não era efetivo sequer, era um colega provisório de um grupo qualquer. “Ele diz que não se importa de ser aqui presidente do conselho diretivo”. E eu “o quê? Tu vais entregar esta escola” - uma escola que já tinha algum prestígio – “tu vais entregar esta escola a um professor qualquer que vem não sei de onde, que nunca aqui pôs os pés? Tu és maluco! Mal por mal estou cá eu que sou efetiva, pá!! Por amor de Deus!!”. O que é que eu fui dizer não é?
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-6 |
pof | entrevista_Glória |
que é que eu fui dizer? Ah! Porque antes disso [risos], antes disso, de ele estar a telefonar à procura, já tinha havido uma reunião com a senhora inspetora em que não tinha havido forma de eleger ninguém, toda a gente se negou, mas que estavam dois colegas que tinham dito que “ah se houver alguém que seja presidente eu não me importo de integrar a lista, não me importo”. De maneira que eu disse “oh pá por amor de Deus, nem que seja eu”. Nem que seja eu e fui mesmo! Estava lá outra colega mais doida ainda do que eu, do 4º grupo, que disse “eu vou contigo!”. Pumba, vamos lá, vamos lá! Aí vamos nós [risos], de maneira que fizemos um conselho diretivo, eu, a C. que estava comigo, esses dois colegas que se tinham disponibilizado, e em boa hora porque um deles era, era e é, muito bom! E sabia muito e eu aprendi muito com ele também. Pronto, e lá fizemos um conselho diretivo eleito, eleito! Foi o segundo, o meu primeiro já tinha ficado lá para trás…
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-7 |
pof | entrevista_Glória |
Muito bem, 87 tudo bem, lá vai a Glória outra vez para outra equipa. Tive sempre muita sorte com as minhas equipas. Muita sorte com as minhas equipas! Em 88 a F. M. P. foi lá à escola para ver não sei o quê, oh fazer não sei o quê, já era diretora regional. Era diretora regional do Centro e foi lá à escola porque a escola estava miserável e a rebentar pelas costuras e foi lá visitar a escola. E quando me viu disse assim “Olhe eu preciso falar consigo”, “está bem!”. Foi falar comigo e [risos] então para me dizer “Olhe, nós na direção regional temos uma nova estrutura” – eu não me lembro como é que se diz aquela coisa, uma nova, uma legislação que regulamenta a estrutura dos serviços, pronto – “e nós vamos criar nas capitais de distrito as CAEs, que são coordenações de área educativa, e estou em negociações com Lisboa porque em Lisboa querem que o coordenador seja o representante” – não era representante – “da direção geral de pessoal” – portanto uma figura que era, não se chamava coordenador mas façamos de conta que é representante, representante da direção geral de pessoal que era quem fazia os mini concursos e quem geria o pessoal não docente, pronto era da direção geral só e tinha adstritas as escolas daqui do distrito de L. – pronto “em Lisboa querem à viva força que seja esse elemento o coordenador da área educativa mas eu não quero, de maneira que estou a escolher uma pessoa em cada um destes distritos para ser o coordenador. E estou a pensar em você”. E eu disse “mas eu não sei nada, não sei nada disso”. “Pois, mas não faz mal…para já vai ser coordenadora distrital do ensino especial”. “Do ensino especial?”, a minha escola já tinha… ainda nem se pensava em legislação, ainda não tinha saído, ainda não tinha saído a legislação e nós já tínhamos cegos e surdos e deficientes mentais, como se dizia na altura, portanto, atraso de desenvolvimento, já tínhamos muito. Aliás era a única escola portanto tudo ia cair ali. Não sei quê, não sei que mais “vai para a coordenação e vai mandar nisto tudo”, “oh M. F. mas olhe que eu não sei, e então o conselho diretivo?”, “o conselho diretivo, fale com a vice, ela que fique”. Pronto, lá fui eu para a coordenação da área educativa, estive lá cinco anos,
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-8 |
pof | entrevista_Glória |
Mas, entretanto, aquilo na minha escola [suspiro] começou na sala dos professores um txu txu txu, toda a gente a dizer mal do conselho diretivo. Executivo, na altura já, executivo. E com razão, e com razão! Curiosamente, a minha ex vice presidente, a minha ex vice presidente. E porquê? Porque resolveram fazer um grupo dentro da escola. Não pode haver grupos dentro das escolas! E se os houver têm que ser muito discretos. Pronto, aquilo, como dizia com muita piada um colega meu de História, dizia “olha menina” – ele é muito mais velho do que eu – “aquilo é o ódio do 4º grupo”. E era, de facto, o ódio do 4º grupo. O ódio do 4º grupo, era realmente. As senhoras do 4º grupo que se apropriaram da escola completamente. E eu sei que isso acontece atualmente nas escolas e é dramático, sei porque tenho filhas nas escolas, a minha mais nova não é professora, mas é terapeuta da fala num agrupamento de escolas, e sei que infelizmente é assim nas escolas, haver grupos. Não pode! Não pode. E aquela era a minha escola, eu não podia permitir que dessem cabo da MINHA escola [risos], eu estive lá 36 anos, não foi assim pouco. De maneira que como nunca, nunca não, eu era uma pessoa calada, mas depois fui abrindo e de que maneira, e depois ouvia-se falar na sala dos professores, eu era a primeira, era aquela que fazia mais barulho. Como sempre. Cheia de razão porque eu conhecia aquela escola – ainda conheço – por dentro e por fora. Que é isso agora? Grupinhos? Quer dizer para os amigos eram os bons horários, os outros que… não pode! Não pode! Pronto, entretanto, já tinham chegado os agrupamentos verticais, os verticais. Portanto tínhamos uma série de escolas do 1º ciclo e pré-escolar. E o coordenador desse ciclo, pré e pri, era o antigo delegado escolar com quem eu me dava muito bem – e dou - e pronto, e ele passou a integrar o conselho executivo da escola. Só que, lá está, o grupinho, o grupinho que dominava o conselho executivo pôs o nosso coordenador do 1º ciclo fora do conselho executivo, fisicamente. Portanto ele era, fazia parte, mas fisicamente ele estava numa sala onde estava o funcionário do SASE. Está a ver? Aquilo aqui dentro da minha cabeça estruturada fazia-me cá uma confusão, mas pronto, mas eu já tinha dito, aí é que eu já tinha dito “não volto aos conselhos diretivos, já estou muito velha, já fiz muitas coisas, acabou! Ponto final, parágrafo. Quem quiser que se arrume”. Mentira! Meu Deus que vergonha, que vergonha. Mentira, pronto. Chega-me ele aqui a casa, o J. P., e diz “olha, tens que fazer uma lista”, “não faço lista nenhuma J. P., não me aborreças, estou farta de listas…”. “Temos que fazer uma lista, temos que fazer uma lista porque aquela escola está toda partida e ninguém se entende, elas acham que os professores do 1º ciclo não servem para nada, não são tidos nem achados” não sei quê, não sei que mais, pronto e lá fizemos a lista. Em três dias nós fizemos a lista e na altura já era com um projeto e tudo, a mania dos projetos dos anos 90 e tal, a mania dos projetos. Eu sou anti projeto. Tenho tudo projetado dentro da minha cabeça, mas aqueles projetos escritos, enfim. Mas ponto, lá fizemos o projeto e toda a gente, lista B. Foi um escândalo quando apareceu a lista B! Claro que nós estávamos para não ganhar, não é? Até porque eles tinham o grupo, tinham manietado tudo, por isso nós estávamos mesmo para não ganhar, e eles estavam absolutamente convencidos que não ganhávamos. Nessa altura já havia, não era o conselho geral era a assembleia de escola – outro disparate, mas enfim – e a presidente da assembleia – bem, essa já morreu, mas eu não me importo de falar o que tenho a falar das pessoas que já morreram - destratou-me! Destratava-me na sala dos professores! Aquilo era uma vergonha. Uma VERGONHA aquela mulher, enfim. O certo é que nós ganhamos por 35 votos. E foi uma bronca. No fim da eleição foi uma bronca! Porque os meus colegas da minha lista, cheios de medo, não apareceram. Então eu estava nervosíssima como deve imaginar, mas estive ali com cara de estanhada – como dizia a minha mãe – eu ali na sala dos professores à espera dos resultados. Fecharam as urnas e os resultados nada de saírem, nada de saírem. Toda a gente “mas o que é que se passa?”, porque as pessoas da mesa eram pessoas do grupinho do ódio, não é? De vez em quando saía uma “ainda não acabamos”. Tempos infinitos e depois lá apareceu uma do grupo, que era a presidente da mesa, “olha pronto ganhou a lista B por 35 votos”. Bem aquela presidente da assembleia começou a disparatar, a dizer “não acredito!!!!” e eu saí porta fora caladinha, muda e tal… Depois recandidatamo-nos e ganhamos outra vez, bem não queira saber o que eles nos fizeram. Eles mandaram queixas para a direção regional, eles impugnaram a votação, eles fizeram trinta por uma linha. Mas a direção regional deu-nos razão
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-9 |
pof | entrevista_Glória |
A avaliação externa foi uma coisa que eu fiz mal. Pronto, fiz mal porque fui mesmo tótó. Fui mesmo ingénua. A avaliação externa, nós eramos uma escola muito boa, com muitos bons resultados, os nossos alunos iam para o liceu e depois iam para a faculdade, era MUITO boa a nossa escola, e o liceu também, muito boa e eu pensei, dentro da minha HONESTIDADE mental – que é coisa que eles não tiveram – que a avaliação externa havia de ser uma coisa boa para nós. E mandei uma carta ao senhor professor Joaquim Azevedo a dizer que sim senhora, que tinha dado conta deste projeto e que gostaria de saber em que termos é que funcionava para eventualmente – para eventualmente – a nossa escola aderir ao projeto. Mas eu queria saber o que é que era! Eu não sabia! Como com a avaliação do pessoal, mas isso é outra história. E pronto, mandei uma carta ao senhor professor Joaquim Azevedo e ele automaticamente diz “agendamos uma avaliação externa para a sua escola para dois ou três meses”. Eu fiquei em pânico! Mas o que é isto? Eu não pedi!!!! Eu só perguntei, eu só perguntei!!!! Pronto, mandou-me lá os documentos, documentos que eram os parâmetros, mas eu nunca pensei, foi um logro, foi a coisa pior que eu fiz na minha vida. Porque foi um logro, caímos num logro. Apareceram-nos uns professores não sei de que faculdade para a avaliação externa e toca de nos pedir papéis e de nos fazer aquelas mesas, a coisa estava muito bem estruturada, atenção! Não estou a dizer mal. Eles ouviram tudo… três dias, em três dias eles analisaram uma escola daquelas com 1500 alunos, e 200 e não sei quantos professores, vão para o raio que os parta! Pronto, o que é que eles pediram? Para ouvir determinados grupos, grupo disto e daquilo, o grupo de pessoal não docente, só que, infelizmente para mim, nós estávamos a atravessar uma época terrível que era a época do reinado da Maria de Lurdes Rodrigues, e as pessoas detestavam a pessoa e detestavam… as pessoas estavam a ficar muito desconfiadas na escola, e aproveitaram, na sua boa fé, para dizer as suas perplexidades, as suas tristezas, aquilo que ia mal. Portanto aos olhos dos nossos avaliadores, as pessoas só disseram mal, portanto a escola estava mal. Fomos muito mal classificados. Depois da nossa experiência, porque é como eu digo, eu não PEDI avaliação, eu PERGUNTEI! Depois da minha estúpida precipitação outras escolas foram sabendo como era, a avaliação interna que era o último dos parâmetros, nunca mais me vou esquecer – às vezes ainda sonho com isso – eu sabia lá o que era a avaliação interna! Nunca ninguém nos tinha dito o que era a avaliação interna, nunca ninguém nos preparou para coisa nenhuma. Nós não sabíamos que existia!! O que é que era a avaliação interna? Acho que agora isso já acabou, felizmente. A avaliação interna era dossiers e dossiers de papéis, dossiers e dossiers de papéis e de gráficos e de comparações e de… olhe uma porcaria para não dizer pior. Papéis! A dizer que a escola era muito boa, muito boa, relatórios, relatórios, relatórios. Vão para o diabo que os carregue com os relatórios, eu tinha os bons alunos! Isso é que conta! Quais relatórios qual carapuça!
ciclo | 2º Ciclo |
id | Glória-10 |
pof | entrevista_Glória |
Depois de 2008 veio aquele estúpido daquele decreto lei 75, que ainda está em vigor e que partiu a escola toda. 75/2008 nunca mais me esqueci – mas eu tenho muito boa memória para algumas coisas claro [risos] – que instituiu o diretor. A figura do diretor com quase plenos poderes, coitadinhos! Têm o poder do cocó, mas alguns pensam que sim, que têm muito poder, coitados! A figura de diretor, a figura de coordenador de departamento, e tudo nomeado pelo diretor, e o diretor, e o diretor, e o diretor… pronto, eu e a minha vice presidente dissemos “vamos concorrer à direção!”, e concorremos! E concorremos e depois não ganhamos… aquilo que eu vou dizer é a minha palavra única - mas não é só porque há muita documentação escrita por aquela escola - a outra lista do grupo arranjou um pseudo-diretor, coitadinho, ele tinha metade do meu currículo. Tinha METADE do meu currículo, mas pronto, já havia o bom do conselho geral – uma falácia! – o conselho geral nas escolas é uma falácia. Manipulou, manipulou, conseguiu manipular o pessoal não docente com promessas que depois não cumpriu, não é verdade? O conselho geral fez um conjunto de ilegalidades, muitas ilegalidades e nós recorremos. Não queira saber aquela entrevista, o conselho geral a fazer uma entrevista aos candidatos, que estupidez. Uma estupidez! Não queira saber a entrevista, nunca fui tão humilhada na minha vida. Eu já estava à beira de me reformar, estava nas tintas para ser diretora ou não, agora as coisas têm que ser muito pensadas e sérias, senão não vale a pena, pronto. A entrevista que me fizeram, a mim e ao outro palerma, não foi feita pela presidente do conselho geral, não foi feita, porque ela não tinha estaleca para isso. Ela era uma pessoa muito medrosa, era e é, e foi feita por um pai, tinha 30 e poucos anos, um gestor de recursos humanos dos CTT. Nunca fui tão humilhada! Por um badameco. Um badameco. E se o vir na rua é uma pessoa com quem não falo. Ele bem me cumprimenta, mas eu passo à frente, faço de conta que não o conheço. Mas nunca fui tão humilhada, foi MUITO feio aquilo que me fizeram. Pronto, recorremos para tribunal e ganhamos. E estivemos lá mais dois anos. Recorremos contra a direção regional. Depois passado os dois anos recebemos um dia uma carta da direção regional de um advogadeco que lá está, acho que ainda está, não me lembro do nome dele, mas também não interessa para nada, um advogado que NUNCA foi capaz de dar uma orientação, dava pareceres… um dia mandou um email para a escola, em 2010, a dizer “têm três dias para abandonar o cargo e para o diretor indigitado tomar posse”. O tribunal nunca nos deu resposta, nós metemos providências cautelares, e foram aceites, duas e foram aceites durante o tempo que lá estivemos, mas depois o tribunal nunca nos deu resposta. Não faz mal! Porque eu já tinha tempo de reforma, saí da escola [emociona-se] de queixo erguido. A então presidente do conselho geral novo era a minha ex-vice, foi muito desagradável no dia em que eu saí, entrou na sala e disse “olha Glória Maria, a partir de amanhã começa uma nova vida!”. Nunca mais me vou esquecer destas palavras. E vim para casa. E estou muito bem, e estou muito bem. Fiz muitas coisas já entretanto, outras que ela não era capaz de fazer.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Iva-1 |
pof | entrevista_Iva |
tempoh | 1979 |
keys | Miniconcurso // Contratados // hierarquias na sala dos professores |
nvivo | Arquiteturas de prática |
Eu comecei em mini-concurso, era o que se chamava na altura, em 1979 e fiquei na [escola] M. A., onde tive uma experiência fantástica. Os meus colegas não reconheciam os professores mais novos. Eu sentei-me uma vez num banco, à espera da aula, e aparece uma colega e diz: “Esse lugar é meu!”. Eu dei-lhe o lugar, pronto. Portanto, havia uma distância enorme entre as pessoas.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Iva-2 |
pof | entrevista_Iva |
keys | Exercício abusivo do poder // Diretora // Auxiliares de ação educativa |
nvivo | incidentes críticos |
Acho que nenhuma direção, à exceção da [escola] M. T., onde eu reconheci que aquela diretora não tinha competência, uma coisa horrível no relacionamento com as empregadas. Se eu lhe contar uma história, que foi a que mais me chocou… Um dia íamos… A escola tinha uns largos corredores. Era uma escola, relativamente nova, naquela altura. Ela vai pelo corredor fora e diz assim a uma funcionária que está numa secretária - a escola tinha dois pisos - “Olha lá o que é que está a fazer aqui?”. Eu vinha bem mais atrás que ela e ela diz: “Ai, eu vim cá para baixo porque vai tocar, os meninos, depois, saem todos e ali ao fundo é o bar e a minha colega lá de cima faltou e eu achei que ficava melhor aqui.”. “Mas eu não mandei pensar, não mandei usar a cabeça. Olhe use a cabeça dos dedos dos pés!”. Já viu o nível da pessoa? Um desrespeito por todos. Foi a única directora que, efetivamente, eu achei deplorável. Já esta aposentada, mas que não tinha postura nenhuma, nenhuma educação, nenhuma.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Maria Luís-1 |
pof | entrevista_Maria Luís |
keys | Clubes // Currículo Infomal // Atelier de cerâmica |
nvivo | Incidentes críTicos |
Eu gosto de dar aulas, não da parte burocrática, deixei de trabalhar em casa. Com a idade vou perdendo as horas letivas, a última vez que fui trabalhar já só tinha 14 horas letivas. O resto eram horas não letivas que eu aproveitava bem esse tempo com clubes, com clubes de cerâmica, com bibliotecas, com coisas assim. Mas este diretor, de quem falei há bocado…eu tinha uma sala pré fabricada que era o meu clube de cerâmica, que eu, ao fim de muitos anos a chatear o Ministério da Educação, eu consegui que o Ministério da Educação me mandasse uma mufla, que é um forno para cozer barro, todo o material necessário para fazer um clube de cerâmica em condições e meu marido trabalha com cerâmica e ele fornece determinados produtos que eu precisava para trabalhar em cerâmica. Aliás, se for a minha escola, quem lá for ver as paredes todas decoradas, está tudo decorado com peças feitas de cerâmica. Eu, aliás, trabalhei durante oito anos com aulas de cerâmica aos meninos do ensino especial, porque eles adoravam. Eles tinham um sucesso fantástico nesta disciplina e também num espaço verde. E esse diretor teve o condão de me fechar o espaço verde, me proibir de lá entrar e de desmontar a sala do clube de cerâmica. Eu entrei para o gabinete, não tinha hora marcada, nem bati à porta. Até fui mal educada. Eu disse tudo o que tinha a dizer lhe. Parece impossível uma pessoa que está aqui há 20 e tal anos que tem este clube de cerâmica que tem imenso sucesso com os alunos, e como tu podes ver a escola está super decorada, super arranjada, com as peças que se fazem no clube de cerâmica e tu tens o descaramento de desmontar o meu clube de cerâmica sem sequer me perguntar. Ah, mas eu tinha que ter uma sala para os funcionários. E foi aquela sala.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Orlanda-1 |
pof | entrevista_Orlanda |
Com um professor – ele já está reformado – esse professor esteve de baixa durante muito tempo, o limite, dois anos. E ele não se adaptou à escola e fez a vida dele. E quando foi obrigado a vir para a escola, eu tive de lhe dizer que ele tinha de trabalhar, pelo menos, 31 dias. E ele não percebeu aquilo, porque ele veio um dia à escola e no dia seguinte queria meter baixa. E não podia. Uma questão legal, e ele entrou num conflito comigo… discussão, insultou do piorio… mas ele não devia estar bem, não devia estar bem. Mas foi uma tensão chata. Depois ele, quando chegou a casa, telefonou-me a pedir desculpa. Eu até disse: se houver alguém que pegue na turma dele, ele que fique em casa. Mas é mesmo assim, não vale a pena vir contrariado pegar em alunos. Depois houve um colega que disse: “Eu vou pegando na turma dele, faço isto, não quero compensações absolutamente nenhumas e depois ele, ao fim de 31 dias, que meta novamente a baixa”. E foi assim que se fez. Foi essa tensão.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Quitéria-1 |
pof | entrevista_Quitéria |
keys | Indisciplina // direção de turma |
nvivo | Incidentes críticos |
Fui sempre diretora de turma ao longo destes anos todos, mas só houve um ano que não fui directora de turma. Por isso, ao longo destes 30 anos fui sempre diretora de turma e lembro-me de, no meu primeiro ano de diretora de turma, o presidente do Conselho Executivo na altura virar-se para mim e dizer: “Olha um aluno da tua direção de turma” - eu estava na escola há uma semana acabada de sair da faculdade, com 22 anos - “uma aluna da tua direção de turma fez xixi na cabeça do outro do primeiro andar para o rés do chão, resolve o problema”. Esta frase ficou na minha cabeça estes anos todos. Tens de resolver o assunto. Não me pergunte como é que eu resolvi o problema, porque já não me lembro, mas fiz assim. Mas como é que é possível um garoto estar a fazer xixi do primeiro andar para o rés do chão em cima da cabeça do outro de propósito?
ciclo | 2º Ciclo |
id | Quitéria-2 |
pof | entrevista_Quitéria |
keys | (In)disciplina |
nvivo | Incidentes críticos |
Eu estava na E.E., tinha uma turma com uns 32 alunos, era uma turma muito engraçada e lembro-me que cada vez que dava uma estrutura nova, fazia a oralidade aos 32, registava aquela frase e acabou a aula. Sei que um dia houve um problema qualquer de um miúdo que estava sem dinheiro ou não sei quê, a certa altura gerou-se lá uma confusão que eles queriam dar dinheiro ao colega e que começaram a atirar com moedas de um lado para o outro. E disse assim, se vejo mais alguma moeda a voar eu pego na moeda e enfio-vos pela a boca, ainda era na altura do escudo. E disse um aluno, não faz mal professora, o escudo está sempre a descer. Ele tinha dez anos… foi tão engraçado.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Quitéria-3 |
pof | entrevista_Quitéria |
tempoh | Anos 80 do século XX |
keys | Iliteracia // matrículas |
nvivo | Incidentes críticos |
geo | Vila Nova de Ourém - Interior centro |
Quando eu comecei, havia mais respeito pelo papel do professor. Estamos a falar há quase 40 anos atrás, não é? Ainda me lembro um dia, uma vez em Vila Nova de Ourém, durante a matrícula, de um senhor que queria-me dar 20 escudos por estar a fazer a matrícula do filho, “Não quero, este é o meu trabalho”. Pronto, coitadinho do senhor, acho que não sabia ler nem escrever. Estava muito grato e queria-me dar uma nota de 20 escudos para me gratificar do trabalho que eu estava a ter.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Rosário-1 |
pof | entrevista_Rosário |
keys | Abuso de menores |
nvivo | Incidentes críticos |
geo | Zona Centro |
Pronto, fui diretora de turma e eu gostava de ser diretora de turma. E numa altura eu tinha uma turma do nono ano e havia uma miúda lá que era muito apagadita, mas eu notava que ela se queria aproximar de mim, notava que ela se queria aproximar de mim. Até que um dia esperou que os outros todos saíssem para me dizer que o pai abusava dela. E o pai era meu colega. E o pai era meu colega de escola. Foi muito chato. Eu tentei acompanhá-la e depois ela pensava que eu [achava que ela] estava a mentir. Chegou a levar-me dentro da mala fechaduras, porque ele tirou as fechaduras a tudo, fechaduras do quarto dela, fechaduras da casa de banho, para poder entrar à vontade. Ela deitava-se e ele depois ia-se deitar ao pé dela. Claro. Eu penso que nunca houve relação mesmo, mas apalpava e tal. E eu, que estava metida, não sabia o que é que havia de fazer à minha vida. Depois entrei em contacto com Coimbra, que me ajudaram, pronto, a falar com ela. Eles foram lá uma vez. Vieram primeiro aqui a casa saber se eu era maluquinha, se estava a inventar ou se realmente era verdade, para saberem da situação. Mas depois foram à escola falar com ela… quer dizer, consegui que a miúda se afastasse do pai e, portanto, saísse de casa. Porque a mãe sabia, mas…
ciclo | 2º Ciclo |
id | Rosário-2 |
pof | entrevista_Rosário |
keys | Reconhecimento profissional |
nvivo | Incidentes críticos |
geo | Interior Centro |
Anteontem fui ao supermercado e perdi a carteira. Carteira onde tinha os cartões todos e tinha dinheiro. E voltei lá. Pensava que tinha sido no supermercado: não tinha. Tinha caído, não sei como, para um corredor, mas não é dentro do supermercado, antes do supermercado. E então houve uma senhora que me disse: “olhe, veja aí no café, acho que ouvi dizer que estava lá uma carteira”. Fui lá e a senhora que estava lá: “Não se lembra de mim, mas eu fui sua aluna nos N.!” Uma senhora de cabelos brancos, até parecia que – era mais nova, de certeza, do que eu, mas pronto… muito satisfeita. “E foi também professora do meu irmão P.” e não sei quê… é muito bom. O meu filho foi – não foi aos Pirinéus, como é que se chama aquela coisa ali…? Não sei bem. Foi a um sítio, não me lembro, com um colega, onde há muita neve e muito gelo e muitos montes. Lá no Norte. Como é que chamam àquilo?
ciclo | 2º Ciclo |
id | Rosário-3 |
pof | entrevista_Rosário |
keys | Reconhecimento profissional |
nvivo | Incidentes críticos |
Estou-me a lembrar de uma - ainda foi numa escola, na altura, nova, foi na outra. Num dia em que eu ia para uma sala de aula e vejo tudo escuro, a porta fechada e a escola escura e os alunos lá dentro. E, de repente, abre-se a luz: é o dia dos meus anos, então eles quiseram fazer-me essa alegria, ver se eu ficava satisfeita, se eu ficava contente. Estou-me a lembrar disso, estou-me a lembrar da questão de eles ainda se lembrarem de mim, virem ter comigo e dizerem: “foi minha professora e gostei muito”, e não sei quê. Para mim, isso é uma alegria muito grande. Eu gosto muito, porque eu já nem os conheço, a maior parte eu já nem os conheço. Eles vêm ter comigo: “eu não me esqueci, se eu gosto de Matemática é graças a si”, “olhe que é graças a si que eu gosto de Matemática”, ou “se eu tenho o curso de Matemática é graças a si”, ou coisa assim do género. Isso alegra muito. Ou “a senhora foi como uma mãe para mim”, porque tinha dificuldades, a miúda, tinha dificuldades e eu dei ordens para lhe levarem o lanche a meio da manhã e eu pagava… sei lá - também não tinha direito à ação social escolar, mas a garota tinha fome e eu dei ordem - ou eu ficar mais tempo no final das aulas, portanto, a saída era às cinco, cinco e um quarto, acho eu, e eu ficava mais tempo com alguns que pediam para os ajudar a ultrapassar certas dificuldades. Sim, estou-me a lembrar disso, não sei se há mais coisas. Isso dava-me uma alegria muito grande, pelo menos como uma compensação interior, não é? Eu gostei muito de ser professora, gostei e gosto. E quando não os tenho fico com uma neura desgraçada.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Rosário-4 |
pof | entrevista_Rosário |
keys | Relação pedagógica |
nvivo | Incidente crítico |
Este miúdo – miúdo, está na faculdade, está a fazer um mestrado, portanto, está em Gestão - ontem ele falou-me nisso: o nosso primeiro contacto foi - e foi a partir daí que nós nos agarramos mais - foi numa aula em que eu escrevi qualquer coisa no quadro, que não me lembro o que é que foi, e que ele não percebeu. E ele pôs o dedo no ar e disse: “Oh mãe, o que é que está aí escrito?”, e eu respondi: “Oh filho, não vês que [risos]” … A partir daí, era “oh mãe, oh filho”, a partir daí eu chamava-lhe sempre “oh, filho” e pronto, e ele diz que eu sou a segunda mãe dele e a mãe dele sabe. Os outros também brincavam, os outros também brincavam com isso, “oh mãe, oh filho, oh mãe, oh filho”. E ele, só quando eu disse “oh filho”, é que ele reparou naquilo que me tinha chamado, que me tinha chamado mãe.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Rosário-5 |
pof | entrevista_Rosário |
keys | Professores veteranos // Sobreviver depois da aposentação |
E mesmo agora. Ah! Três anos após – já não me lembrava disto - três anos após a minha aposentação, ainda continuei a ir à escola mais três anos. E porquê? Porque uma colega minha de Matemática me pediu, talvez por ter pena minha e por saber que eu adorava, que eu adorava ensinar, pediu-me para eu ir para as aulas dela de Matemática. Então eu tive três anos - sétimo, oitavo e nono que tive – depois disse: “não, acabou, não, não posso continuar a vir à escola porque também acaba por ser demais”. Eu estava na escola com ela, ia a todas as aulas dela e apoiava os alunos mais fracos, dei a alguns alunos apoio. Eles chamavam-me: “Professora Rosário, professora Rosário, venha cá, que eu não estou a perceber”. Chegaram a dizer que percebiam melhor aquilo que eu explicava do que propriamente aquela professora. E houve uma altura em que eu achei gratificante porque os pais de uma miúda aluna dela me vieram agradecer porque a miúda estava a conseguir graças ao apoio que lhe dava, e eu achei que isso era gratificante. E outra vez aqui perto de minha casa, estava aqui à porta de minha casa e atravessou um rapaz que era muito sorna e que eu ajudei muito com a mãe, que era advogada. E acho que ele disse à mãe: “olha, esta é que foi a professora, a professora Rosário”. E a mãe veio-me agradecer, que o miúdo tinha conseguido nota a Matemática graças a mim, agradecer o apoio que eu lhe tinha dado. Eu ia lá não ganhava um tostão, eu ia lá só porque…
ciclo | 2º Ciclo |
id | Rosário-6 |
pof | entrevista_Rosário |
keys | Professores veteranos // Sobreviver depois da aposentação |
Quer dizer, eu levantava-me cedo todos os dias, arranjava-me como se fosse para as aulas, ela passava por aqui, levava-me, para eu não levar o carro, estava lá a manhã toda com ela, depois vinha para casa. Acho que não ia de tarde, só ia de manhã, só ia para as aulas. Também achava que era demais. Depois ela perguntou-me, depois desse sétimo, oitavo e nono, quando foi começar o novo ciclo, ela perguntou. Eu disse: “não, não, não quero mais, não é por nada, mas eu tenho de quebrar com isto, mais dia menos dia eu tenho que…não posso continuar assim”. Mas faz muita falta o contacto com as pessoas, o contacto com os alunos, o contacto com os colegas. Eu acho que é muito importante.
Entrevistador: O período de reforma, o corte com aquela que é a vida ativa, para pessoas que são ativas e que contactam com muita gente…
Rosário: Este que eu há bocado mostrei, o C.P., é de Biologia.
Entrevistador: Sim, sim.
Rosário: Quando saiu, esteve muitíssimo em baixo, muitíssimo em baixo. Creio que se dedicou à agricultura e acho que é o escape dele. Mas eu não tenho quintas para me dedicar, não me posso dedicar, só aos vasos que estão na varanda [risos]. Mas eu acho que aqueles que trabalham por gosto - e ele é um deles, era um deles - as pessoas que trabalham por gosto… aqueles que estão fartos daquilo e ansiosos por andar, acham que é um descanso. Aqueles que davam tudo como eu, dava tudo que podia dar e que me dedicava de corpo e alma - o caso dele também - esses aí acho que lhes custa, acho que custa muito.
Entrevistador: É um corte muito grande. Mas fico contente que a professora mantenha aí esse contacto com alunos antigos, que isso é sinal de que realmente a professora marcou aí muitas vidas, e também através das explicações que vai dando.
Rosário: Sim, um ou outro que me pede e eu dou. E estou sempre ansiosa, ansiosa que aquilo chegue. Há uma que a mãe é farmacêutica e eu até lhe disse: “Que é feito da sua I.?” Ela entrava-me ali em casa, como se fosse assim um vento sereno, uma coisa luminosa que me entrasse. Eu adorava. E depois eu lá tinha de conseguir que ela tivesse boas notas. Ainda melhor. Era um entusiasmo, para mim e para ela.
2º Ciclo
ciclo | 2º Ciclo |
id | Sofia-1 |
pof | entrevista_Sofia |
tempoh | 1984/85 |
keys | Dificuldades para ir à escola |
nvivo | Percursos |
geo | Trás os Montes |
Foi em 1984-85. Entretanto, estive em Carrazedo Montenegro, que eu nem sabia onde é que era. Nós na altura concorríamos para todo o país - isto se quisessemos ficar efetivos. Concorríamos a 100 escolas, depois a dez ou 20 distritos e depois a zonas, que era o país todo. Eu acabei por entrar no distrito de Vila Real, numa das primeiras escolas. Depois do distrito, era por ordem alfabética e eu entrei em Carrazedo. Acabei por entrar mais longe do que colegas que estavam atrás de mim, mas que puseram escolas em Alijó. Estive um ano em Carrazedo, onde já fui delegada. Pertenci pela primeira vez ao conselho pedagógico, fui diretora de turma, fui delegada de Português e de História - com uma colega que por coincidência também vivia em Matosinhos. A presidente do conselho directivo era de Carrazedo e era do terceiro ciclo, porque já tinha segundo e terceiro ciclo - essa já era do quadro. Nós fomos as primeiras a entrar no quadro, como efetivas. Nunca tinha havido ninguém, com habilitação própria, do quadro na escola de Carrazedo. Todos os outros colegas eram contratados, tanto a nível de segundo como do terceiro ciclo [do ensino básico]. Foi uma experiência muito interessante. Eu tinha uma turma [em que os alunos] saíam de casa às cinco horas - em Carrazedo neva o ano inteiro. Lembro-me de neve quase até aos joelhos. Nós íamos todos vestidos, era um sítio extremamente frio. Nós tínhamos alunos que vinham de aldeias, no meio da serra, que saíam às cinco horas de casa com aquelas candeias. Na altura, arranjaram uma carrinha do Ministério da Agricultura que os trazia num jipe até à estrada, onde depois apanhavam a camioneta para ir [para a escola]. Eles chegavam cedíssimo, por volta das sete da manhã. Havia um café em frente à escola, que era o café de um senhor que tinha vindo de Angola. Ele vivia por cima do café. Quando ele sentia que a camioneta estava a chegar, ele abria a porta do café para entrarem e estarem ali quentinhos - tinha uma salamandra. A escola abria, normalmente, às sete e meia. Havia miúdos que a primeira vez que tinham visto televisão foi quando fizeram a quarta classe. Isto em 1985. Só nessa altura é que começou a haver, nas aldeias daquela zona, eletrificação. Muitos eram filhos de pastores. Dormiam no meio dos animais para se aquecerem. Eu que achava os rebanhos uma coisa lindíssima, até me meter no meio deles [e perceber] que cheiram tão mal!!! E os miúdos refletiam também esse odor. A maioria deles tinha uma sede enorme de aprender e tudo era novidade. Eu lembro-me de ter ficado muito zangada com a presidente do conselho directivo, que era um bocado ríspida, pois um dia apanhou um aluno meu por uma orelha, porque o miúdo estava a escavar. Aliás, foi a primeira escola onde eu entrei, que já tinha um computador, o que era fantástico. Em Carrazedo havia uma casa de venda de computadores. O miúdo fez uma covinha lá num canteiro. Porquê? Porque o avô - era um miúdo de uma dessas aldeias - tinha-lhe dado uma nota em dinheiro, na altura em escudos, para aí 20 escudos, que hoje nem sequer é um euro. O miúdo, com medo de a perder, enrolou a nota num papel, fez uma covinha e guardou a nota. Eu depois até lhe perguntei: “Mas tu julgavas que aquilo ia crescer?” (risos). Ela levou-o à direção, queria castigá-lo porque ele tinha estragado o canteiro. Ele, coitadinho, bem queria explicar o que estava a fazer, mas ela nem o deixava falar. Eu, na altura, zanguei-me.
Aliás, zanguei-me com ela várias vezes pela forma como ela tratava os miúdos, principalmente o filho dela, que era meu aluno.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Sofia-2 |
pof | entrevista_Sofia |
tempoh | 1984/85 |
keys | hominização |
nvivo | Percursos |
geo | Trás os Montes |
Depois tive experiências muito engraçadas. Aquela escola já tinha salas de disciplinas e tinha uma sala de História - que eu nunca tinha visto. Era uma sala muito bem equipada e muito bem decorada pelos professores que tinham estado lá antes - já era o quarto ano. [Na sala,] ao longo das paredes, havia [desenhos da] hominização. Na altura, houve problemas com o padre - já tinha havido nos anos anteriores. Não queriam que os professores de História falassem no desenvolvimento do Homem na aula. Foi um bocado complicado. As coisas, depois, foram evoluindo. Nunca mais tive esses problemas. Mas quando a gente se lembra que ainda hoje, nos Estados Unidos, há estados onde ainda é proibido nas escolas falar [do processo de evolução]… É a Bíblia e pronto.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Sofia-2 |
pof | entrevista_Sofia |
tempoh | 1984/85 |
keys | teatro // diversidade de disciplinas |
nvivo | Percursos |
geo | Trás os Montes |
Entretanto, no ano seguinte, estive em Mesão Frio, em 1986-87, 1987-88. Na altura, o presidente do conselho directivo pediu uma autorização ao Ministério porque a escola não era uma escola normal. Tinha segundo ciclo, terceiro ciclo e tinha sexto ano, portanto, o atual 11.º. Havia muitos problemas de transporte para levar os miúdos do secundário para a Régua. Como eu só tinha duas turmas, [o presidente] pediu autorização ao Ministério para eu dar Filosofia e Introdução à Psicologia. Eu dava Filosofia no sétimo [ano de escolaridade]. Introdução à Psicologia no sexto [ano de escolaridade]. Depois, descia as escadas e ia dar Português de quinto ano [de escolaridade]. Aquilo fazia uma confusão, principalmente aos [aunos] mais velhinhos, riam-se imenso pois eu estava a tratá-los como se fossem as criancinhas. Também foi uma experiência interessante, porque eu tinha que me focar, primeiro descer à idade e depois voltar a chegar aos outros. Foi giro. No segundo ano em que estive em Mesão Frio fiquei a substituir um colega na direção. Não gostei. Foi uma experiência que não me agradou muito. Fazíamos coisas muito giras na altura, peças de teatro, o Auto da Barca dos Infernos, fizemos coisas muito giras. Foi também um ano em que começou um novo estágio de professores, já com a Escola Superior de Educação, em Vila Real e também da Escola Superior de Educação do Porto. Havia dois tipos de estágio. [Um] para professores com um tanto tempo de serviço. [Outro] para aqueles que tinham mais de 15 anos de serviço. Na altura, tínhamos gente de Lisboa, do Alentejo e depois de zonas ali à volta. Depois, finalmente, dei um salto para Vila do Conde. Estive dez anos em Vila do Conde, desde 1986 até entrar em P., em 1988, que foi onde acabei [o tempo de serviço como professora].
ciclo | 2º Ciclo |
id | Sofia-2 |
pof | entrevista_Sofia |
keys | (in)disciplinas: participação dos pais |
nvivo | Incidentes críticos |
Houve um dia, lá na escola, em que uma professora chamou a atenção a uma miúda várias vezes: “Senta-te direita. Estás quase a cair.” Eu andava de um lado para o outro, a ajudar miúdos. Levantei-me e pus-lhe as mãos nos ombros e disse-lhe baixinho: “Ouve lá, a professora está farta de dizer. Não precisas de arranjar problemas. Está quieta. Não precisas de chatear o colega do lado, o colega de trás e não sei quê”. Mal eu pus as mãos nos ombros, eu pensei: “Isto vai dar sarilho!”. Meu dito, meu feito. Ela saiu da aula, telefonou à mãe, eu saí, desci as escadas, fui não sei onde e veio a funcionária chamar-nos. Estava a mãe, cá fora, a dizer que queria falar com a professora - aquela professora! - porque tinha batido na sua filha. Eu fiquei… Quando a senhora falou comigo, eu já nem sabia do que é que ela estava a falar. Só depois é que me liguei e lá expliquei a história. Isto não é só por ser ali, acontece em várias escolas.
ciclo | 2º Ciclo |
id | Sofia-3 |
pof | entrevista_Sofia |
keys | Supletivos diurnos // Fada Oriana |
geo | Vila do Conde |
Em Vila do Conde, tive turmas que depois desapareceram. Eram os chamados supletivos diurnos. Miúdos que já tinham 14 anos ou 15 anos e que ainda não tinham feito o segundo ciclo. Na altura era obrigatório. Imagine isso em Vila do Conde. Eles levavam paus com pregos para se defenderem. Uma vez, nós estávamos a dar pela primeira vez, em Português, a Fada Oriana. Dar a Fada Oriana àqueles miúdos era assim uma coisa… nós evitámos muito, mas era uma coisa obrigatória. Todos eles tinham o livrinho. Eu estava a ler-lhes a Fada Oriana e a pensar que ia ser uma desgraça - eu até estava com medo. Eles acharam muita piada. Eu nunca mais me esqueci disto. Quando foi o meu espanto, ao ler a parte da velhota que cai no abismo, e vejo um miúdo a chorar - o tal que levava o pau com pregos. Eles não liam o livro, estávamos a ler pela primeira vez. Ele chorava e dizia: “Ela morreu. Ela morreu”. Depois uma miúda dessa turma veio dizer-me que a única história de fadas que conhecia era de uma publicidade de máquinas de lavar.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Agustina-1 |
pof | entrevista_Agustina |
porque eu já ocupei todos os cargos, mesmo o de presidente de conselho diretivo, [numa oportunidade] em que o presidente saiu, foi para a Angola, e tudo o que ficou… faziam questão que eu o substituísse. Portanto, o restante grupo só ficaria se eu o substituísse. E eu até ao fim disse sempre que não, e disse que não, não, não para toda a minha vida, porque vinha-me à memória o rosto cansado, esgotado, de uma colega minha da Escola Secundária de Q., a M., que no início do ano, depois de fazer os horários, depois daquela situação burocrática toda, ela aparecia em setembro totalmente esgotada; e eu só disse assim: “Não, eu não quero ficar velha assim. Eu não quero ficar velha, isto não é para mim”.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Amália-1 |
pof | entrevista_Amália |
Depois uma coisa engraçada, que aquilo era uma tradição lá de Penafiel… na altura do Corpo de Deus, os pais dos meninos compravam um carneirinho, compravam um carneiro, uma ovelhinha. Então, eles faziam aquilo que chamavam a festa do carneirinho, que eu não conhecia, aquilo para mim foi inteiramente novo. Então, eles lavavam o carneirinho – eles e os pais – enfeitavam o carneirinho e iam pelas ruas. Ia a escola toda, mas cada um com a sua turma, cada professor ia ter um carneirinho… “Viva o carneirinho da professora Amália!”… “Viva o carneirinho da professora tal” - já não me lembro do nome das colegas. Achei muita piada àquela tradição.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Amália-2 |
pof | entrevista_Amália |
Mas não tenho assim mágoas nenhumas em relação a ninguém. Só tenho um caso, mas é de alunos. Esse foi um bocadinho chato, porque eu tive de marcar uma falta disciplinar, porque o rapaz estava destrambelhado de todo. Foi daquelas situações em que eu digo: “Vais sair.”. E ele respondia: “Não saio.”. “Vais sair.”. “Não saio.”. Eu tenho de agir ou então perco a turma. Insisti na minha posição, mas ele era assim… eu, na altura, era magrita, agora sou mais forte, mas isto é a idade. Ele era um rapaz para aí de um metro e 70, bem constituído, pertencia à claque dos super dragões… está a ver o estilo? “Não saio, não saio.”. Eu mandei-o sair porque ele foi muito insolente. Eu disse: “Então não sais… vamos chamar uma empregada”. Os colegas disseram: “Vai lá embora, vai embora, vai embora”. Ele lá foi. Mas esse é um momento… acho que é dos piores. Mas uma pessoa também esquece, faz parte… o engraçado é que, depois disso, muitos anos depois, eu vim a ser professora da filha dele… um doce de uma menina. Um doce de uma menina que depois me disse: “O meu pai foi seu aluno!”. “Ai foi? Então como é que ele se chama?”. Eu lembrava-me logo do nome, mas não lhe disse nada, claro, não ia dizer. Mas a menina não tinha nada a ver com o pai, um doce de uma menina… ele era um péssimo aluno, não estudava nada, nada, porque o que procurava era intimidar. Mas ela não, a filha não tinha nada a ver, um doce de uma menina. Pronto, ainda bem que a filha era melhor que o pai. Se calhar, a esta hora, já não é nada assim. São momentos. Não vamos pensar que a pessoa fica sempre assim. Na altura, ele era jovem, o ambiente que frequentava era esse, ele dizia mesmo: “O que eu gosto mais no futebol não é do futebol, é atirar paralelos às camionetas dos visitantes!”. Mas, com aquela filha, acho que já não é assim.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Amélio-1 |
pof | entrevista_Amélio |
keys | Indisciplina // reação dos encarregados de educação |
nvivo | Incidentes críticos |
Eu estava a falar da direção de turma e no último ano em que lecionei aconteceu um problema, assim uma dificuldade com uma encarregada de educação de um aluno que era péssimo no comportamento na aula. Estava sempre, sempre, sempre a estragar a aula. E, claro, eu tinha que tratar de o isolar. Eu não o podia ter na sala de aula porque ele não permitia que houvesse um curso normal na aula e havia lá alunos interessados. Havia lá uma aluna até muito brilhante e ela perdia. Ela e os outros interessados perdiam muito com isto. O tempo que eu passava a repreender era mais do que propriamente a dar a matéria.
Entrevistador: Sim, sim, sim.
Professor Amélio: É isso. E como eu várias vezes expulsei o aluno…que foi uma coisa que eu nunca fiz muito, nunca expulsei, nunca expulsei. Assim, por qualquer motivo, eu tentava sempre tê-los na sala, mantê-los na sala, mas naquele caso…ele era rebelde, era mesmo para estragar, era intencionalmente para estragar. Então a mãe dele pediu à diretora de turma para fazer uma reunião comigo e com ela. Portanto, estivemos os três reunidos e a mãe começou logo por me acusar que eu andava a perseguir o filho. Até a pergunta foi essa - “Você anda a perseguir o meu filho?” Utilizou mesmo este termo. Eu tentei explicar-lhe, aliás, era do conhecimento da direção da escola, que aquele aluno já estava rotulado como mal comportado. Mas a mãe insistia nisto “você anda a perseguir o meu filho, a maltratar e tal e eu até tenho provas dele. Até tenho provas, até tem testemunhas de uma aluna da turma”. Ora bem, o que é que acontecia com essa prova? Essa aluna era da mesma terra, da mesma aldeia deste aluno. Ora, ele tendo aquele estilo, manietava a aluna. Pronto, é assim: “Tu vais dizer que sim, que eu sou bem comportado, que o professor é que é mau para mim”. Pronto. E a mãe acreditou mais no filho e nessa miúda. Quer dizer, o filho é que tinha razão. Isso magoa muito, muito. Olhe, saí logo a seguir. Senti-me melindrado com essa acusação. Claro, é perseguir, e perseguir um aluno, o que não era verdade.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Amélio-2 |
pof | entrevista_Amélio |
keys | Reclamações dos Pais |
nvivo | Incidentes críticos |
Outra história, mais recente, também foi com uma encarregada de educação que reclamou e protestou contra uma avaliação num teste, numa ficha de avaliação. Essa encarregada de educação era médica. E a pergunta em questão, de que ela falou na caderneta de aluno, foi que o professor tinha considerado errado aquela resposta…
Essa mãe achou que eu tinha corrigido mal uma pergunta e que nem devia ter incluído aquela pergunta no teste. Pois é, depois tivemos uma discussão. Eu, com todo o respeito por ser médica disse: “Olhe, a senhora é médica, mas eu acho que tem que ir consultar outra vez o seu compêndio”. Aquilo tratava-se de uma enzima que atua a nível do estômago e também … Ela é produzida nas salivares, na glândula salivares. E a pergunta era se essa enzima só atuava na boca ou se iria atuar também ao longo do esófago. Portanto, no percurso. Claro, não era uma pergunta fácil. A resposta esperada era dizer que era na boca, mas depois o bolo alimentar segue o seu percurso. Vai misturado com a amilase, com a enzima da boca e vai atuando, portanto, também na digestão, ao longo do percurso no esófago. Eu reclamei e disse lhe só “A senhora vá rever os seus conhecimentos porque, olhe, até lhe digo mais [porque ela falava depois nos pH] o pH do estômago, sabe qual é? […] E ela acabou por me pedir desculpa. Pronto, acabou por reconhecer que eu tinha razão e pediu-me desculpa. E nessa reunião estava o presidente da direção da escola. Eu pedi a presença dele, pois estavam outros professores que também tinham queixas dessa encarregada de educação,também estavam presentes. E ela, agarrando-se ao estatuto de médica, achava que podia ter razão, que era ela que tinha a verdade. Pois não era, pois não era. Portanto, acho que me pediu desculpa. Aliás, eu na altura aceitei. Aceitei. Aceitei a desculpa oral, mas devia ter exigido o pedido de desculpas por escrito, porque foi por escrito que ela me acusou. Eu devia ter exigido a mesma via de desculpas, que ela escrevesse na caderneta de aluno que me pedia desculpa por tudo.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Aurora-1 |
pof | entrevista_Aurora |
Entretanto, ele foi para a tropa, e ao fim de dois anos foi mobilizado - ninguém contava que ao fim de dois anos fosse mobilizado. Ele foi mobilizado e foi para Moçambique. Entretanto, passado um mês, pouco mais de um mês, mandou-me uma carta com oito páginas a dizer para casarmos, para eu ir para lá. Eu pensei: “Ele é doido!”. Quer dizer, nunca me passou pela cabeça… para mim, o curso estava em primeiro lugar, nada, nada eu imaginava que o podia superar. Pronto, respondi-lhe e tal, que eu tinha dois anos para acabar o curso - ele também tinha dois anos - e quando viesse estávamos prontos, casávamos e tal. Ele disse: “Não, não” - via uns com mulher e filhos, outros a mandar ir as mulheres. Ele pensou… os meus sogros ficaram radiantes porque eu ia fazer companhia ao filhinho deles, não é? Pronto, ele veio cá casar. Então, quando me escreveu a carta ele já tinha casa, frigorífico e escola para eu dar aulas. Porque ele sabia que eu gostava de dar aulas. Mas, em economia, nunca me pus para dar aulas, não era vocacionado para o ensino, nós nem tínhamos bacharelato na altura. Portanto, ou tinha o terceiro ano, ou o quarto ano, ou tinha o quinto ano ou zero! Portanto, acabamos por casar e fui para Moçambique - dei aulas lá. Sete disciplinas, o diretor ficou todo contente porque não tinha nada, ninguém do meu grupo. Eu dei tudo que era possível dar e tal, pronto, foi interessante. Eu gostei muito, gostei muito.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Aurora-2 |
pof | entrevista_Aurora |
keys | gravidez // reuniões |
correram melhor?”
Entretanto, fiquei grávida nesse ano do estágio. “Oh Aurorinha, estás grávida?”. “Estou, estou grávida, chateias-me eu tinha que ter alguma compensação” (risos). O curioso é que ele também fez um filho à mulher – a M. é da idade do meu filho – e outro colega nosso também engravidou a mulher, a R. E um dia mais tarde, para lhe mostrar como ele era meu amigo. “Oh Aurora, eu estou muito preocupado contigo, tu estás chateada por estar grávida?”. Eu disse-lhe que não. “Porque disseste aquilo assim de uma forma”. “Pois, porque é verdade” (risos) - os gajos eram chatos como a potassa nas reuniões. Nós tínhamos reuniões não sei quantas vezes por semana, e eles “ti ti ti ti”. Eu, um dia, disse: “Isto assim não dá, temos que trazer alguma coisa para petiscar”. Então, eu levei aquelas paciências, depois uns amendoins, e todos trouxeram…. não é que as reuniões correram melhor?
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Aurora-3 |
pof | entrevista_Aurora |
Em Moçambique, aquilo era por nossa conta. Nós éramos os reis lá! Ninguém se metia connosco! Nem pensar! Foi muito giro porque eu tinha uma aluna que era mestiça, muito gira, muito gira - muito arrebitada. Dava-lhes várias disciplinas, uma delas era direito comercial - ela era boa aluna. Ela era aluna de 14, 15 ou 16. Um dia, ela foi muito mal criada comigo. Foi insolente, já não me lembro porquê, mas sei que foi insolente. Eu dei-lhe um raspanete e ficou por ali - foi no segundo período. No final do período, eu dei-lhe a nota que acho que ela merecia. “Então, vocês estão satisfeitos com as notas? Está tudo bem?” - ainda não se fazia auto-avaliação. Ela levantou o dedo. Eu pensei: “O que passa?”. “Senhora Doutora, eu pensava que me ia prejudicar por causa daquela cena”. “Não menina, para mim como pessoa vales zero, como aluna tens o que mereces”. Olhe, eu acho que não tive mais amiga nenhuma maior do que ela (risos). Eu consegui não misturar as coisas, embora realmente fosse… ela era assim pronto, se calhar estava contra os brancos, se calhar, não sei, não interessa.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Aurora-4 |
pof | entrevista_Aurora |
Em julho, acabou o conselho diretivo e ninguém fez lista, foi nominal. Foi o V. que era de Físico-Química que se candidatou e ganhou. Saiu da reunião e disse: “Eu quero-te comigo!”. “Nem penses! Eu não vivo aqui na esquina. Não, eu vivo muito longe, não dá para ficar aqui”. Fui de férias! Nunca mais pensei nisso. Em setembro, fui à escola e fui à reprografia - estava lá o padre que costumava fazer os horários. Eu disse: “Então padre está tudo bem? Então este ano o meu horário é bom não é? Veja lá! Eu não sei o que lhe faço se tiver um horário mau”. Ele ficou muito calado. Eu disse: “Não me diga que me pôs à noite outra vez?”. Ele diz: “Não, tu estás no conselho diretivo”. “Ah!!! O estafermo do V. pôs-me no conselho…”. Pronto, fui ver a legislação, se podia contornar, porque, entretanto, ele já tinha feito, passou o grupo todo para Lisboa, acho que ainda não tinha sido homologado, mas eu fui à legislação e quem é que estava em primeiro lugar para ser nomeado? De economia e gestão. Eu disse: “O ano passado tive um horário tão mau, não meti atestado, não faltei a uma aula, que razões é que eu vou dar para não ir para o conselho diretivo?”. Olhe, fui! Fui e fizemos uma revolução naquele conselho - não fui só eu! Foi o grupo, tenho um grupo muito jeitoso – fizemos uma revolução naquele conselho diretivo que toda a gente estava assim pasmada - eu fui vice presidente. O V. nomeou-me vice presidente porque era dos dinheiros… passou-me as coisas. Eu disse: “Olhe, tenha cuidado, é bom ter relações boas com a secretaria porque a gente não percebe nada daquilo e podem-nos criar problemas”. Eu disse: “Está bem, pronto”.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Aurora-5 |
pof | entrevista_Aurora |
Um dia, em novembro, entra-me uma turma toda pelo conselho diretivo dentro e diz-me assim: “Recusamo-nos a fazer Educação Física”. Eu disse: “Então porquê?”. “Não temos água quente!”. Eu fui à secretaria e perguntei. “O que é que se passa? Não há água quente?”. Eu chamei o fulano e disse: “Eu prometo que pagamos, mas não tudo de uma vez, pagamos às prestações”. Houve logo gás para tomar os banhos. Uma vez veio um contínuo, agora chama-se auxiliar, e disse-me assim: “Professora, venha ver que é uma pouca vergonha! Isto assim não pode ser assim, ali os alunos a beijarem-se”. Eu disse: “Procurem um sítio mais recatado, sabes porquê?” – ali havia também sétimo ano – “depois tenho aqui os pais dos meninos do sétimo ano e o que é que veem? Veem isto assim e não devem gostar muito por isso vocês tenham cuidado”. Pronto, satisfiz os alunos e o contínuo (risos) de forma que foi muito giro.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Aurora-6 |
pof | entrevista_Aurora |
Pronto, depois vim para a A. S. e foi um percurso muito giro, muito giro, muito giro. Tive de tudo, claro! Tive alunos que não gostavam de mim, não é? Ninguém gosta de toda a gente, não é? Mas, em termos gerais, acho que funcionou bem. Olhe de tal forma, eu vou dizer uma coisa que pode cair mal a quem está a ouvir porque pode saber a gabarolice ou algo assim do género mas é verdade, uma vez fui a um espectáculo em Gulpilhares e encontrei lá uma ex-aluna, no intervalo. “Ei estás aqui e tal”, e ela “oh professora e tal”, “onde é que estás?”, “estou em Évora”, “em quê?”, “em teatro”, “em teatro??”, “sim”, “então depois no fim do espectáculo a gente conversa”. E fui para a segunda parte do espectáculo e era assim “como é que ela se chama? Como é que ele se chama? Sofia!”, era Sofia, pu-la logo no sitiozinho certo na sala [risos] e depois no fim “tu chamas-te Sofia não é?”, “oh professora ainda sabe o meu nome?”, “olha sei, e estavas junto com x naquela carteira assim assim. Olha mas explica lá porque é que foste para teatro?”, “sotôra eu detestei economia! E a culpa foi sua.”. Ai meu Deus! “minha porquê?”, “porque ensinou economia de uma forma que nós gostamos tanto que quando cheguei lá não era nada assim”. Olhe eu chorei nessa noite, sabe? Depois falei com uma colega minha e disse “olha afinal eu a pensar que fazia bem e fiz mal, porque incentivei-os demais, motivei-os demais” e ela “não! Fizeste o que está correcto. Os outros é que não fazem” [risos].
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Aurora-7 |
pof | entrevista_Aurora |
Depois, uma mãe uma vez, a aluna tinha algumas dificuldades. A mãe disse-me assim: “Professora, veja lá se ela passa nem que seja para ir para professora”. Olhe, caiu-me o chão (risos). Está a ver a valorização do professor? Essa marcou-me, também, muito. Outro era um pai, que foi lá e eu estava-lhe a dizer que a escola não se limitava a transmitir conhecimentos mas também a dar valores de solidariedade, de união, de fraternidade. O senhor foi muito correcto, muito educado, ouviu-me até ao fim. No fim disse-me assim: “Pois minha senhora, pois é, mas eu digo ao meu filho ‘isto é uma selva e tu tens que ser leão’”.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Aurora-8 |
pof | entrevista_Aurora |
Eu era diretora de turma e havia uma aluna, que até ficava sempre nas primeiras filas, aluna boa, de 14 e 15, uma aluna razoável. A determinada altura, começou a baixar as notas, nas aulas estava absorta. Eu sentia que ela não estava lá, no final da aula chamei-a e falei com ela. Disse-lhe que se quisesse falar, eu estava disponívela - ela não quis. Passado uns dias - não sei quantos - veio ter comigo e disse: “A professora tem razão. Eu não ando bem”. Ela já andava no décimo primeiro ano, na altura. Ela disse: “Eu fico a fazer o jantar, depois vou para a minha cama e o meu pai vem para a minha cama e põe-me as mãos nas maminhas.”. “Como é que pode ser? Disseste à tua mãe?”. Ela respondeu-me: “Eu disse, mas ela não acredita, diz que eu quero separá-los”. Eu, logo no princípio do ano, vi que na ficha dela o encarregado de educação era a avó. Eu perguntei-lhe se ela vivia com a avó e ela disse que não. Chamei a avó, que era a encarregada de educação, e disse: “Olhe, a senhora sabe que se passa isto assim e assim”. “Sei minha senhora, ele é meu filho! Eu sei”. “Então porque é que a senhora não a tira de casa dele, assim de mansinho e vem para sua casa, a senhora controla melhor”. “Oh minha senhora!” – ela assim muito parolita – “Oh minha senhora, tenho um genro lá em casa que ainda é pior!”. Ai no que eu estou metida! Passei três noites a chorar, mas acredite que eu era assim: “Se o meu marido fizesse isso a um filho meu acho que o matava”. Eu não sou nada violenta, mas acho que fazia isso, são coisas que eu não admito. Eu ia para a cama e pensava: “Como é que eu hei-de fazer? Eu tenho que tirar aquela miúda de casa. Vou lá e tiro, mas não pode ser, não pode ser.” Falei com a professora de religião e moral, que ela tinha religião e moral, pedi para ela falar com ela. Depois, a colega veio ter comigo e disse: “Aurora, é verdade!” (suspira fundo), portanto, depois chamei a avó e disse: “Pois, minha senhora, mas a senhora tem que tomar uma decisão, senão eu chamo a polícia”. Disse mesmo: “Eu chamo a polícia”. Naquela altura, ainda não havia nada destas coisas da CPCJ, não havia nada disso. Entretanto, acho que a coisa amainou. Fomos para as reuniões de final de ano e o professor de Matemática disse que ia chumbar essa aluna. Eu disse: “Oh A. não faças isso”. Ele insistiu. Eu, cá para mim, “pronto, vai ser uma votação”. Fui para a reunião e o professor de matemática “9” e ela com 9 reprovava. Eu deixei, acabou de ditar as notas, eu estive a analisar os casos e fomos para o caso dela. Eu disse: “Ora bem, temos aqui o caso da X que não faz o curso por causa da disciplina de Matemática”. Diz assim uma colega: “Votamos”. Estivemos uma hora a discutir o assunto, e o da Matemática não cedeu. Eu disse: “Bem, eu queria evitar dizer isto mas com esta menina passa-se isto assim, assim, assim e ela tem que ir trabalhar para sair de casa”. Eu vi lágrimas nos olhos dos homens. Mas vi mesmo! Pronto, aí toda a gente… fizemos tudo para construir o texto. Estivemos ali um tempinho e ficou o texto. Nesse dia, era a sardinhada lá na escola de final de ano - eu fui ao presidente do conselho diretivo - e disse-lhe: “M. anda cá, olha na turma tal vais lá encontrar uma votação de nota, ai de ti se mandas a ata para trás” (risos) “que aquilo foi super pensado, bem fundamentado, por isso não ouses…” - nunca tive problema nenhum. Foi outra coisa muito marcante que eu tive. Porque estas coisas a gente vê no cinema, vê nos jornais, vê na televisão, mas à nossa frente… e a gente estar praticamente de mãos atadas! É horrível, horrível, horrível! Foi muito chato, foi muito chato. Mas pronto, depois nunca soube mais nada dela, nunca mais, espero que seja feliz, mas nunca mais soube nada. Foi outro aspeto marcante do meu percurso e sobre família-escola.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Caetana-1 |
pof | entrevista_Caetana |
tempoh | Década de 60 do século XX |
keys | Alfabetização |
nvivo | Incidentes críticos |
Uma fase antes do 25 de Abril, nos finais dos anos 60, ainda antes de eu começar a trabalhar propriamente no colégio particular, nós assumimos a direção do Clube Recreativo e Desportivo e começámos. Havia muitas greves na mesma, que era a fábrica de máquinas de escrever. E então um grupo de jovens começámos a dar formação alfabetização aos trabalhadores da mesa. Depois assumimos o controlo do Clube Recreativo e criámos cursos de instrução primária, primeiro ciclo, segundo ciclo. Eles faziam tudo num ano. Havia um gajo do técnico, havia outro. Daqui ou dali, acolá, Tudo gente sem ganhar um tostão. Onde dávamos à noite que eles saíam da fábrica e tudo para ali estudar? Uns faziam a quarta classe, outros o primeiro e o segundo ano, outros o terceiro, quarto e quinto, o primeiro de letras ou primeiro de ciências. Faziam, mas num ano faziam uns três anos.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Camila-1 |
pof | entrevista_Camila |
keys | Promover o sucesso escolar |
nvivo | Incidentes críticos |
E houve outros alunos que realmente me deram uma satisfação pelo que evoluíram. E eu conto sempre um caso, que os meus colegas sabiam que era uma turma especial, houve um ano em que eu estava no Conselho Diretivo do H. e pedimos licença… Tínhamos alunos que eram tri-repetentes de sétimo ano de escolaridade e nós pedimos à direção regional para criarmos uma turma com esses alunos para não os misturar com alunos que estavam dentro da idade normal e para podermos trabalhar com eles de maneira diferente e pronto. E depois, enfim, eu lá consegui movimentar um bocado o corpo docente. Houve professores que se ofereceram como voluntários, eu própria dava Português na turma. E fizemos com eles um trabalho espetacular e depois seguimos até ao fim do nono ano, mais nenhum reprovou ano nenhum e nunca mais nos esquecemos de um miúdo, coitadinho, que tinha algumas limitações e começou por ter, sei lá, 8% no primeiro teste de Português e que chegou ao fim do ano e teve uns 70% no último teste. Na última aula quando fizeram a avaliação ele levanta-se a chorar e diz ” Oh professora, posso-lhe dar um abraço?” - “Podes” e fiquei espantada e ele disse “Oh professora é que eu julgava que era burro e afinal não sou”.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Camila-2 |
pof | entrevista_Camila |
keys | Expetativas sociais da educação // elevador social |
nvivo | Incidentes críticos |
E depois um outro também que tinha uma mãe, a mãe era empregada doméstica e o pai tinha uma profissão qualquer. E a mãe era uma pessoa interessadíssima, para que o filho progredisse e chegasse mais longe do que eles, o pai não, achava que não, ele, o pai [achava] que ganhava o suficiente para sustentar a família. Portanto, um filho não precisava de ser doutor, como ele dizia. E a mãe, coitadita, sofria muito com aquilo. E o rapaz queria ser arquiteto, queria ir para arquitetura. E eu falava com a mãe e a mãe dizia-me “Oh sotora, porque eu não consigo dar a volta ao meu marido, porque ele quer continuar os estudos e o meu marido diz que não, que vai mas é trabalhar no fim do 12.º ano”. E eu disse “mande-me cá o seu marido, não quer dizer que eu o vá convencer, mas não perco nada em falar com ele”. E o homem, coitado, lá se apresentou assim com um ar um bocado encabulado à espera… a mulher já devia ter dito qual era o assunto. Ele devia estar à espera de apanhar um raspanete. E eu lá falei com ele e ele primeiro muito renitente, mas depois eu lá falei com ele e tal e disse vamos fazer assim -“Prometa-me uma coisa, se ele chegar ao fim do 12.º ano e entrar na faculdade deixa-o ir”, - “Ah professora, as propinas, porque eu não posso”, e eu disse -“as propinas não são tão caras como isso. E depois há bolsas. Ele pode concorrer e pode até conseguir”, e ele “se calhar também não é preciso isso”, -“então deixe ir o rapaz”. E ele, por acaso, depois acabou o 12.º ano e não entrou em arquitetura, mas entrou em design, portanto fez design. Depois, passados uns tempos, eu encontrei-o no supermercado, ouvi chamar por mim e olhei, era ele e estivemos a conversar, -“Então agora o que é que faz?”, -“eu agora sou arquiteto” Quer dizer, tinha feito primeiro design, arranjou trabalho e depois acabou por fazer arquitetura.
Entrevistadora: Ai, essa é uma história bonita mesmo.
Camila: E eu disse -“Olha, sabes a quem é que tu deves isso?”, ele disse -“à professora, devo muito a si”, e eu -“a mim deve alguma coisa, mas deve muito à tua mãe, não fosse ela uma mulher corajosa e uma mulher com uma visão da vida que não é, enfim, que não é mesquinha, que procura realmente o melhor para os filhos….Possivelmente ela nunca me teria dito. Eu nunca teria falado com o teu pai. O teu pai acabava por bater o pé no chão e era ele que mandava, porque era homem, e por isso tu nesta altura estavas a trabalhar noutra coisa qualquer”. E ele acabou por ser aquilo que ele sonhava ser, que era ser arquiteto.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Camila-3 |
pof | entrevista_Camila |
keys | Escolhas profissionais dos estudantes |
nvivo | Incidentes críticos |
E em termos de professoras tive um caso muito engraçado de uma rapariga que os pais eram advogados e não sei quê e queriam que ela fosse para direito e ela acabou por ir para um curso de letras, Português/francês ou português/inglês. E um dia a mãe apareceu lá muito chateada a dizer -“Professora, por sua culpa é que a minha filha vai para humanidades, não vai para direito”, e eu disse “Oh minha senhora, por minha culpa não” e contei-lhe logo a minha história. E se realmente é isso que ela gosta, -“aí, já viu que futuro, vai ser professora?”, -“Isso não quer dizer que seja professora, pode ser outra coisa qualquer, mas ela parece que gosta de dar aulas, portanto, se calhar vai ser professora. Qual é o problema? É alguma vergonha ser professora?”
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Camila-4 |
pof | entrevista_Camila |
keys | Reclamações dos Pais // parâmetros da avaliação |
nvivo | Incidentes críticos |
Uma vez tive um caso desagradável com um aluno, com o pai de um aluno, o pai era advogado e o miúdo no primeiro período teve umas prestações muito boas e depois no segundo período deitou-se à sombra da nota alta e não fez nenhum e apanhou um dez. O paizinho foi logo lá protestar e exigir ver as pautas em que nós tínhamos as classificações com os parâmetros e, enfim, fui sempre um bocado ingénua nestas coisas, mando-lhe pelo filho a grelha de avaliação. E pronto. O senhor depois escreveu uma carta a dizer que agradecia, que tinha percebido perfeitamente porque o filho tinha tido a nota que teve, mas que aproveitava para me dizer que a grelha de avaliação em termos de Excel estava muito mal construída. As minhas colegas “Não devias mostrar tudo aos pais. Não podias ter chamado o homem e ter-lhe dito de boca? É bem feito!”. Eu disse, eu só não vou escrever uma carta a pedir ao Senhor que me ensine então como é que se faz, porque não estou para continuar com esta correspondência. Mas, quer dizer, eram assim retorcidinhos, alguns, outros não.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Catarina-1 |
pof | entrevista_Catarina |
keys | avaliação |
nvivo | incidentes críticos |
Aí não, eu sou daquela equipa das Marias, não é? Nós éramos campeãs nacionais e eu ganhei 13 campeonatos e depois tínhamos que ir às seleções, à seleção nacional e eu joguei praticamente dos 14 até aos 38. E ainda bem que joguei, sabe porquê? Porque havia uma legislação quando era, por exemplo, estágios para a seleção portuguesa, para a seleção nacional, nós tínhamos direito, e não havia faltas, está a perceber? Mesmo nisso, coitados, os miúdos lá em Mangualde foram prejudicados porque, nesse ano, houve pelo menos duas seleções e um campeonato da Europa e já nem sei o que é que a gente entrou e eu era selecionada, mas nós éramos campeãs sempre, éramos melhores do que as outras, francamente. E eu fui selecionada e, portanto, para mim até era um alívio, porque não tinha que andar a ir lá. Eram duas, três semanas de estágio aqui, por exemplo, em Gaia, no Colégio de Gaia, a gente ficava instalada, que era um sossego, mas eles ficavam sempre sem professor durante esse período. Por exemplo, para entrar na Taça dos Campeões Europeus, que nós entrávamos todos os anos, também tínhamos direito a ir e não sei quê. E o clube no segundo ano que eu estive em Mangualde passou a pagar-me para ir a meio da semana treinar, percebe? Ou seja, eu ia, por exemplo, na segunda-feira para Mangualde, vinha à quarta, treinava na quarta, voltava na quinta e vinha na sexta e treinava na sexta e assim acabava por treinar duas, três vezes por semana para poder depois jogar ao fim de semana. Mas isto, a gente também tinha, eu tinha para aí 20 e tal, 30 anos. Mas era, olhe eu nem sei explicar. Eu ainda hoje olho para aquilo e digo: “Eu não sei como fazia aquilo”, os caminhos para lá, a estrada para lá era uma coisa. Eu tive furos, não sabia mudar pneus, parava no meio da estrada à espera que passasse por lá um, porque eram estradas quase sem movimento. Uma vez foi o carro de um presidente da câmara e eu no meio da estrada a fazer assim [faz gestos], lá o presidente da câmara parou, não sei de onde era e ainda disse “Veja lá, quer que a leve?”. O motorista mudou o pneu e eu depois lá fui ao meu caminho. Não havia telemóveis, portanto eram situações que não lembram ao diabo! As pessoas falam de nós como se nós trabalhássemos apenas 22 horas. Ninguém pode imaginar, por exemplo, o que eu demorava para fazer testes. Eu tinha, imagine, duas turmas do 12.º [ano de escolaridade] de Psicologia, por exemplo, e queria fazer testes. Eu dava-lhes normalmente os objetivos - nós chamávamos objetivos, agora já devem ter outro nome qualquer, muito mais intelectual - mas que no fundo era: “Meninos, nós queremos que vocês saibam isto, isto e isto”. Pronto, eu dava-lhes aquilo tudo por computador, como também lhes dava - que era outra coisa que muitos professores não faziam e que deviam fazer - dava-lhes a correção. Os tópicos, não é a correção. Eu fazia, eu própria, e é muito bom fazer o teste, e fazer logo que a gente vê como é que a formulação da questão está bem ou mal feita. Se eu quero que eles me digam isto, eu tenho que fazer uma pergunta que leve os alunos a manifestar que sabem isto, não é? Não pode imaginar o tempo que eu perdia nisto. Perdia, não! Perdia, pronto, perdia ou ganhava num certo sentido. Que era para turmas diferentes, como eu não dava o mesmo teste à mesma turma, avaliar os mesmos conteúdos, avaliar as mesmas capacidades de crítica, de interpretação, e tinha que fazer contextos diferentes e perguntas diferentes, mas que no fundo eram as mesmas. E isto que eu queria avaliar e depois fazendo logo a correção, isto é, os tópicos, na questão tal deve-se focar os seguintes pontos, isto vale X, isto vale Y, e o total da cotação, porque eles assim ficam esclarecidos. Os miúdos, assim, não tinham dúvidas nenhumas. Nunca me punham dúvidas. Eu não fazia correções na aula, eu entregava-lhes os testes juntamente com os tópicos de correção. Eles viam perfeitamente o que deviam ter dito e não disseram, ou o caminho que deviam ter seguido e não seguiram. E eu acho que muitas pessoas não fazem isso. Sinceramente, na escola eu via muitos professores não fazerem porque isso dá muito trabalho. Portanto, para fazer um teste, que eu fazia logo o teste mais a sua respetiva correção, eram horas e horas, percebe? Eram horas e horas! E depois, [durante] os fins de semana que toda a gente vem para casa e desliga do que andou a fazer durante a semana. A pessoa até pode desligar, mas está sempre - como é que eu lhe hei de dizer - “Ai, hoje vou ao cinema”, mas depois: “Eu não devia ter ido ao cinema porque eu tenho a turma tal para corrigir. Eu tenho que entregar na segunda-feira”. E lá estamos até à 1h ou não sei quantas da manhã a corrigir testes, ou a dar material para o próximo teste que eles vão fazer e não sei quê. São horas a fio! Não me venham cá com histórias de que o professor tem 22 horas, depois tem três meses de férias. Que é verdade, a partir de certa altura, mas olhe que eu acho que isso até nos provocava algum… Eu tenho uma amiga psiquiatra que me dizia “Vocês aparecem-me muito por lá porque uma das razões é vocês nunca terem um horário”, como é que eu hei-de dizer isto? Imagine, nós estamos com um horário de X horas por semana e, de repente, para tudo e vamos dar notas aos alunos. E, de repente!, vamos ter que fazer outras coisas. De repente, porque é do dia para a noite. Estamos habituados a acordar às sete e a não sei quê, não sei quê, e de repente é outra coisa completamente diferente. São tarefas completamente diferentes, porque as escolas têm outro tipo de tarefas que não são só as de lecionação, e nós entrávamos noutro tipo de tarefas completamente diferentes. Isto dá cabo aqui do esquema mental de cada um e por isso é que a gente chega muitas vezes ao psiquiatra. E até em situações mais graves do que essa, não é? Eu acho que há muito professor, muito professor mesmo, com alguns problemas. Eu bem sei que isto já vem de trás, mas há. Depois conheci imensos professores que não era, de facto, aquela vocação e que estão ali obrigados, entre aspas, porque não arranjaram mais nada ou porque não concorreram a mais nada e depois já são efetivos e depois não voltam para trás, não é? Mas eu acho que no geral é uma profissão muito pouco apoiada, isso não tenho dúvida, não é? Se eles queriam bons professores, tinham que nos dar condições para não nos preocuparmos com o dia a dia, com o dinheiro. Eu não queria pedir na altura dinheiro aos meus pais nem nada disso. E por isso mesmo digo-lhe uma coisa: Quando aquilo chegava ao fim, eu metia atestado, ficava doente na última semana até receber o próximo [risos]. A coisa melhorou quando o Leixões passou a pagar a gasolina para ir e vir, mas era extraordinariamente cansativo. Imagine, ora aquilo era a 200 quilómetros, eu fazia para aí 800 quilómetros por semana, para vir a Matosinhos treinar. Mas era uma coisa que eu não me importava porque eu gostava imenso de jogar, arejava e vinha. E depois lá tínhamos também um grupo forte. Eu acho que a gente apoiava-se, apoiávamo-nos uns aos outros e havia muitos professores de fora, de Viseu ou do Porto e tínhamos um grupo, íamos a discotecas. Nós também nos divertíamos. Senão dávamos em tolos! Mas tínhamos um belíssimo presidente do conselho executivo, que era ótimo, tratava todo o pessoal muito bem e depois fui-me aproximando e depois vim para a secundária, para a H.A., que foi sempre uma belíssima escola também, foi uma boa escola, sempre com bons professores e aberta a estas coisas. Deve ter sido das primeiras escolas que usou o moodle, deve ter sido. Agora a adesão dos colegas é que não foi lá muito, não foi lá muito grande [risos]. Acho que “isso é fantochada, é fantochada”, não são fantochadas, não são fantochadas. Poupa-se papel, por exemplo, imensos trabalhos de casa eles faziam no moodle e eu corrigia no moodle. E mandava-lhes a correção. Só os testes de avaliação propriamente ditos é que não, o resto dos trabalhos era tudo feito no moodle. Agora os testes de avaliação eram feitos na sala de aula, eram corrigidos e eram entregues em papel. Eu própria, aquilo tinha perspetivas e eu podia ir buscar coisas à internet, etc. que de outra forma não conseguia, percebe? A não ser que se imprimisse e não sei quê. Ali não, eu punha essas coisas, quem queria consultava e eu via muito bem quem consultava, quem ia lá ler, quem não ia ler, não é? Era uma ajuda, um instrumento auxiliar, assim como nas direções de turma. Eles hoje queixam-se porque muitos diretores têm outros trabalhos burocráticos a substituir esses que nós tínhamos dantes, que era marcar as faltas, escrever para casa. Agora não, mandam-se e-mails e não sei quê. Eu estou-lhe a dizer que com a [ministra] Maria de Lurdes [Rodrigues] não sei quantas, uma das coisas que vinha lá nas grelhas - aquelas grelhas deviam ser estudadas na Faculdade de Psicologia, porque revelam a loucura de uma pessoa - um dos itens de avaliação era as vezes que o director de turma telefonava aos pais: “Quantas vezes contactou os pais por telefone?”. Uma coisa era contactar os pais por telefone, outra coisa era contactar os pais por e-mail ou por escrito por postal. Está a ver? Já chegámos onde? Mas o que é que isso tem a ver com ser professor hoje em dia? Sim senhor, acho muito bem que também fizesse parte da nossa avaliação a maneira como interagimos com os pais, principalmente os diretores e os outros professores também. Por exemplo, de vez em quando também recebia visitas, sem ser directores de turma, dos pais, eles vinham lá e pediam para falar connosco e acho que sim, que era importante. É uma avaliação que também se deve fazer, agora não deve vir numa grelha o número de vezes que eu telefono a um pai ou encarregado de educação, isso é uma insanidade mental, não é? E o foco da avaliação, que era o que não acontecia, o foco da avaliação, isto é, naquilo que a ministra propunha, a nossa prática letiva não era avaliada. Era tudo avaliado: as vezes que íamos à rua com os meninos, as vezes que não sei o quê, as vezes que a gente dançava com os meninos ou fazia um arraial, ou fazia não sei o quê. Isso era tudo avaliado! Agora, o que nós fazíamos dentro da sala de aula, que era a parte principal e que devia ser avaliada também, passava ao lado. Ninguém sabia, ninguém lá entrava. Ninguém lá ia ver. Percebe o que eu quero dizer? Entretanto, acho que foi sempre uma profissão um bocadinho malvista, embora eu na altura até lesse, e não sei como é que isso está, era das profissões mais respeitadas na altura e onde os portugueses tinham mais confiança, nos professores precisamente, mais do que médicos ou mais do que em polícias. Nós chegámos a estar à frente. Agora, depois daquela ministra, é óbvio que as coisas mudam. Ela fez de tudo, de tudo para menosprezar a profissão. Isto, sinceramente, é o que eu acho. E depois houve muitos actuais directores, na altura, presidentes de executivos que foram atrás desta conversa que queriam era fazer flores junto da ministra e que não defenderam a classe como uma classe que devia ser defendida. Ninguém nunca disse que não queria ser avaliado. Nós queríamos era participar nos critérios de avaliação que iam ser aprovados e não fomos chamados a ouvir, nem sindicatos, nem representantes de professores, nem nada. Por exemplo, a Associação de Professores de Filosofia, de vez em quando, lá nos ouviam em qualquer coisa que a gente mandava para lá, mas não éramos chamados a ouvir nem a participar. E cada grupo, cada área disciplinar tem os seus problemas específicos. As aulas de Filosofia ou de Psicologia ou de Sociologia têm que ser necessariamente diferentes das aulas de Português ou das aulas de Matemática ou das aulas de Físico-Química e, portanto, têm que ser avaliados por professores dessas áreas, dessas áreas. Não me importava nada de ter aulas assistidas. Nem eu nem muitos, mas isso não queriam eles porque tinham de pagar a alguém para ir fazer as aulas. Ficava caro. Era preciso avaliar os professores, mas gastar dinheiro com a avaliação não podia ser. Percebe o que quero dizer? Mas pronto, não me vou irritar por causa disso. Mas já lhe respondi que sim, os primeiros anos foram muito bons, muito bons no sentido, foram péssimos, que eu andei de um lado para o outro, foram péssimos! Mas tenho boas recordações. Não há nenhuma escola que eu tenha más, tenho boas recordações do corpo docente em geral, da forma, por exemplo, como a gente ia para o interior e nos apoiavam, quer quando era preciso encontrar alojamento. Porque havia logo quem cobrasse coisas exorbitantes. Sabiam que precisávamos do quarto e pediam coisas mirabolantes. Então os professores de lá, muitas vezes, olhe, um dos anos que eu lá estive em Mangualde, fiquei em casa da filha de uma colega minha que estava a estudar em Lisboa. Tinha um apartamento em Mangualde. Aí foi um alívio, porque eu e outra alugámos as duas o apartamento e fomos para esse andar que era um T3. Fomos para lá e deixei de pagar aquela exorbitância que pagava por um quarto gelado, que nem imagina como era um quarto gelado que eu lembro-me de chorar à noite, chorar era de frio, de depressão eu sei lá o quê. No quarto puseram-me um aquecedor daqueles que têm uma resistência elétrica e eu deixava - até em riscos de incêndio - mas eu tinha que deixar ligado toda a noite. Não sei como aguentei, eu não sei como aguentei. E depois lá fomos as duas para um andar normal, com água e luz. A água, já lhe digo que no inverno era gelada! Gelada, tinha que se tirar de noite porque senão de manhã não tinhamos nem para lavar a cara, quanto mais para tomar banho. E depois no verão também não havia. É curioso, eles no verão tinham falta de água por causa das secas. No verão havia água só das 7h00 às 11h, depois chapéu, o que significa que toda a gente gastava muito mais água porque enchiam-se banheiras. Mas, à parte das condições físicas, foi bom.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Catarina-2 |
pof | entrevista_Catarina |
keys | violência // agressão // autoridade |
nvivo | incidentes críticos |
Temos que ser francos, só estudava em Portugal quem tinha dinheiro e quem tinha um estatuto que permitia pôr os filhos a estudar e não a render, a trabalhar, que era o que se fazia em todo o lado. E, portanto, a falta de civismo, a falta de educação - não no sentido de instrução, é falta de educação mesmo - a falta de valores, a maneira como os pais entram pela escola. Eu tive um pai no 12.º ano, repare bem, eu estava na aula com os miúdos e um dos meus rapazes, que me parecia que tinha alguns problemas, disse-me: “Professora, eu posso ir à casa de banho?” e eu disse-lhe: “Vai”. Eu deixava ir normalmente quando pediam. O rapaz tinha saído, de repente abre-se a porta e entra um homem completamente desatinado pela sala de aula dentro: “O não sei quantos?” - que era o miúdo que tinha saído - “O não sei quantos?”. Eu digo-lhe uma coisa:eu tive medo. Eu pensei que ele nos ia bater a todos. Mas tentei - olhe é o instinto de sobrevivência - tentei acalmar o homem e disse-lhe: “O senhor não pode estar aqui. Mas o que é que quer?”, eu até disse: “Ele não veio à aula”, que era para ele não ficar ali, se eu dissesse que ele tinha ido à casa de banho, ele ficava ali. Entretanto, toquei na campainha para ver se vinha um funcionário e ficou tudo em pânico dentro da sala, tudo em pânico, incluindo eu. Mas eu procurei acalmá-lo, disse que ele não tinha vindo à aula, os colegas também disseram: “Não veio, não veio!”. Ele ia desfazer o filho! Não sei qual era o motivo. Ele ia desfazer o filho. E nisto veio o funcionário. Eu não sei como ele entrou na escola, como ele entrou pelo corredor dentro, como ele deu com a sala. Ele não entrou ao acaso, ele deu com a sala. O rapaz - porque nem sequer havia telemóveis - e ele realmente pediu para sair pouco tempo antes do pai fazer aquela entrada, mas a sensação de que nós estamos sujeitos, tive aquela sensação, sabe, de que a gente está aqui sujeito a um arraial de porrada. Nesse mesmo ano, ou no ano a seguir, uma colega minha de Português e de Francês, que ainda está no ativo, estava na aula e entrou uma encarregada de educação, bateu-lhe forte e feio. Dentro da sala de aula! Ela depois levou-a para tribunal. Eu nem sei como é que aquilo ficou, mas bateu-lhe a soco e foram os alunos que pegaram na mulher. Quer dizer, isto era impensável, impensável. Nos primeiros anos em que dei aulas, era absolutamente impensável. E eu fui diretora de turma muitos anos, portanto, convivi com várias gerações de pais. Não foi só de alunos, mas de pais. E posso-lhe contar um episódio ainda dos anos 80, em que eu era diretora de uma turma de Desporto, e como era uma turma quase só masculina, tinha para aí duas ou três raparigas, e eu com eles, tinha um à vontade, cascava-lhes, pronto! [risos] De vez em quando, eram uns tabefes [risos]. Lembro-me de estar numa sala, e eu ia a passar - porque eu dava normalmente aulas no meio deles, eu dava aulas em pé - e vinha a passar por eles, era primavera, ou início da primavera, e eles parece que ficam meio desatinados - e estávamos a dar Sócrates, e oiço assim de trás: “Oh, professora, hoje entre a Primavera!”, imagine eu a falar de Sócrates assim pela coxia fora e, de repente, ele diz aquilo. Ai, passou-me uma coisa pela cabeça - aquilo era uma sala de desenho e tinha os estiradores - e eu virei-me para trás e PRAS [onomatopéia], e ele bateu com a cabeça no estirador. E eu: “Ai meu Deus! Que lhe abri a cabeça” e ele olhou para mim, virou-se para mim e disse “Caramba, a professora tem tem uma força nessa mão”. E eu disse “É do volei. Meninos isto é do volei. Desculpa, eu não queria que fosse com essa força. É do volei”. Se fosse hoje, podia ser suspensa, quase de certeza. E nada, aquilo passou-se e no ano a seguir, numa das reuniões, o pai veio falar sobre ele e eu perguntei: “Olhe, o seu filho nunca lhe disse que o ano passado levou um cachaço meu que foi com a cabeça ao estirador? Deve ter feito um galo na cabeça”. E ele disse: “Não! Ele não me conta isso, que ele sabia que se me contasse levava outro meu” [risos]. Isto que eram os pais tradicionais, porque no fundo isso é educar. Agora é precisamente o contrário. Não levou tabefe nenhum, a professora só não olhou para ele durante a aula e já está o pai lá a dizer: “A professora, tomou de ponta o meu filho”. Eu recebia queixas nos últimos tempos ridículas, absolutamente ridículas. É porque não olhou para mim, é porque não se dirigiu a mim. E eu uma vez até me irritei na sala do diretor, disse: “Olhe, eles precisam fundamentalmente de educação, educação e respeito por normas. Eles estão numa escola que tem um regulamento interno e eles têm que respeitar, senão o senhor põe-no num colégio. E mesmo aí vai ter que respeitar o que o colégio entende. Isto é o sistema de ensino público, aqui tem o regulamento interno - e nós tínhamos no regulamento interno - e o senhor, ao pô-lo aqui, sabe que tem que aceitar isso. O senhor e o seu filho, pronto!”. Mas era uma falta de noção de que todos os direitos implicam deveres. Todos! Todos os direitos implicam deveres. Mas eles só falam de direitos. É como se os filhinhos só tivessem direitos. E pode crer que não era de classes mais baixas. Muitas vezes, eram filhos professores também, e os pais iam lá fazer estas cenas, eles próprios professores. Mas eu reduzo muito isto a uma ignorância, mesmo a uma espécie de analfabetismo funcional. Porque uma coisa é pôr toda a população de um país a estudar, outra coisa é realmente ter a população de um país mais instruída. E eu não sei se temos. Sinceramente, não sei se temos. Hoje, nas comunicações, que são todas via internet, a gente vê discursos absolutamente pavorosos, não só pelo português em que são escritos - que de português já pouco tem - como pelo que lá é defendido, pelas opiniões que as pessoas dão. Opiniões, absolutamente, como é que eu hei de dizer? Que irrompem tipo vulcão. E as pessoas passam aquilo para a internet e os outros leem. Às vezes, dou-me trabalho de ler isso, porque eu fico triste. Sinceramente, fico triste. Acho que depois do 25 de Abril, o que a gente fez e que comemorou, o estado, digamos civilizacional em que estamos hoje não é melhor. As pessoas têm acesso à educação, há mais licenciados e mais não sei quê, mas há tanta ignorância. É tudo fruto da ignorância. Porque aquilo que nós chamamos educação, as normas de conduta social são aprendidas, têm que ser ensinadas. Se não forem ensinadas, a criança não as cumpre. Eu, se deixar o menino fazer tudo, o menino berra e fazem aquelas birras que a gente vê fazer. Os meninos nascem, crescem até à adolescência, até à idade adulta, não aceitando um não, não aceitando o sofrimento. Educar é sofrer de uma certa maneira. Nós temos que sofrer. Têm que nos dizer que não, têm que nos castigar quando é preciso. Educar é isto, é dizer não, não, não faz, não podes fazer. E se fizeres és castigado, mesmo que repitas, és castigado outra vez, porque senão a criança nasce numa espécie de mundo selvagem, nasce como um selvagem, cresce como um selvagem e vai sofrer imenso, porque a realidade não é assim. Ela vai levar com nãos, ela vai levar golpes e depois deprimem, suicidam-se. Isto é muito fruto de uma educação permissiva, em que os pais não querem ter chatices, os pais têm medo dos filhos. Hoje, eu vejo muitos pais com medo dos filhos, mas medo mesmo. E não pode ser assim, não pode ser assim! O pai é a autoridade, a mãe é a autoridade e ser autoritário, num certo sentido, é gostar deles. Não é não gostar deles, é gostar deles. É estar a prepará-los para uma vida que não é rosas, nem é o que eu quero fazer. Eles dizem, mesmo nas próprias aulas, às vezes chegam a dizer: “Ah, eu faço o que eu quero com o meu pai, eu faço o que eu quero da minha mãe”. Isto era impensável há umas décadas atrás. Ninguém fazia o que queria do pai e da mãe. Nem pensar, não é? Mas estas novas teorias e a Psicologia tem muita culpa no sentido em que se desculpabilizam uma série de comportamentos que são vistos… olhe, há um livro chamado ‘O Pequeno Tirano’ que é feito por um espanhol, em que ele conta casos, aliás, ele… julgo que ele veio cá a Portugal, depois fazer estudos com casos de crianças de cá. Aquilo está tudo invertido. E isto é visível. Eu notei isso. Por acaso notei isso. Acho que a permissividade vem aumentando e a gente pergunta: “Os miúdos são mais felizes?”. Não são! E eu vejo por aquilo que eles falam, inclusive até das próprias aulas, eles aceitam a autoridade desde que seja uma autoridade consentida. E eles aceitam. Eles preferem uma autoridade do que o caos, do que o laissez faire, laisser passer, do que um salve-se quem puder. Eles preferem isso. E quando a gente os interroga, e eu fiz inquérito sobre isso nas aulas, e eles queixam-se, depois, que: “Não estamos a aprender nada.
3º Ciclo e Secundário
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pof | entrevista_Célia |
keys | exames nacionais // GAVE // formação dos professores classificadores |
Vou-lhe contar mais uma história. Nós, do GAVE - eu adorei [lá] trabalhar. Eu adorei trabalhar no GAVE. Primeiro porque trabalhava com a professora H., que é uma pessoa por quem eu tenho uma enorme admiração. Vou-lhe dizer. Ela é um bocadinho mais velha que eu. Ela tinha sido minha colega na Escola G., como aluna. Conhecemo-nos na Escola G. Depois, ela foi para Física, estava a acabar o curso [de ensino superior] quando eu entrei. Politicamente, tínhamos uma grande empatia. Depois, ela foi para os Estados Unidos [da América] e, quando voltou, convidou-me para isto. Deixe-me dizer-lhe, já agora, porque quero prestar-lhe esta minha homenagem. Ela é das pessoas que melhor sabe dirigir democraticamente. Bom, mas eu ia no GAVE. Houve uma situação muito engraçada. Eu escolhi uns autores que sabia que estavam comigo nesta transformação. Depois, uns consultores que também estavam comigo. Mas os auditores, auditam, portanto, não sabiam, só tinham conhecimento no fim. As provas eram feitas da seguinte forma. Faziam-se cinco provas por ano. Uma para ser enviada para as escolas, como modelo - era chamada prova modelo - que eu digo-lhe que não estou muito de acordo, mas eram as regras, não era eu que as fazia. No primeiro ano em que eu estive no GAVE, saiu a prova modelo para os auditores, sem eles saberem desta grande transformação que estava a ser feita na estrutura das provas. Isto foi em dezembro. O que é que acontece? Se os auditores reprovassem aquilo eu teria de fazer outras cinco provas, teria que ser assim. Eu não, eu e toda a equipa. Então, passei o mês de dezembro em ânsias, como calcula. Em meados de dezembro, eu cheguei ao GAVE - eles mandavam um relatório - e dizem-me: “O relatório foi excelente.”. Eu digo-lhe uma coisa, foi uma alegria. Eu acho que quem se empenha naquilo que faz… São pequenas vitórias, do próprio ensino. Eu acho que aquilo foi bom para todos. Estive ali 11 anos. Depois fiz uma coisa muito interessante também, a formação dos classificadores. Nós fizemos ações de formação.Eu agora não sei como, estou a dizer como foi. Fizemos ações [de formação] na Matemática, na Biologia e na Química. Essas ações eram feitas em Coimbra, no Porto e em Lisboa. Para quem? Para os professores que iam classificar as provas. Nós esmiuçávamos, ao pormenor, a filosofia que estava por trás dos critérios. Foi uma aprendizagem fantástica. Eu conheci centenas de professores. Aprendi muito com eles. Foram 11 anos. Entretanto, não sei se isto interessa muito, mas, antes do GAVE, eu fundei uma editora.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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pof | entrevista_Célia |
keys | Solidariedade social dos professores // professores aposentados |
Desde o cineclube, desde os 16 anos, 17 anos de idade e por uma filha que faz cinema. Tenho uma filha de 48 anos e uma de 36 [anos de idade]. A minha filha é montadora de filmes e, portanto, estou muito ligada também às artes. Onde eu estava? Na academia sénior! A minha vida é sempre assim, coisas ocasionais. Fiz uns cursos de escrita criativa, escrevi contos, escrevi sei lá. Fiz essas coisas que, se calhar, todos os aposentados fazem. Nesse curso de escrita criativa conheci o M. V., que também é professor. Ficámos amigos e escrevíamos coisas a quatro mãos, sempre coisas engraçadas. Um dia ele fala-me: “Olhe, preciso de ti para a direção de uma associação.”. Eu respondi que lá queria saber de associações. Eu disse-lhe que não e ele justificou que eu seria só suplente. Lá lhe perguntei sobre o que era a associação e ele diz que é a associação fundada pela AMM. Ora, AMM é uma senhora que já morreu. Ela era professora de Física e de Química no primeiro ano que eu dei aulas - lá voltamos nós lá atrás. Ela chamava-me: “A menina.”. Oh, L.! O primeiro teste que eu fiz - que não sabia fazer. Ela olhou e disse-me: “Com estas perguntas faz aí quatro ou cinco testes”. Eu vinha habituada da faculdade. A AMM foi uma figura também na minha vida. Também aqui, já agora, lhe presto a minha homenagem. Ela ensinou-me muito. Ela deu muitas aulas, há alguns anos atrás, mas, depois, como assinou a candidatura do Humberto Delgado, foi expulsa, foi para França. Foi expulsa, não podia dar mais aulas cá.Em 1975, quando eu fui dar aulas, ela retornou! Um excelente encontro. Íamos a congressos as duas. Ela é muito mais velha que eu.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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pof | entrevista_Célia |
keys | Associação de professores // professores aposentados |
nvivo | incidente crítico |
Entretanto o M., como eu estava a contar, diz-me que a associação é aquela que a AMM fundou. Então, eu disse: “Mas isso é outra coisa! Muito bem, põe-me lá como suplente.”. Tivemos uma primeira reunião com pessoas que eu não conhecia, que eu nunca tinha visto, eram todos professores. [Juntos,] formamos uma lista para a direção da Associação de Solidariedade Social dos Professores. Nessa primeira reunião, havia uma pessoa que era o presidente, vice-presidente e eu suplente, e também havia outros cargos. Eu lá estava a falar e o senhor, que foi presidente da direcção, diz: “Você pode ficar como secretária da direção.”. A direcção tinha um Presidente, dois Vice-Presidentes, um Secretário e dois vogais. Eu disse: “Bom, não era essa a intenção.”. Eu fiquei. Fiquei três anos na direcção da associação e modifiquei muita coisa. Modifiquei a revista, modifiquei toda a parte gráfica. Eu tinha também a experiência da Editora Raiz. Isto entre 2013 e 2015. Em 2015 eu tive um cancro da mama e fui operada. Fiz aquelas coisas todas que são para fazer. E pensei: “Vou-me embora da associação.”. Entretanto, em 2015 também acabava o [meu] mandato. Toda a direção me propôs que me candidatasse a presidente. Oh, L., eu estava muito frágil. Está a ver este meu cabelo? Eu não tinha cabelo, portanto, foi muito difícil a decisão. Eu tinha emagrecido 25 quilos. Pensei: “Não sei se sou capaz.”. Por outro lado, era um desafio.
Como já viu (risos). Lá me candidatei. Havia outra lista e eu e a minha equipa ganhamos. Fiz quatro anos como presidente da associação, desde 2016 a 2019. Em 2019, numa reunião plenária da associação, aparece um texto assinado por várias pessoas a dizer para eu continuar e eu continuei. Portanto, fui presidente da associação desde 2016 até 2023, que vai acabar agora. Não me pergunte mais. Portanto, foi uma atividade que me ocupa muito tempo, não é 24 horas por dia, mas é muito tempo. Nós temos quatro residências sénior e eu faço a gestão das quatro residências, que foi outra coisa que eu tive que aprender. A gestão dos recursos…. eu não sabia fazer e mal ou bem tenho aprendido. E assim chegamos aqui.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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pof | entrevista_César |
keys | avaliação // classificação |
nvivo | incidentes críticos |
Sim, às vezes em campos opostos. Por exemplo, em relação a essa primeira turma. Eram três disciplinas, no 12.º ano. Era Matemática, que eu dava, Físico-química, que dava a minha antiga professora, e Biologia, que era dada pelo tal A. L., um professor de 57 anos. Ele era um poço de sabedoria, mas que ensinar não era a praia dele. O senhor fazia testes extremamente complicados. Havia bons alunos, eu cheguei a dar 18 e 19 [valores]. Nesse ano, era vice-presidente do Conselho Directivo e, do primeiro andar, olho cá para baixo e via-se a entrada da reprografia. A senhora tinha ido não sei onde. Quando olho, vejo os alunos a pegarem na prova de Biologia e a fotocopiarem-na à pressa. Eu calado. Eu calei-me. Não digo nada. Eles acabavam por ter alguma razão. Embora o senhor tivesse uma cultura enorme, sabia latim e tudo isso, ele não conseguia ensinar. Os textos eram extremamente complicados, até os colegas dele de grupo diziam: “Exitem perguntas aqui que até nós temos dúvidas de como se responde”. Eu tive pena dos alunos e não disse nada. Passado uns dias, ele aparece no gabinete do Conselho Diretivo e disse: “Não acha estranho a turma quase toda ter tido excelentes notas? Eu sei que o teste não era fácil!”. Eu disse-lhe “Você tem bons alunos!”. Ele concordou. Ainda lhe disse: “Tem muitas questões de resposta múltipla, você é meio distraído se calhar nem deu por ela.”. E ele disse: “Pois, se calhar, foi mesmo isso!”. Não foi a única vez, mas eu fechava os olhos. Eles sabiam que eu sabia. Eu fechava os olhos porque era prejudicá-los se não fosse assim. Depois há uma parte um bocadinho trágica. Uma colega, também curiosamente de Biologia cujo marido não tinha conseguido colocação. Na altura, havia aquelas disciplinas que não tinha um grupo disciplinar que era socorrismo, noções básicas de saúde, que, às vezes, até eram enfermeiros que davam, outras vezes eram médicos. No início do ano, tínhamos feito uma seleção e tinha sido um médico da Lourinhã que tinha assumido. Aquela colega, cujo marido não estava colocado, incompatibilizou-se comigo porque achava que o marido é que devia dar, tinha lá um curso de socorrismo da Cruz Vermelha. Eu disse: “Já está escolhido, não vou agora tirar o outro colega”. Gerou-se um clima um pouco tenso, entre mim e ela. Quer dizer, nunca nos deixámos de falar, claro, mas eu notei que ela, em linguagem rápida, não ia muito à bola comigo. Eles tinham um filho ou filha de 6 meses. Alugaram uma casa, pois eram de Lisboa. Houve um dia, de manhã, onde fui ao café - eu ia sempre beber um café - e ouvi gritos: “Uma explosão de gás!”. Tinha sido na casa daquela professora, que já não recordo o nome dela. De facto, quando cheguei ela já estava no centro de saúde muito queimada. O marido não tanto, mas também estava. Acabei que fui eu que ajudei. Eles foram para Lisboa e eu fui lá levar os papeis, conseguir a transferência dele para Lisboa. Entretanto, ela faleceu, passados quatro dias faleceu. Ele não. Ficou um bocado queimado, mas sobreviveu. Ainda fui várias vezes a Lisboa levar-lhe a papelada que era preciso assinar. Foi um dos episódios mais trágicos. Em relação aos alunos, olhe, aquele que foi padre era o melhor aluno em Matemática, Biologia e Física.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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pof | entrevista_César |
keys | escolha profissional |
nvivo | incidentes críticos |
geo | Queluz |
Sim, seguiu. Ainda hoje é! O pai dele era daqueles lavradores ricos, ali na zona do Oeste. Chegou uma altura, já perto dos concursos nacionais, que disse ao grupo que ia para padre. Os colegas achavam que ele ia para uma das engenharias, uma coisa assim.A gente ficou a olhar, até porque ele era um rapaz bonito. Ele agarrava-se às colegas, dançava. Nós brincávamos com ele. Ele era brincalhão também. Ainda hoje acho que é um padre muito dinâmico e muito progressista, digamos assim. O pai veio falar comigo: “Veja lá se o convence! Aquilo é tudo maricas!” - assim mesmo nesta linguagem. Dava-lhe casa, carro e ele não queria nada. Ele queria ser Padre. Depois, ele veio falar comigo: “Importa-se de me levar a Lisboa? O meu pai não me leva.”. Lá fui levá-lo ao Seminário de Almada. O pai, a certa altura, começou a ceder um bocadinho. Como sabia que eu tinha casa em Queluz - deste solteiro comprei logo um apartamento - e que, às vezes, eu ia lá ao fim de semana, ele disse-me: “Se você for a Lisboa, diga-me que eu venho cá trazer-lhe umas sacas de batatas e você leva ao Seminário!”. Houve um ano, que era o Dia Diocesano da Família e eu perguntei se ele queria ir lá visitar o filho. Assim foi. No fim da viagem disse que tinha uma ideia diferente do que era o seminário, que gostou de os ver. A partir daí, sempre que eu ia a Lisboa, carregava o carro com coisas para levar ao filho dele. Depois, o aluno, convidou-me para ser o padrinho de crisma. Lá fui, com muito gosto.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Chico-1 |
pof | entrevista_Chico |
keys | obras // greves // condições de trabalho |
Por causa de meia dúzia de obras, não poder haver o currículo dos miúdos, estarem a ficar amputados, de não poder praticar atividade física. E quando sugeri, sugeri que a gente tentasse convencer a escola e fazer greve. Durante o dia fazer um conjunto de iniciativas. E isso no meu grupo de professores de Educação Física. E foi recusado, não foi apoiado, só que…E deixe-me lembrar de uma coisa - nessa altura a escola estava cheia, as escolas estavam cheias de gente nova, cheia de professores novos, das várias disciplinas, todos os anos, estágios. E os estágios mobilizavam muitas pessoas. E, estava eu a contar, passadas duas semanas, numa reunião geral de professores, eu fiz a mesma sugestão e, estranho, foi aprovada. Portanto, o que é que aconteceu? Eu tenho documentos disso, jornais e coisas dessas que revolucionaram a escola. Fez-se um dia de greve, [a escola] parou. Nós agarrámos-nos materiais de educação que estavam lá guardados e fomos para lá fazer ginástica. E eu estava a estudar no último ano do meu curso e, então, todos os meus colegas do curso que são para aí una 80 ou 70 foram ajudar-me. Foi muito, muito, muito engraçado. E, portanto, um dia, logo o efeito daquilo; ao fim de um mês as obras estavam prontas. Aquilo estava tudo arranjado. E o refeitório também. E teve ali episódios muito engraçados. A escola ficava ao lado do Conselho de Ministros. Houve uns miúdos que entraram por dentro do Conselho ministro a distribuir comunicados. Um episódio muito, muito, muito, muito engraçado. Quer dizer, nós pedimos para fazer uma manifestação à polícia e a polícia não deixou porque aquilo era perto dos exames. E então pedimos para fazer uma marcha atlética. E transformamos a marcha atlética numa manifestação, sempre com a polícia à frente, com motas com tudo. Cheio de cartazes. “Queremos o ginásio, queremos o refeitório”. Então foi assim: essa segunda escola foi uma escola muito, muito engraçada. Muito engraçada por causa disso.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Chico-2 |
pof | entrevista_Chico |
keys | delinquência // escola difícil |
geo | Lisboa |
Outra coisa que me lembro depois dessa… já estamos aqui em 86. Uma escola também do outro lado do rio. Uma escola onde estive dois anos. Na Amora. E que, se me lembrar da minha, da minha vida profissional toda, deve ter sido, os dois anos em que eu melhor efeito fiz nos meus alunos. Foi uma coisa, foi incrível, foi incrível. Ainda hoje, miúdos, miúdos não, porque agora são mais velhos que a Rita, têm 50, 50 anos. E ainda me ligam, telefonam, me convidam para jantar, para almoçar. […] Numa escola muito difícil. Para ver como é que os conheci. Eu vinha de transportes de Lisboa. Saí no autocarro num sítio qualquer, pois tinha assim uma rua e a entrada da escola era no final da rua. E estou a chegar ao final da rua e vejo um aglomerado de miúdos à volta de um carro, a abanar, chamar nomes a quem estava dentro do carro. Era um professor que trabalhava de tarde. Esses miúdos foram depois da minha direção de turma.
É engraçado. Esse professor, que estava dentro do carro, foi professor no conselho de turma e eu pus-lhe um processo disciplinar. E ele teve que sair da escola. E foi. Infelizmente foi para outro lado.
Não se portava nada, nada bem. Como era diretor de turma, tinha que ir assistir à aula. Ficava cá atrás, sentado. Não, aquilo era desumano, uma coisa terrível. E o professor lia o manual. […] Isto para dizer que – envolvi-me muito, muito, e fiz muito. Para aí dez miúdos são professores de educação física, são licenciados. E era uma turma difícil, socialmente complicada. E os outros miúdos andam por aí. Eu lembro-me encontraram-me … Eu tive uma questão de saúde. Eu estava no IPO e encontrei (Eu emociono-me peço desculpa).
Entrevistadora: Não, não, esteja à vontade.
Professor: Encontrei um aluno que foi um dos miúdos, foi meu aluno nessa altura. Quando me viu, desatou a chorar, porque dizia que não conseguia ver-me naquele sítio. Depois ele dizia “você não faz ideia, não faz ideia, como me salvou a vida”. Mas foi. Deve ter sido mesmo. Deve ter sido mesmo os anos em que mais…mais efeito fiz como professor e os anos em que eu fui melhor professor. Foi muito duro, muito complicado, porque eles eram muito difíceis, mas fez muito bom efeito.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Chico-3 |
pof | entrevista_Chico |
Como é que eu hei de explicar isto que consegui? É visível naquilo do telefone, não é? […] Consegui ter um grau de relação e de empatia fortíssimo, fortíssimo mesmo. Sei lá, a gente fez coisas incríveis. […] uma das coisas que eu fiz e eu era diretor de turma…tinha 11 horas de aulas com eles, portanto, estava muito, muito presente na vida escolar daqueles miúdos. E uma das coisas que fiz, foi no segundo ano, foi uma coisa muito engraçada. Aqueles miúdos não estudam, não estavam, quer dizer, alguns miúdos eram bons numa ou noutra disciplina. Então arranjei um processo. Os miúdos eram quase da minha idade […] eu tinha.. na altura devia ter uns 25 anos. Eles tinham 20, 18 e tinham chumbado não sei quantas vezes. Arranjei um processo muito engraçado. Que foi… Havia um miúdo, que era o melhor aluno de Pportuguês, por exemplo, que preparava, explicações, preparava trabalhos, preparavam exercícios com a professora de Português e, depois, autonomamente, juntava-se com os colegas e ajudava-os. Colegas mesmo… É por isso, era possível fazer isso naquela altura. As pessoas aderiram todas, e isso era possível. Muito engraçado […] é fruto da época, sei lá. O miúdo que ajudava, preparava as coisas com uma professora.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Chico-4 |
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Mandou-me uma coisa que passou na televisão sobre um projeto de escola sem bullying de que ele fazia parte integrante. Eu disse “Espetáculo! Grande trabalho, parabéns! Tenho muito orgulho”. E ele respondeu assim: “Obrigado, professor. Grande parte desse trabalho é da sua parte, asseguro-lhe, pode acreditar”. É isto que eu digo que fez muito efeito. E isto são 40 anos mais tarde ou 30 anos mais. Quer dizer - Como é que coisas de há 30 anos ainda lhe batem na cabeça? […] Quer dizer, coisas que eu fiz há 30 anos são novidades. Agora, como é que é possível?
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Chico-5 |
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Uma minha aluna gordinha, gordinha, com muita dificuldade, veio ter comigo com um sorriso de orelha a orelha. “Eu no sábado arrasei na Cubana”. A cubana é uma discoteca [em que] se dança no Parque das Nações e tem músicas latino-americanas. E a miúda aprendeu na escola e, portanto, estava feliz da vida.
[…] Estas experiências de aprendizagem às vezes são muito mais significativas…
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Clorinda-1 |
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Eu sou reservada, mas também gosto de falar. Achei muito interessante a forma como perguntou. Nós, na altura, recuando a 50, 60 anos, uma jovem sentia-se com muita maturidade. Eu, neste momento, tenho duas netas, uma com 16 e outra com dez [anos de idade] e costumo dizer, a nível do respeito. Eu com dez anos tinha valores na minha cabeça, os valores de vida. Aos 13 anos eu tinha uma personalidade já vincada. Uma mulher madura a entrar no ensino era mesmo isso, com a situação de carga com que eu estava pessoalmente. Vejamos o antigo regime, ao nível da profissão. Estou a lembrar-me agora de forma aleatória. Ao nível do tratamento dentro da escola, como estrutura… Como lhe disse, fui muito bem recebida, porque eu tinha sido boa aluna, havia conhecimento na secretaria - o diretor já não era o mesmo. Havia professores que fui lá encontrar, que tinham sido meus professores. A coisa foi muito fácil e foi muito prazerosa, porque nesse ano quem estava a gerir a entrada de professores eventuais era um senhor que estava ligado à secretaria e que me disse que com certeza que me concedia o acesso à escola, mas que não tinha Físico-Química para me dar. Não havia hipótese, talvez só no ano seguinte e eu teria que ir dar Electricidade, Orçamentos de Contas de Obras, Desenhos de Máquinas e tal. Eu disse: “Ok!”. Eu, no meu curso, tinha tido muita prática de desenho de máquinas, de eletricidade e tal. Assim foi. Fui bem acolhida, a nível daqueles com quem já tinha trabalhado, também [pelos] outros que eu não conhecia. Concretamente, desta área que eu fui lecionar, eram todos homens. Na altura, predominavam os homens nesse ensino. A escola tinha muitos cursos técnicos e, portanto, era tudo muito gerido por homens, eram raras as mulheres. Esses colegas foram de uma amabilidade extrema em tentar-me integrar, em dar materiais. Ajudaram-me com os painéis elétricos, a pôr aquilo tudo a funcionar, os dínamos, os motores. Tudo aquilo era um mundo que eu mesmo sendo do Instituto não tinha passado por ali. Com a receção, não tive problemas absolutamente nenhuns. A chefia da altura, o diretor assim chamado, era uma pessoa um pouco ríspida, embora fosse afável. Lembro-me de um caso, que aconteceu numa aula minha e que nos tempos de hoje acho que não aconteceria. Foi numa turma ao sábado - as aulas funcionavam naturalmente aos sábados, isto em 1971. Estava a leccionar num anfiteatro Físico-Química a tentar fazer uma aula de Ciências Físico-Naturais, a uma turma equivalente agora ao 8.º ano [de escolaridade]. Entretanto, as meninas tinham que levar todas bata para a escola e ao sábado, às vezes, não levavam. Houve uma aluna que apareceu sem bata e eu deixei entrar. Eu disse: “Não trouxeste a bata?”. Ela disse que não. Para mim não era importante a bata, ela estava muito bem a assistir à aula. Entretanto, cinco minutos antes de tocar, ela pediu-me se podia sair mais cedo. Perguntei se tinha mesmo de sair e ela disse que sim. Eu deixei sair a menina. Realmente, passado uns outros dois ou três minutos, aparece a menina e o diretor à porta. O diretor quase que me passou uma carta de despedimento. Tratou-me muito mal perante a turma toda. Eu nunca mais me esqueci. Não era um trato que se fizesse. Eu achei que isto traduzia um bocadinho a rispidez e o poder que alguns cargos podiam exercer dentro daquele regime.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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keys | castigo // biblioteca |
Então um dos meus serviços era estar na biblioteca e eu adorava estar na biblioteca. Estava lá no meu ambiente, no meio de livros é que eu estou bem. E uma altura chegou lá um aluno e eu “jovem vens levantar algum livro?”, e ele “não! Eu venho para aqui de castigo. A minha professora mandou-me para aqui”. E eu “Como??”. Fui à direção e disse que a biblioteca não é nenhum local de punição. Só devem mandar para a biblioteca quem gostar de ir ali, agora a mandar um aluno de castigo para a biblioteca é dizer-lhe “isto é um lugar que tens que detestar”. São aspetos pequeninos, claro, mas que devem ser tidos em consideração. E vocês, que são jovens e que são exatamente o presente e o futuro do ensino, tenham estas experiências em atenção. O local onde se quer o prazer do texto, onde se quer que os alunos sejam felizes, que partam dali para o imaginário, não pode ser como uma casa de reclusão. Eu não aceitei! Não permiti isso.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Hélder-2 |
pof | entrevista_Hélder |
keys | castigo // biblioteca |
Sim, sim, lembro-me do primeiro ano que eu entrei para a direção da escola. Foi logo a seguir ao estágio. Fiz estágio, tive um ano, fui logo coordenador da disciplina de francês. Chamava-se delegado de Disciplina naquele tempo. E no ano seguinte fui convidado para entrar numa lista para o Conselho Diretivo, as eleições eram feitas na escola. Muito mais democrático do que é agora com os diretores. Isto agora é um cargo mais político que outra coisa. Naquela altura não. Eram os colegas, eram os professores que escolhiam quem queriam lá, a maioria ia para o Conselho Diretivo. E lembro-me que no primeiro ano que estive lá, portanto, também nunca tive nenhuma formação para ser do Conselho Diretivo. A gente aprende a fazer, fazendo, e claro a única coisa que havia é que a presidente já tinha estado no diretivo anterior. E vai-se passando mais ou menos o testemunho. Nunca havia ali nada a partir do zero, coisa que agora acontece. Vem um diretor novo que nem sequer conhece a escola e avança com isso. Então lembro-me de uma questão interessantíssima, interessantíssima no aspecto negativo mas que deu para aprender que era a distribuição de horários. Os professores mais antigos achavam que, como na tropa, a velhice era um posto e, portanto, o horário deles tinha ser de acordo com o que eles queriam. Ou seja, “segunda feira não quero ter aulas”, porque vem depois de domingo, e “sexta feira também não”, porque era fim de semana. E já agora, “terça, quarta e quinta eu gosto de dormir de manhã e só quero ter as primeiras aulas às dez horas”. Das dez ao meio dia e, por exemplo, das 15h às 17h. Era assim. Eu cheguei, organizei o grupo de formação de horários e disse “toda a gente vai ser tratada por igual”. Pronto, fazem-se os horários e começaram-me a cair os velhotes em cima, “ah porque nunca foi assim”. E eu “então como é que vocês querem? Façam lá a vossa proposta” e eles faziam. “O meu horário é assim e assim”, e “então o que fazemos a estes colegas?”, “eles que se arranjem!”. Ai é assim? Numa escola é assim? Até professores de moral, “então o senhora está a dar moral e não se importa com o colega?”. E houve uma professora que não aceitou o horário. Fez o horário dela e em vez de cumprir aquele que eu lhe atribuí com o carimbo da escola, cumpriu o horário dela. Teve uma altura em que chegou a uma sala em que estava eu a dar aulas à minha turma. Ela bateu à porta, olhou para mim, disse “oh bicharoco saia daqui”. E eu “Saia daqui? Não, não saio. A senhora - para já estou a tratá-la por senhora - é que vai fazer o favor de sair.”. Delicadamente pu-la da parte de fora com os alunos dela. Fechei a porta por dentro e continuei com a aula. Pronto, acabei a aula e participei imediatamente à inspeção escolar e ela também. A inspeção veio. Ao cabo de 8 dias estava lá a inspeção. Deu-lhe um chá de tal maneira, uma repreensão de tal maneira, uma reprimenda de tal maneira que a senhora ficou de boca aberta. Disseram “ele tem razão. É assim e a senhora tem de cumprir, senão abandona e tem o processo disciplinar”. Então a senhora acatou, os outros todos acabaram por acatar também e as coisas foram por aí adiante. Mas era extremamente difícil, porque eram um jovem que estava ali. A presidente do Conselho diretivo tinha ficado doente. Havia um terceiro elemento que ainda não tinha sido eleito. Eu estava sozinho!
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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pof | entrevista_Hélder |
tempoh | 1975 |
keys | roubo // responsabilidade |
Mas aconteceu uma mais estranha ainda, em 1975 houve um roubo na escola. Os professores recebiam na escola, não iam ao banco, era pago em dinheiro na escola. Havia um cofre - ainda existe o cofre na escola - e no dia em que chegaram os vencimentos, o cofre foi aberto. Não foi arrombado, foi aberto. Alguém levou o dinheiro, as pessoas ficaram sem receber, ficaram sem pagar à segurança Social, sem pagar os impostos todos. Ninguém pagou nada. O que é que faz a Direcção-Geral de Impostos? Imputou à direção que estava ao serviço naquele tempo, que era eu e os meus colegas, a responsabilidade de pagar a dívida do roubo de 1975. Foi uma situação complicadíssima! Era assim “estás na direção, assumiste a direção, também assumes os problemas que houve”. Deve-se tanto à Segurança Social. E para a gente provar que tinha sido um roubo?
01
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Hélder-4 |
pof | entrevista_Hélder |
A Judiciária já tinha feito investigações também. A situação foi resolvida com o arquivamento do processo.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Hélder-5 |
pof | entrevista_Hélder |
Eu nunca soube, mas acho que alguém soube. Mas esconderam sempre. Eu nunca soube. Mas havia situações, por exemplo, em que exigiam que nós ou pagássemos ou fossemos bater à porta das pessoas que estavam lá naquele tempo, para elas nos ajudarem a pagar. Coisas duras, duras. Foi um momento duro da direção. Só que os inspetores que estavam connosco, estiveram sempre do nosso lado também e tinham vivido essa situação. Estavam sempre do nosso lado.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Ivone-1 |
pof | entrevista_Ivone |
Depois em 2004, talvez em 2005, eu era delegada de Francês. Como é que se chamava? O elemento que estava no Instituto Francês, nessa altura, não me lembro agora do nome da função que ele desempenhava e que esteve cá há uns anos. Desafiou-me e eu desafiei o Liceu, uma vez que nós tínhamos muitos alunos que vinham da escola francesa, para iniciarmos um novo projeto de ensino bilingue, que é qualquer coisa que existe na Europa já há vários anos e que, em Portugal, era de todo desconhecido. Acabou por me tocar a mim a parte, inicialmente mais ingrata e mais difícil, que foi começar a elaborar um projeto escrito de ensino bilíngue em português, em Portugal - que de todo, eu não sabia como fazer. Foi preciso pesquisar, procurar através do apoio dele. Ele ia-me dando alguma orientação. Fez-se o projeto, mas a nível de Ministério não havia qualquer recetividade nem resposta, que é muito habitual, que é muito habitual. Acabámos por iniciar essa experiência no Liceu porque quem estava na direção era do nosso grupo e aberta a uma experiência desse tipo. Tivemos alunos e pais que também aderiram. Começou a funcionar. Tivemos outros colegas, porque isso implica ter colegas de outros grupos disciplinares que saibam francês e que possam lecionar em francês, pelo menos parcialmente. Foi todo um trabalho que teve que associar professores de diferentes áreas, motivá-los, entusiasmá-los, etc.. Lançamo-nos nessa aventura e depois, paralelamente, o Instituto Francês, através da Embaixada de França, foi fazendo pressão sobre o Ministério. Até que o Ministério se interessou pelo projeto, quis saber como é que estávamos a funcionar, os elementos que tínhamos, o material que tínhamos produzido, etc. Daí, regulamentou as secções bilingues. A partir daí começaram as complicações. Começou na [Escola] H., depois outras [escolas] aderiram aqui na zona Norte e depois no resto do país eu não sei. Isto foi 2005-06, eu já me preparava para me aposentar. Tentei criar uma equipa que continuasse esse projeto. A colega que me substituiu, também, saiu um ano depois de mim. Ainda não tendo a idade, mas preferindo a penalização. A curto prazo essa experiência terminou na [Escola] H.. Sei que havia outra escola na zona de Gaia a funcionar. Parecia-me bem. Fizemos ainda exames aos alunos que frequentavam lá e noutras escolas, aqueles fizemos de acordo com o quadro de referência da linguística, aquela terminologia dos níveis, para depois ser corrigido na Faculdade de Letras. Como o projeto… é uma coisa que sempre me fez muita, muita, muita confusão e muita mágoa, ao mesmo tempo, quer a nível da minha área profissional, quer a nível de muitos outros aspetos. É que se começam as coisas e depois não se chegam a avaliar os resultados. Terminam de forma incompleta. Todo um investimento, quer material, quer pessoal, é deitado para o lixo. Quando nós trabalhámos esse projecto, São Tomé, já era a segunda vez que havia um protocolo desse género. O primeiro projeto não tinha chegado ao fim.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Joana-1 |
pof | entrevista_Joana |
tempoh | 25 de Abril de 1974 |
geo | Coimbra |
Foi uma coisa excecional. Acho que marca a vida de uma pessoa. Sabe que nesse dia, eu ia sair de casa da avó e ir para a faculdade - a faculdade era logo atrás. A casa da avó ficava na traseira da Faculdade de Letras e da Faculdade de Farmácia. Sabe que aquelas ruinhas pequeninas de Coimbra tinham pessoas com umas características muito sui generis. Então, a gente ouvia os rádios de toda a gente, naquelas ruas. A gente subia e descia as ruas, ouvia um rádio que estava a transmitir futebol, outro que estava nas novelas, outro estava com música, etc. Eu estranhei, nesse dia, ouvir o hino nacional. “O Hino Nacional hoje? Num dia de semana?”. Achei estranho, mas pronto. Quando cheguei [à faculdade] tive uma aula de Literatura Inglesa num grande auditório. Sei que quando me sentei na minha cadeira, diz-me uma colega: “Olha, parece que houve uma revolução em Lisboa!”. Bem, já ninguém trabalhou. Depois confirmou-se. Os estudantes de Coimbra eram de esquerda, eram todos à frente, tudo revolucionário. Lembro-me que, depois, deixou de haver aulas e fomos todos, professores e alunos para a rua. Entretanto, a faculdade tinha fechado a porta férrea e nós queríamos a porta férrea aberta como o símbolo da liberdade. Tínhamos connosco professores - é curioso que há pormenores interessantes. O professor R. - estava um dia de sol e quem não tinha chapéu arranjava qualquer coisa porque estávamos parados ali à torreira - tinha na cabeça - outros professores também, alunos não - lenço de homem que eles usavam de pano, com um nozinho em cada ponta postos na cabeça. Eu vi isto e achei aquilo uma delícia, porque tornavam-nos tão caricatos, muito mais próximos de nós, evidentemente. Nesse dia, juntámo-nos todos e, a certa altura, alguém abriu a porta férrea. Não imagina! Nós entrarmos ali a cantar, acho que foi a Grândola Vila Morena e a dar vivas à liberdade. Foi assim um dia fantástico. Foi esse e foi depois o 1.º de Maio. Foi o primeiro 1.º de Maio, depois do 25 de Abril. Quer dizer, aquilo foi assim uma coisa inexcedível. Sei que andámos na Baixa de braço dado, na manifestação, com pessoas que conhecíamos e que não conhecíamos. Foi assim, uma coisa que foi para a vida. Ficou para a vida.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Joana-2 |
pof | entrevista_Joana |
Foi preciso uma vez fazer uma substituição de um professor, “Eu vou, não há problema, eu vou.”. Eram miúdos de sétimo ou oitavo ano [de escolaridade], já não me lembro. Sabe o que é entrar numa sala e dizer: “Onde é que eu estou?”. Parecia um manicómio. Ainda hoje, me aflige, aperta-me o coração só de sentir. Eu já não sei o que é que senti quando lá entrei, mas pensei “Isto não está a acontecer. Isto é surreal.”. Imagine, todos aos berros. Um levantava-se, ia lá em baixo dar um safanão numa menina, a outra começava aos berros e vinha cá para cima. Isto quando a professora estava a entrar. Eu cheguei e não disse nada, evidentemente que, no meio daquela berraria, mais um berro era igual. Então, fui para a secretária muito calada e pus-me a olhar para eles todos. Estive uns cinco minutos ou mais, aqueles minutos pareceram uma eternidade, até que os consegui acalmar, mais ou menos. Olhe, era uma turma em que havia três alunas que estavam numa instituição, estão institucionalizadas, com problemas, enfim, psicológicos tremendos, de famílias desestruturadas, cada uma por si, resolviam tudo à pancada, aos berros, outros que gozavam com elas, era uma coisa impressionante. Acabei por conseguir que uma delas, aquela que me parecia mais violenta… era a A.. Mais tarde foi minha aluna. “Oh A., eu não conheço nada sobre ti.”. Começou assim a andar. “A professora não quer saber!.”Quero!” [retorqui]. Lá insisti, insisti, insisti, ela acabou por estar o resto da aula, terão passado 20 ou 30 minutos… imagine, a miúda das mais problemáticas daquela aula, ela levantou-se e acabou por contar uma história que, no fim, aquela malta estava toda a chorar. Eu só não chorei por vergonha. Realmente era verdade. Ela contou a história da vida dela e da família. Era uma história tremenda, tremenda.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Lara-1 |
pof | entrevista_Lara |
Em 82, eu cheguei lá e quando, portanto, eu fui recebida pelo presidente, chamava-se Conselho Diretivo, acho que era assim que se chamava. Ele apenas me disse: ‘Olha, vais ser delegada, está aqui o dossier’ E fui delegada de História. E eu era delegada dele. Quer dizer, não imagina, eu não tinha a noção de nada, nada, nada, nada. Eu não tinha a noção. Eu não sabia como é que se dava uma aula, como é que se preparava uma aula. Eu não sabia. É engraçada a ideia e ainda hoje me recordo que eu cheguei a uma segunda-feira, fui à escola e ele disse-me ‘Vais ter isto, isto e isto’. Então, meto os pés a caminho e vou à papelaria da vila comprar os livros. Os livros para mim, para eu poder ir… Repara bem a experiência. E ainda hoje me recordo do senhor da papelaria me dizer assim ‘Ah, mas a senhora é professora’, disse-lhe ‘Sou’, ‘Mas normalmente oferecem os livros aos professores’. Nunca me esqueço disto. Eu disse-lhe ‘Está bem, mas eu preciso dos livros já hoje’. Portanto, repare, eu não tinha a noção de nada: o que era ser delegada, o que era uma reunião, o que era um Conselho Pedagógico… nada de nada.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Lara-2 |
pof | entrevista_Lara |
Tive uma situação que aconteceu há pouco tempo, que, para mim, eu digo, isto é o melhor que eu tenho na minha profissão, numa turma do ensino profissional, turma que eu tenho este ano; o menino que integra a turma desde o início e que veio de Angola, que é angolano e que veio há poucos meses, está ali há um tempo, sei lá… um mês talvez na escola, e depois é transferido para Viseu, para outro curso e para outra escola, por questões familiares. Ele esteve ali enquanto esteve com a irmã, veio a mãe, a mãe foi viver para Viseu e o miúdo foi transferido. E, então, ele não tinha livro, eu emprestei-lhe o meu livro. Então, no dia, na véspera do dia em que foi embora, ele disse-me ‘Professora, hoje é minha última aula, eu vou-me embora’. E eu disse ‘Ah, que pena, vais embora’, e ele explicou-me. Eu disse-lhe ‘Olha, tens o meu contacto, se precisares de alguma coisa, portanto, estou disponível’. E o menino foi à vida. Logo no segundo dia, na outra escola, a meio da manhã, eu recebo uma mensagem a perguntar como é que eu estou, se está tudo bem comigo e que aquela escola é muito diferente. E eu comecei a pensar, assim, esta mensagem não é inocente. Repare, a meio da manhã, qual é o jovem que vai pensar numa professora? E aquilo começou [incompreensível] ‘eu não lhe vou responder já, mas eu acho que há aqui um desconforto’, pensei eu. Nessa mesma semana, eu tive conselho de turma, dessa turma. E então, o que é que eu fiquei a saber no conselho – e foi online o conselho. O menino tinha pedido novamente para regressar a Nelas. Tinha pedido a quem? À diretora de curso, ‘Ah, mas não há vaga e não sei quantos e trancos e barrancos’. E acabou, ‘Não, não há vaga. Aquilo bateu-me e eu, olhe eu estava na reunião online e resolvi ’vou responder ao menino’. Como estás e como não estás, e mais isto e mais aquilo. Devolve-me a mensagem imediatamente a dizer que estava muito triste, que tinha pedido para regressar a Nelas, que disseram que não havia vaga, mesmo, que ele estava muito triste, porque a escola de O era muito melhor. E eu disse ‘olha, tem calma, isto e aquilo’. O que é que eu fiz? Passado umas horas, liguei à minha diretora, expliquei-lhe e disse ‘Olha, eu não quero ultrapassar ninguém, mas é assim, é uma mensagem de um aluno’, independentemente de ele ser só meu aluno e eu não ter nada a ver com ele a nível, portanto, sei lá, de cargo, não é? Eu pus-lhe a situação e ela nem sabia e ela só me disse assim ‘Ah, mas disseram que não havia vaga’. Eu questionei e disse ‘Se vier um aluno para essa turma agora, tu dás-lhe ou não dás entrada na turma? Há ou não há lugar?’ E ela disse ‘Há’. ‘Então, se há lugar, há lugar para ele’. E eu disse ‘Olha, eu peço que tu vejas’. Resultado: o menino já regressou.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Lara-3 |
pof | entrevista_Lara |
Ele um dia disse uma coisa, acho, para aí no 11.º ano, lá nas conversas que às vezes tínhamos, ele disse: ‘Ah, professora, posso fazer uma coisa? Olha, a professora quando veio para a nossa sala de aulas, a professora sai da sala de professores?’ – porque, é assim, aquilo tem um espaço aberto, não é? Os corredores são ao redor desse espaço aberto, portanto, eles estão lá em cima e veem-nos sair. ‘A professora vem sempre contente para a sala de aulas. Olhe, aí dos outros professores, ai, eles devem andar em depressão’. Eu nunca me esqueço disto. Depois comecei a pensar e ele falava especificamente numa professora que tinha e eu comecei a olhar para a cara dela e disse ‘É verdade, como os miúdos captam isto’. Está a ver? Portanto, eles captavam que eu saía da sala de professores e ia contente para a sala de aulas
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Lara-4 |
pof | entrevista_Lara |
talvez a história mais gratificante que eu tenha seja de um aluno que apanhei no décimo ano, como professora e diretora de turma, que era meio brutamontes, mesmo na forma, assim, de falar, está a ver? Não sei muito bem. E fisicamente era também, assim, muito brutamontes. E pronto, então… logo nas primeiras aulas, a turma era enorme, uma sala cheia, pronto. E então, ele entrou numa forma, assim, pouco simpática. Sentou-se e fez lá um barulho esquisito, e eu chamei-o à atenção. E ele vira-se para mim e disse: ‘O que é que foi?’. Olha, meu Deus. Eu, com aquilo, o que é que foi? Eu passei-me, eu passei-me. Quer dizer, para mim foi um choque, pronto. E eu, entretanto, reagi e fui lá com toda a calma. E eu estava a falar e as lágrimas começaram a correr pelo rosto abaixo. Muitíssimo, mas mesmo muito chocada. E eu olho para a turma e a turma estava toda, toda assim, com a cabeça baixa, toda. E eu terminei de falar e um dos miúdos que era subdelegado, põe o dedo no ar e diz: ‘Oh, professora, eu em nome da turma quero pedir desculpa’. E a coisa passou. Mas eu chorei. Foi a primeira vez que me aconteceu. Só para lhe dizer que esse aluno, esse tal que me provocou dessa maneira, tinha uma história de vida horrível, mesmo horrível, desde problemas económicos, a violência doméstica e problemas de alcoolismo lá em casa, uma coisa impressionante. Ele descansava quando começavam as aulas, porque em todo feriado, fim de semana, férias, sempre a trabalhar, mas a trabalhar mesmo duro. Chegou ao 11.º ano e adorava História. Começou a gostar imenso de História; estudava História e fazia tudo. E quando chegou ao 11.º ano, final do 11.º ano, começou a ficar muito desatinado, muito desmotivado e mais isto, mais aquilo, trancos e barrancos… e por quê? Porque a paixão dele, qual era? Era seguir um curso de História, pronto. Desatinado, muito violento, mas era mesmo bruto ele. E eu ‘Mas o que é que se passa?’, e ele ‘Não vale a pena, não vale a pena, eu vou desistir, eu vou desistir, eu vou desistir’. E passaram as férias, regressa, estava no último ano, no 12.º ano, vinha pior. ‘Mas o que é que se passa?’, ‘Eu não vou, já não vou para universidade, não posso ir para universidade, vou para polícia’, ‘Vais para a polícia, sais daqui para a polícia? Mas vais para a polícia por quê?’; ‘Ah, professora, como é que acha que eu vou para a universidade?’. Parei e disse: ‘Olha, tem calma’. E depois comecei a pensar como é que eu podia ajudar aquele rapaz. E lembrei-me. Há uma fundação ali perto de Nelas, a Fundação Lapa do Lobo, não sei se conhece. Fui falar com a diretora e disse assim: ‘Olha, eu tenho este problema, aquele miúdo precisa de ajuda. Se eu fizer uma carta de recomendação, vocês ajudam?’, ‘Ah, claro. Então faça uma carta de recomendação’. Mas não lhe disse nada a ele. Com todos os dados deste, daquele e daquilo outro. E juntei, obviamente, a direção. Depois, eles deram seguimento e marcaram uma entrevista. Mas, eu, no dia da entrevista, eu não podia, tinha um exame marcado não sei onde, eu não podia mesmo. E eu fiquei assim: ‘Ai meu Deus, vocês têm que ir’. Pedi à direção para ir em meu nome à Lapa do Lobo. Aí eu já tinha falado com o rapaz e disse: ‘Tem calma, tem calma…’ e depois disse: ‘Vais fazer uma carta, olha, vais pôr na carta tudo aquilo que tu és, tudo o que tu queres, e todas as dificuldades que tu tens’; ‘Está bem, professora’. Depois, o que é que aconteceu? Recebeu uma bolsa da Fundação, foi bolseiro da Fundação Lapa do Lobo. Obviamente, uma das obrigações era pedir bolsa, também, no ensino superior. Foi para Coimbra, tirou o curso de Arqueologia, que é a paixão dele. Neste momento, é arqueólogo, está a trabalhar na Câmara de Nelas. Nunca deixou de ir à escola. Nunca deixou de ir à escola. Nunca deixou de ir à escola ver a professora. E eu olho para ele e digo: ‘Se este aluno, hoje era um bruto, hoje era um bruto’, eu digo-lhe ‘Olha, isto hoje, eras um brutamontes, já viste? Tu com esse perfil, com essa força que tu tens, com essa revolta toda que tu tinhas? Tu serias um horror de polícia. Devias ser um horror de polícia’. Olhe, mas não foi o único.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Luciana-1 |
pof | entrevista_Luciana |
muito esforçada a e muito voluntariosa, a querer que os meus alunos todos participassem nas aulas e a querer de certa maneira, ainda, talvez não lhes chamasse isso, mas com a ideia de que a Educação Física devia ser inclusiva e devia ser para todos (incompreensível) eu tinha um aluno amblíope. Portanto, um aluno com dificuldades de visão muito grandes que eu quis integrar na aula, e convidei um colega dele a fazer uns passes com uma bola de andebol. Lá está, não havia instalações, estavam em obras. Nós fomos para uma avenida que chamava Avenida da Praia e, no primeiro passe que o rapaz lhe fez, não sei se de propósito…
Depois tive outra que envolveu encarregados de educação. Já nesta escola (há uns 5, 10 anos nesta escola. (incompreensível) a ideia de que a classificação de Educação Física não deve existir, que os alunos são vítimas da Educação Física e que [o aluno] não entrou na faculdade por causa da Educação Física. (incompreensível) a professora diz que não eram exigentes como o pai dizia, eram tolerantes, avaliavam sempre por baixo, em relação às exigências de facto. Só para contextualizar… era uma escola, não era por acaso que lhe chamavam o Colégio C.. Era uma escola pública, mas começou por ser uma escola secundária.
Havia muita luta por conseguir um lugar nesta escola. Portanto, como havia muita procura, também deveria haver seleção e ficariam sempre os melhores. Portanto, não havia meninos do Bairro. Agora a escola é um agrupamento, há muitos meninos carenciados, refugiados. Não havia nada disso, portanto, era uma escola muito homogénea, de classe média. E, portanto, grandes expectativas em relação ao ensino superior e muito críticos em relação à questão da Educação Física.
E usavam muitas vezes um expediente que era arranjar atestados médicos para os alunos não fazerem Educação Física, e poderem ser avaliados só na área dos conhecimentos e portanto através de trabalhos teóricos. Eu tive uma aluna nessas circunstâncias, embora eu nunca confrontasse os pais com isso, eu sabia que ela fazia equitação e fazia vela e fazia outras atividades físicas, mas tinha um atestado para não fazer Educação Física. E eu tentei convencer a aluna com os pais para que fizesse alguma coisa para não estar desintegrada da aula. Ficava ali de braços cruzados. Mas nós temos uma turma de 30 ou 25 alunos a fazer atividade física e não podíamos estar a dar atenção sistematicamente ao aluno que está de fora. Mesmo que se coloquem tarefas para fazer, é difícil. Então tentei que a aluna fizesse fichas. Fiz-lhe um plano.
Plano individual, com objetivos, com adaptação do currículo, com aquelas coisas para diferenciar, aproveitando aquilo que ela pudesse fazer. E assim foi. Só que depois, a aluna não teve a nota que quis e eu passei de bestial a besta em dois tempos e fui agredida psicologicamente, durante muito tempo.
Não foram para os mecanismos legais, não é? Não, não colocaram recurso à classificação. Tinha sido tudo partilhado e tudo discutido. E ela assinava o plano. Não sei o que é que se passou. A diretora de turma tinha elogiado imenso a minha preocupação de ter feito aquilo para a miúda se integrar na aula. De repente mudou, mudou o chip e eu passei a ser o maior carrasco da vida da filha, e fez uma reunião com o diretor, comigo presente. Chamou-me o que havia para chamar e eu fiquei com aquilo na cabeça semanas a fio.
Não percebi o que é que tinha acontecido. Ainda hoje, não percebo e ainda me incomoda quando me lembro. Mas foi assim que, de facto, uma coisa que não percebi e que me marcou negativamente, porque foi mesmo violento aquilo que ouvi dizer, porque era tudo coisas que eu não percebia, que não eram verdade, que eu tinha feito tudo para prejudicar e que tinha arranjado esta maneira de dizer.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Luciana-2 |
pof | entrevista_Luciana |
Outra situação muito lamentável, foi uma situação de acidente que tive o ano passado com um aluno. No início da patinagem, com todas as condições de segurança, com dois professores dentro da sala, porque nós tínhamos montado um programa de coadjuvação para nos ajudarmos uns aos outros. Como vínhamos da Pandemia, estávamos a fazer isso com as pessoas dentro da sala, com um muro para os miúdos se agarrarem… o miúdo descoordenado e muito frágil, desequilibrou-se, apoiou-se nos braços, partiu os dois pulsos. Foi um problema para a família durante 4 ou 5 semanas para vestir e comer.
Depois fiz um plano para o integrar. Veio para as aulas, teve também um plano e, no final, recebi de facto uma carta muito, muito… no início do ano, da mãe, a elogiar como… depois daquele acidente tão traumático, a forma como eu tinha lidado com a situação. Isso também me soube bem.
Às vezes fazemos tudo bem, anos e anos. Neste caso, graças a Deus foi boa essa situação, senão acho que não dormia para o resto da vida. Mas sim estava tudo garantido. As condições todas. Foi mesmo… cada vez que eu via o S., ficava em pânico.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Maia-1 |
pof | entrevista_Maia |
tinha outra característica, eu desobedecia. Desobedecia mesmo. Aliás, há muitos anos, eu estou a fazer arrumações, agora, como deve imaginar, eu encontro coisas engraçadíssimas, uma até pus no Facebook. Era o Ministro Marçal Grilo, aos anos que isto já foi, anos 90, para aí, não? E o rapaz convidou-me para uma reunião em Lisboa onde só estavam elementos da Administração. Portanto, estava o Governo, estava o Ministro, estavam os Secretários de Estado, estavam as Direções Regionais, e depois estava eu. E o JB estavam 3 ou 4 pessoas a que eles chamavam especialistas. Do Ensino Secundário, só estava eu. Eu achei aquilo estranhíssimo, não percebi e perguntei, mesmo. Quando olho à minha volta e vejo ali o staff todo, eu pensei “O que é que eu estou aqui a fazer?”. Quer dizer, estou no sítio errado e perguntei: “O que é que eu estou aqui a fazer?” [risos] E o Marçal Grilo disse assim: “Constou aqui em Lisboa que a Senhora Doutora é muito boa a não cumprir as regras. E eu quero que me diga quais é que são as regras que não cumpre e porquê, para podermos começar a falar em autonomia”. Estava lá o JB, depois foi um flop! Gosto imenso do JB, o JB não conseguiu fazer aquilo que quis, portanto aquele Decreto da autonomia, que toda a gente diz que é o Decreto do B., “é, mas não é”, quer dizer. Não é aquilo que ele queria, não é mesmo aquilo que ele queria. Portanto, até esse processo eu acompanhei muito de perto, não é? A saída do 115 foi acompanhada ali de perto e foi muito engraçado. Eu, às tantas, ao almoço nessa jornada em Lisboa (eles chamaram-lhe encontro informal, já não me lembro), mas à hora de almoço o senhor Ministro chamou-me para a mesa dele: “Venha aqui comer comigo”, “Ah, não sei se me apetece”, “Venha, venha, quero conversar consigo”. Eu às tantas, na conversa, perguntei-lhe: “Ouça, explique-me uma coisa”, e tem a ver com os concursos, que agora está outra vez em discussão com o João Costa, que está a tentar, ainda vamos ver. E eu disse-lhe: “Ouça, isto não faz sentido nenhum. As escolas não terem nenhuma capacidade e nenhuma autonomia para escolherem os professores. Não faz sentido nenhum. Isto dos professores andarem com a casa às costas, os concursos serem nacionais, não faz sentido nenhum…causa sofrimento às pessoas, as pessoas não conseguem ter uma vida estável, os professores são caixeiros-viajantes, aqui neste país, não é? Porque é que não muda isso, porque eu sei que até está de acordo”, disse-lhe eu.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Maia-2 |
pof | entrevista_Maia |
Mas pronto, foi uma experiência, de facto, muito interessante, porque resultou. Durante o dia os miúdos não nos largavam. Durante o dia tinha muitos miúdos a escola. Estavam lá sempre e a gente aproveitava para fazer jogos. À noite iam as pessoas [adultas], mas foram vindo devagarinho. Muito devagarinho. Primeiro as mulheres e depois começaram a ir os homens. Lembro-me perfeitamente do primeiro, do Sr. Joaquim que não conseguia pegar no giz. Pegava assim, não é? E ter escrito… “tá já lá”. E eu disse “Ah!”. “Professora, consegui escrever uma frase!”. E eu não estava a perceber.
E1: “tá já lá”.
14_3ºSec_Maia: Eu disse “Sr. Joaquim, ‘Tá já lá’?”. “Claro, o meu filho ‘tá já lá’ com os bois”. E eu disse “Aí eu não acredito, ele conseguiu mesmo escrever o que queria dizer”.
E1: O que queria dizer, pois.
14_3ºSec_Maia: O senhor escreveu o que queria dizer. Ali houve comunicação e depois foi uma festa, pararam as aulas. Nesse dia fizemos uma festa para o Sr. Joaquim que tinha conseguido escrever a sua primeira frase. A partir daí todos aprenderam. Em três meses.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Maia-3 |
pof | entrevista_Maia |
Foi o dia mais bonito da minha vida. Ainda no outro dia estive a ver fotografias e a dar a pessoas, a amigos que estão nessas fotografias. Foi o dia mais bonito da minha vida. Eu acordo de manhã, estava no Colégio Alemão (olhe, já não sei se como aluna se como professora..ou a substituir…já não me lembro, mas acho que ainda era aluna. Eu acabei o colégio em ’73, penso…se calhar já estava a dar aulas na infantil lá, a substituir a tal professora. Já não me lembro bem. Mas estava lá) Sei que chegámos lá e, aquilo começava muito cedo, às 8h da manhã, e quando saímos não notámos nada…cá fora, na rua, nada. Chegámos lá e o diretor está branco, era um alemão, estava branco. E disse “Está a haver uma revolução”. E eu disse… “Ah!” Entretanto eu já sabia do movimento dos capitães. Já sabia que se estava… Quer dizer, não sabia pormenores, ninguém sabia. Mas sabia que se estava a movimentar ali qualquer coisa, pronto. A minha dúvida quando o homem, branco, me diz que está a haver uma revolução em Portugal, é “Porra, de direita ou de esquerda?”, quer dizer, era a minha dúvida. Percebi rapidamente que eram os capitães de abril, pronto, aí fui para a rua, fui para a rua, fui para a rua. Estive na rua o tempo todo, estive dias seguidos na rua. Eu ainda tive que fazer os exames. Em maio tive exames. Fiz um chiqueiro naquele colégio, porque me obrigavam a fazer exames. Eu estava a viver o 25 de abril, caramba, não era uma coisa que se vivesse todos os dias, mas pronto.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Maia-4 |
pof | entrevista_Maia |
Houve um menino, que não era, de facto, muito bom aluno, mas que se esforçava imenso, e num teste eu fiz uma coisa estúpida, que era incapaz de fazer num exame, mas num teste, um miúdo… Consegui, na [escola] D., que houvesse percentagem nos testes, Não havia, era os Sufs, e os Bons, e os Muito Bons, e eu disse: “Que é isso? E o resto, guardas para ti? Na caderneta? Nem penses, e obrigatório!”. Obrigatório, sim, houve algumas coisas em que eu era um bocadinho ditadora. Essa era uma delas. Os meninos têm direito a saber a percentagem que tiveram, não tinham… No seu tempo isso já é óbvio, mas não era assim. Bem, mas esse miúdo tinha 49%. Eu não estava muito atenta, mas às tantas ele estava ao pé da janela e chora, chora, chora, chora. Eu vou ter com ele: “Que se passa, pá?”. “Oh Professora, 49%?”. Eu disse: “Tens razão, é uma nota foleira que se farta, 49 não se dá a ninguém. Mas não é importante, para mim 49, 50, 51, 52, é a mesma coisa, qual é a diferença de 1 ponto em 100? Pensa lá, qual é?”. “Ah, para a professora não é, mas para a minha mãe é”. Eu virei-me para a turma e perguntei: “Meus amores, posso virar isto 50?”. E eles: “Claro, professora”. Risca, 50, rubrica por cima. Pronto, este tipo de coisas a que os miúdos não estão habituados, e deviam estar faz com que a relação seja muito próxima.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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pof | entrevista_Maia |
Eu costumo dizer isso às pessoas, não é uma relação de poder. Eles têm que perceber. Por exemplo, na avaliação deles, aquilo que eu lhes pergunto não é para meter na gaveta. E quando há bocado eu dizia a brincar, um miúdo…lembro-me perfeitamente dessa cena, ponderei aquele miúdo assim durante não sei quanto tempo, e decidi dar-lhe o 4 e não o 5. Eu depois percebi que era por razoes mais… [risos] eu achava que ele devia ter feito mais, mas ele já tinha feito muito, mas eu achava que ele podia ter feito mais. E o Português… “Hey, professora, trabalhei tanto, pá… Porque é que não tive o 5?”. “Não tiveste? Tu ainda não tiveste coisa nenhuma, estamos a conversar sobre as notas, não é? Faz favor…”. Ah, eu não faço aquela coisa por escrito, eu quero ouvi-los. E além do mais sou professora de Português, portanto disse: “Oh meu amor, convence-me, pá. Aprende lá, põe em prática aquilo que aprendemos sobre o discurso argumentativo e convence-me, pronto…”. Pronto, convenceu, convenceu-me e teve 5. A outra miúda dei um 20, assim, um 20. Eu até pus 20+. E os putos todos perguntaram: “Oh professora, gostou tanto desse trabalho da L.?”, ainda me lembro do nome dela. Ainda tenho esse trabalho… Era de Gondomar, aos anos que isto foi, aos anos que isto foi. E eu disse: “Oh L., sabes porquê?”, lembro-me perfeitamente, era as endeixas à Bárbara escrava, aquela cativa, que me tem cativo, porque nela vivo, já não sei que viva de Camões, eu só disse: “Meus amores, comentem o que vos apetecer, não tem que ser um trabalho literário, digam o que vos aprouver sobre isto, o que vos vai na alma, não quero aqui grandes ensaios”. E aquela menina, sem nunca ter lido aquilo, nunca tinha lido, escreveu-me um texto, assim… Eu chorei, mas chorei mesmo na aula. Depois pedi-lhes desculpa, e eles disseram: “Não tem que pedir desculpa”, porque estavam mais 4 ou 5 a chorar ao fundo, portanto, uma coisa fantástica, eu disse-lhe: “Eu não era capaz de fazer isto com o tempo que tu tiveste, com tempo limitado, e sem conhecer antes”. Eu conheci antes, não é? Não era capaz. E os miúdos ouvirem isto também é importante. “Fizeste uma coisa que eu não sou capaz de fazer, e eu sou tua professora. E é uma coisa da minha área, ainda por cima”.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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Sim, olhe, a primeira… eu diria que o antes do 25 de abril… se quiser podemos considerar o antes do 25 de abril, a forma como fomos educados e era a educação física. Depois surge educação física e o desporto isso faz, de facto, dois momentos diferentes. Antes e depois do 25 de Abril. O conceito daquilo que era atividade física ou do que era educação física. Tinha muito a ver com aquilo que era a tradição europeia. Os sueco com a tradição europeia de educação física na escola. E depois do 25 de Abril com a co-educação e com a unificação as coisas mudaram e digamos que aí podemos considerar que foi a educação física e o desporto. Começou a dar-se mais importância a introduzir o desporto a fazer parte das aulas de educação física do que até aí e isso fez toda a diferença, de facto. Portanto há, de facto, esses dois momentos. E depois, finalmente, eu diria que o que também fez diferença no meu percurso teve a ver com a diretividade e a não-diretividade em que nós fomos educados para estar do princípio ao fim a dirigir uma aula, a dirigir tudo do princípio ao fim. Depois, com a não-diretividade, nós dávamos alguma autonomia, fazíamos grupos diferenciados, o professor já não tinha de ser o centro, já não tinha de dirigir a 100%. E para mim, diretividade e não diretividade também fez toda a diferença. Depois no desporto… nós tínhamos de formar os alunos a nível da prática desportiva, da cultura desportiva, saber o que é o voleibol, o basquetebol… basicamente as escolas diferenciavam-se em algumas áreas conforme a região. Umas iam para a canoagem, outras iam para o montanhismo, que isso é que eu acho muito enriquecedor que é o professor e cada escola…nós aqui em Matosinhos deveríamos ter muito mais áreas ligadas ao mar e não temos porque dá trabalho. E não tínhamos formação para isso. Eu achava muito…portanto…. nós temos vela, mas não há, não há…. E depois, havia ténis na minha escola porque eu dava. Porquê? Porque eu gostava de ténis e há que passar aquela ferramenta aos alunos que gostavam e eu passava o ténis. Mas era preciso que alguém gostasse. Isso depois é muito importante daí as valências dos professores. E, portanto, é aí que os professores fazem muita diferença e a sua formação também.
3º Ciclo e Secundário
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Só uma que me lembre! Que foi no secundário, eu entrei na aula, estava uma barulheira, todos na conversa e eu entrei e fui para a secretária, pousei a minha pasta e fiquei calada à espera que eles se calassem. Estarem a falar quando eu entro - não é como antigamente que entrava o professor e os alunos atrás, rapidamente passou essa fase. Então entrei, portanto normalmente os alunos estão e calam-se, a gente chega à secretária e eles calam-se. Aqueles não se calaram. Entrei e não disse nada, esperei e eles sempre a falar. A certa altura peguei na pasta e saí. E quando eu bato a porta - bato, quer dizer, fecho a porta - um silêncio de morte! Fui ao conselho diretivo e expliquei o que tinha acontecido - isto assim e assim, e que me tinha vindo embora e não dava a aula. E disseram “está bem, uma de nós vai lá”. E assim foi, uma delas foi lá à sala e depois veio-me dizer “sabes que era? É que ontem o Porto ganhou o campeonato” [risos]. Estavam tão entusiasmados que nem deram conta da professora estar ali à espera [risos] Essa foi assim. E não tenho assim mais nenhuma que me lembre… Ai tive uma vez, também assim nos grandes, um aluno que era gago e atrás dele estava um fulano assim a meter-se com ele, e ele “oh setôra, ele estava a fazer troça de mim”. E eu ralhei ao outro rapaz, já não sei o que lhe disse. E continuei a aula até ao fim. Tocou para fora, eu estava a escrever qualquer coisa no livro e ouço um burburinho. Olho para o lado, estava o outro - não o gago - o outro encostado ao quadro com sangue no nariz. “Então o que é que aconteceu?” diz o outro, muito aflito “a professora não percebeu, mas ele continuou a fazer troça de mim e eu sou um jogador de boxe”. Levei os dois ao Conselho Diretivo. Castigados, claro. Mas o rapaz que deu o soco chorava!
3º Ciclo e Secundário
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É engraçado que quando comecei a fazer este apanhado dos anos da minha vida na escola, como professora, eu decidi ligar toda a minha profissão aos ministros da Educação de cada fase. Eu acabei por me aperceber que havia alguns que marcaram muito a minha vida e eu fiquei muito curiosa por saber que nomes foram esses. Eu já os tinha gravado no meu coração, posso dizer assim. Depois quis associar a datas precisas e foi assim que eu assinalei alguns nomes.
Entrevistadora: E que ministros foram esses que a marcaram? Tanto pelos bons motivos, como pelos menos bons.
Otávia: Temos aqui alguns, temos. Então, o Sottomayor Cardia, em 1977-78 - ano em que eu fiz o meu estágio. Eu continuei aqui em Paredes, a lecionar, até que a antiga secção liceal do H.P. se transformou em Escola Secundária de M. Isto já abria o leque a mais níveis de ensino. Eu comecei a sentir alguma falência na minha formação e então, mesmo só com o bacharelato, decidi fazer o estágio - era possível. Em 1976-77 e em 1977-78, com o ministro Sottomayor Cardia, é nesta fase que eu vejo a importância dos ministros, da política, a importância da política na atuação dos professores. Portanto, foi com o Sottomayor Cardia que eu fiz o estágio, até ao final do ano lectivo, sendo depois seguido do ministro Carlos Alberto Lloyd Braga - este nome já não me diz nada. Eu, que era professora do oitavo B (grupo), fiz uma escolha. Passei a ser professora apenas de Português. Eu podia ser [professora de] Latim, Português e Grego. Fiz estágio em Português, numa escola técnica de Vila Real, no oitavo grupo A. É engraçado como, com o tempo e com os ministros, as designações dos grupos vão mudando. Isto até me fez fazer a pesquisa. Eu fiz a opção do Português em detrimento do Francês. Eu, na altura, já tinha uma filha, já era casada e vivia com meu marido também - ele era um garante da nossa subsistência. Eu queria um dia efetivar como professora - a luta - e pertencer aos quadros. Como havia mais falta de professores de Português, do que de Francês. Aliás, os [professores] de Francês, nessa altura ainda tinham bastante trabalho, mas já se falava que um dia a disciplina de Francês iria ser um bocadinho posta de lado, passando o seu lugar ao Inglês. O Inglês era a língua de eleição, que iria passar a ser a língua de eleição. Eu, em detrimento do Francês, escolhi o Português porque me assegurava mais facilmente a colocação como professora efetiva. Fiz o estágio. Este ministro, o Sottomayor Cardia, era uma figura cimeira do pensamento e ação política em Portugal. Há aqui outro pormenor. Nós já começávamos a sentir a vibração da democracia. Eu sou democrata e sempre lutei contra o regime fascista. Notava-se essa vibração, esse movimento, esse favorecimento da democracia. Foi com ele que se criou o ano propedêutico, agora, 12.º ano, o numerus clausus, etc. Portanto, foi um ministro que teve bastante influência. Foi com ele que eu obtive a minha certificação de habilitação para o exercício do Magistério, do [grupo] oitavo A. Portanto, que eu consegui, realmente, o certificado, a carta de professora.
3º Ciclo e Secundário
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Eu já na universidade e achei sempre as escolas muito feias. E então o modelo, não sei se é holandês, aquelas escolas amarelas com aquele cimento. Essas escolas, fisicamente são feias, prefiro as do Estado Novo. Estudei aqui no Carolina e fui para a faculdade de Ciências aqui no Porto, e depois, no terceiro ano tive que decidir e pronto, as minhas colegas convenceram-me - “tu não conheces ninguém”. Eu queria ir trabalhar para as minas. - “tu não conheces ninguém, não vais, os rapazes vão todos para as minas. Nós não temos assim tantas minas como isso.” Elas a falarem comigo - “tu és mulher. Mulher engravida. São nove meses que não podes ir às minas”. E eu comecei, aquela coisa toda… - “pois é, vocês têm razão”, e eu comecei a pensar, se assim é, se calhar o melhor é ir para a educação e depois estando na educação, vou tirar o tecnológico.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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…que fosse. Pronto, isto para ver… para ver que foi assim um ano. A diretora dava-me boleia, porque eu não tinha carro na altura. Eu saía de Braga até… eu estava a 12km de Braga, não era assim muito longe… aquilo era mesmo mau. Porque as miúdas viviam… eu não digo num gueto, mas quase. O senhor padre, dizia - elas é que me contavam - como não tinham eletricidade, não tinham televisão. Mas ouviam rádio. Então, o senhor padre dizia no púlpito para não comprarem rádio para não saberem os males que iam pelo mundo.
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Foi aí que nós começámos a tirar as fotografias, isso tudo. No dia 1 de junho - eu já lhe vou contar outra coisa - dia da criança, sabe qual foi o nosso passatempo, eu e desse tal colega, que era assim novo, como eu? Foi dar banho de mangueira às alunas, que nunca tomavam banho. Mangueira! Nós, sujeitávamo-nos, às vezes, a ouvir, mas não sei porquê, os pais não… alguns até foram nadar para uma poça, que havia logo a seguir… aquilo foi um dia… foi o dia mundial da criança. Eles adoraram, estava calor… nós, então, demos banho, vestidos, aquilo era mangueirada, esfregávamos a cara e as orelhas… eles divertiram-se imenso, não iam fazer queixa de nós. Mas o dia, o dia 25 de Abril, eu, apesar de ter estas convicções, de achar que toda a gente tinha direito ao ensino, e isso tudo, eu a nível político era muito naïve, como era a maioria das pessoas. Quem ia para a faculdade, depois, tinha grupos no Magistério Primário, éramos tudo, era a continuação do liceu, não havia… quer dizer, não havia nem aqueles grupos – que eu conhecesse. Havia pessoas contra o regime, não havia. Eu, no dia 25 de Abril, lembro-me de ir de autocarro. Nesse dia, fui de autocarro para a escola, de manhã liguei o rádio, era rádio despertador, ouvi uma música estranha, não ouvi notícias, achei aquilo estranho, mas não sabia o que se passava, juro…
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pof | entrevista_Tita |
Fui de camionete para a escola. Não sabia o que se passava. Dei as minhas aulinhas, às 15h30, ou 16h00, já não sei… nós tínhamos assim aulas de tarde. Vinha de camionete e é que ouvi as pessoas lá a falar: “Ah, houve tiros…”. Eles falavam em tiros. Depois, só me informei quando cheguei a casa. Mas, quer dizer, eu o dia… realmente, da Revolução, só foi à noite que me informei, não é?
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Isto porquê? Eu continuo a dizer. Na altura, a nível político, era iletrada, não sabia nada. Quer dizer, eu sabia que havia regimes, e isso tudo, mas não fazia parte, nem de grupos, nem de nada. Depois, á na escola, as pessoas também, ou talvez amedrontadas, nós aí é que começámos… eu a dar aulas, assim, em conjunto e isso comecei. Eu dizia que era do programa, e fazia. Mas o mexermos, assim, digamos, nas coisas, só foi depois do 25 de Abril. As pessoas, assustadas, ou isso, não pegaram connosco. Não pegaram connosco, não, não…
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Então, eu vou-lhe contar outra história, já que são histórias… eu quando tinha a quinta ou a sexta classe, na região onde eu dei aulas consumia-se muito álcool. Claro que era vinho verde, não é assim tão alcoólico, mas eu tinha miúdos… tinha lá um miúdo, filho de pais alcoólicos, que lhe morreu a mãe. Ele andava no quinto ano e tinha mais duas gémeas, tinham nascido 17 irmãos, estavam três vivos…
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pof | entrevista_Tita |
Ele vinha às aulas de manhã, e de tarde, entre as 13h00, para aí, e as 15h00 ele ia trabalhar de trolha, para conseguir dinheiro para sustentar as irmãs. Foi assim um tempo, também complicado, mas eu ia-lhe contar isso, já não sei… ah, entretanto, houve uma altura em que eu fiz uma viagem de estudo. Uma das meninas do quinto ano, por isso tinha dez aninhos, ela era tão pequenina que ia no meu colo. Na altura, não havia cintos de segurança, ia à frente no meu colo, enjoava… houve uma altura em que eu estava na sala, e ela saiu para o recreio, e entra-me na sala a chorar. Eu perguntei: “Então, o que é que tu tens, E.?” - que já havia estes nomes. “O que é que tu tens, E.?”. Ela não dizia nada. Uma prima também veio atrás dela a ver o que é que…depois, lá me disse: “Eu fui à casa de banho e tenho sangue.”. Ora, está a ver, estas coisinhas, uma menina de dez anos, também ninguém estava à espera.
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Pronto, logo…na minha sabedoria, porque lá nisso a minha mãe… formou-me quando eu tinha dez anos - que eu agradeço. No colégio, vi muita coisa, de meninas que não sabiam, e isso tudo, lá tentei explicar o que era à miúda, etc. No dia, a seguir a mãe veio-me agradecer. Depois teve o seguinte desabafo, que é outra coisa que eu gostava que ficasse a saber (risos). Diz-me ela assim: “Olhe, minha senhora, sabe, esta E. é tão precoce…”. Ela não disse precoce, disse: “…é tão adiantada em tudo, veja só. A irmã dela, a gémea, a R., ainda só está no segundoano. Sabe porquê? Porque olhe, a E. está sempre bem na comida. Basta eu ter umas sopas de vinho, que ela está logo despachada. A outra, não gosta de vinho, e é por isso que não aprende” (risos)
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pof | entrevista_Tita |
Eu fiquei assim a olhar para ela… fiquei assim a olhar para ela, porque uma pessoa fica assim… que consome vinho…
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pof | entrevista_Tita |
… é inteligente, e a outra… depois, sabe o que é? Eu novita, 18, 19 anos, nessa altura, não sei, a ouvir aquilo, ficava assim a olhar para a senhora: “Mas olhe que o vinho faz mal…” (risos). Eu ficava assim sem saber…
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Uma pessoa ouve assim cada coisa, mas depois na aldeia ao lado, em Espinho, também apanhei… havia uma família em que eram 16 irmãos. Eu cheguei a ter no primeiro ano quatro dos irmãos. Porquê? Ficavam os de 14, os de 12, os de… todos, eles não aprendiam,. Agora, eram uns rouxinóis, para cantar, para fazer festas no final do ano. Eu tinha ali uma matéria-prima tremenda. Chegava a ter tios e sobrinhos, na mesma sala. Porque depois eram uns mais velhos, tinham já os outros, era assim uma… olhe, não queira saber, era uma… isto para mostrar… eu não andei de burro, nem de cavalo, ou a pé, como muitos professores, mas viviam-se situações, assim tão perto de uma cidade grande, que eu ficava assim admirada, como é que isto é possível… mas, foram assim, foram uns anos…
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pof | entrevista_Tita |
Mas isto professores formados, que outra coisa que também com mágoa minha eu digo. Eu, quando fui para o Mestrado, tinha 26 anos. Eu achava, via aquelas pessoas com 60 anos, 50 e muitos anos, casadas, a deixar filhos e marido… eu achava que devia estar lá o suprassumo da educação, porque no fim de contas, deixar tudo para ir fazer… foi uma desilusão muito grande para mim. Havia lá muita gente, que eu adoro, e gente com princípios, mas havia de tudo. Isso, para mim, foi assim, porque eu estava à espera de aprender muito com os mais velhos. Fiquei um bocado desiludida com isso, porque, no fim de contas… apesar de sermos professores, as pessoas comportam-se como crianças. Os americanos são muito individualistas. Eles davam os testes, ali em Lisboa, de escolha múltipla, e saíam da sala. Porque nós éramos adultos. Ainda me lembro do primeiro teste, de estatística, como era das minhas áreas, eu fiz o teste e saí. Ficou lá toda a gente. Depois, houve a minha nota e a nota dos outros. Como a minha nota foi superior, no teste a seguir roubaram-me o teste, eu já nem o consegui acabar. Está a ver? Isto é uma outra faceta, de que eu tenho vergonha, até de dizer. Porque nós devíamos ser… mesmo quando eu dizia aos alunos - os meus filhos são na mesma, não copiam. Eu tenho muito… claro que - se a norma for - eu lembro-me uma vez da minha filha, fez um teste de Educação Física no recreio, estavam todos em fila, e todos copiaram menos ela. Depois, ela teve 14 e os outros tiveram 19. Eu disse assim: “Oh filha, quando tudo copia, a norma é copiar”.
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Eu só lhe vou confidenciar isto. Quando eu dava aulas aos cursos profissionais, geralmente são miúdos de origens com poucas condições. Naquela altura, em que houve muito desemprego, ali na zona onde eu trabalhava era muita gente empregada que deixou de ter esses rendimentos. Estavam habituados, a ter, sei lá, um ordenado médio, e a ir tomar o pequeno-almoço ao café, e a fazerem essas coisas. Ora, aconteceu essa desgraça, vinham miúdos para a escola com fome. Eu tive alunos que me desmaiaram com fome. Houve lá uma aluna que eu achei-lhe piada. Eu muitas vezes dizia assim: “Então, o que é que…?”. “Ah, não tomei pequeno-almoço”. Eu já sabia o que aquilo queria dizer. Eu dava-lhe o cartão e dizia: “Vai lá ao bar e…”. Houve uma vez que eu disse assim: “Vá, vai lá ao bar e come o que quiseres”. A funcionária já sabia. Dava-lhe o pão com qualquer coisa e o leite. Ela chegou lá: “Quero uma mista, com não sei quê”. A empregada achou aquilo demais. “A professora disse para eu comer aquilo que quisesse”. Coitaditos, eles se calhar não tinham. Mas vinham miúdos com fome. Nós tínhamos um programa… no primeiro ciclo é normal haver distribuição de frutas para os miúdos. Mas nós, no ensino secundário não. Um dos projetos dos meus alunos, da área de projeto, conseguiram fazer acordo com uma empresa, que nos dava fruta de…de refugo…
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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E pronto, entretanto fiquei grávida, estava grávida da minha segunda filha. E, passados 4 anos, estava grávida da minha segunda filha – continuava a não ter carro. E pronto, isso é porque gostava imenso, porque eu ia de camionete e descia, desci a Avenida de Gaia até ao cruzamento que agora dá para o El Corte Inglés – eu esperava ali, havia ali um cafezito que era assim uma coisa muito manhosa, mas eu tinha de me sentar na soleira do café, senão eu desmaiava no meio da rua. Portanto: eu, até vir a camionete, sentava-me na soleira do café. Depois ia até à porta do Aveiro – agora é lá o Pingo Doce ou uma coisa qualquer assim, mas, na altura, era outro cafezito – e depois ia a pé até ao colégio…parece que ia a arrastar o mundo.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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Depois, outra: tive uma turma muito difícil, um 9º ano muito difícil. Esse, mesmo muito difícil. Eu cheguei a dizer a um – aí zanguei-me a sério, porque ele era muito malcriado – e eu a certa altura disse-lhe: “Olhe que se eu tiver que pegar na cadeira e dar-lhe com ela na cabeça, eu dou”. Não dava nada, mas pronto. Mas não passou disto. Mas essa turma nunca mais me esqueço, eles – havia dois, dois terríveis, lá ao fundo, lá ao fundo da sala, claro. Eu estava a dar aula: eu nunca me sento, eu ando sempre. Depois tinha uma preocupação muito grande, que é: eu levo a aula – que veio do estágio, não é? – eu levo a aula na minha cabeça preparadinha, portanto, eu não estou dependente de papéis disto ou daquilo, portanto, eu ando pela sala…e vi que eles que estavam entretidíssimos com um disparate qualquer. E eu continuei a dar aula: falo nesta fila, venho para aquela, venho para aquela, vou, vou, vou, para os distrair, vou, vou pela fila do fundo, chego à beira deles…eles estavam com um desenho na mão, tão entretidos que nem sequer se aperceberam que eu cheguei. E eu cheguei lá, tiro-lhes a folha: ficaram brancos. “Ai professora, ai professora, ai professora…”. O que é que era a folha? Estavam a desenhar um homem dobrado e o outro a fazer…pronto, dois homossexuais. E eles estavam a desenhar. E eu disse: “Ora, pois muito bem: isto vai já para a Diretora de Turma!” – “Ai, professora, não, não, não, ai, os nossos pais” – “Pensou nisso antes? Pensou nisso antes?” – que eu também não gosto de tratamento por tu, nunca me habituei – “Pensou nisso antes?” – “Ai, professora, não” – “Olhe, nós vamos fazer o seguinte: isto vai ficar comigo, eu vou guardar isto até ao fim do ano. Para a próxima, isto vai direitinho para a Diretora de Turma. Mas direitinho!”. Foi remédio santo. Foi a maneira de eu depois conseguir…quando havia qualquer coisa, eu dizia: “Olha a folha”. Foi o meu seguro de vida.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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Eu lembro-me tão bem, lembro-me tão bem disso. E daquela boa disposição que havia na sala dos professores… mas as pessoas também eram compreensivas comigo, porque o reitor, no tempo em que eu lá cheguei, o reitor era uma figura daquelas absolutamente tétricas. E ele, faltavam aí 2 minutos ou 3 para tocar e ele vinha para a sala dos professores e, se tocasse e os professores não se levantassem, ele dizia da porta da sala: “Já tocou!”, e os professores tudo pela porta fora. Eu vinha a pé de casa, que a escola é perto, eu vinha a pé de casa, eu demoro um quarto de hora, ainda hoje demoro, mais ou menos um quarto de hora a vir. E eu sempre – uma coisa que eu sempre usei, foi outra coisa que eles me deram, foi uma bata nova em que eles puseram todos a assinatura na bata, porque eu andava sempre de bata. Nós, este grupinho – agora já não, as outras já não – mas nós, este grupinho, era sempre. Nós, como as nossas aulas eram, maioritariamente, laboratoriais, nós chegávamos lá, vestíamos a bata e andávamos sempre de bata. Era, aquele grupo. E eu – na altura ainda não tínhamos esse gabinete – e eu deixava a bata pendurada na sala dos professores. É que era certinho. Já vinha o reitor a descer e eu ainda ia a correr, a subir as escadas, para ir buscar a bata: ele nunca me disse nada, nunca, nunca me disse nada. Eu também era bem tratada.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
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pof | entrevista_Violeta |
keys | Novas Oportunidades // horta // galinheiro // ministra |
Houve uma coisa que me marcou pela positiva, que foi…que foi uma visita que a Ministra Maria de Lurdes Rodrigues, na altura, fez à nossa escola. E, portanto, o nosso Presidente, o Presidente do Conselho Diretivo, era uma pessoa muito sui generis. Ele é de Biologia…mais de Geologia, mas pronto, Biologia/Geologia, mas tem uma maneira de estar muito sui generis, ele resolve os problemas todos…como digo, isto da escola para não ser agrupada, não sei como é que ele conseguiu – agora já não é ele, mas como é que se consegue? Mas, por exemplo, uma coisa que ele fez e que eu acho que foi sempre muito positiva foi: a escola tem um terreno grande – agora já não tem, foi para obras, foi intervencionada, foi intervencionada naquela altura em que muitas escolas foram intervencionadas, e agora deixou de ter esse espaço – mas tinha um espaço atrás que tinha muita terra, tínhamos muitas árvores à volta da escola, muitos recreios, e tinha zonas com muita terra. Então o que é que ele fez? Conseguiu que – dando dias de férias aos funcionários fora dos tempos letivos, ele conseguiu que eles lhe pusessem ali uma horta. Portanto, eles puseram ali uma horta que dava couves, dava batatas, dava tomate, dava uma série de coisas. E tinha um galinheiro que produzia frango: ele tinha lá frango, galinhas, e era usado na cantina, o que se produzia ali…a Ministra ficou admiradíssima. Depois as árvores de fruto à volta da escola também davam maçãs e pêras. E ele foi mostrar à Ministra aquilo tudo. E então, na altura, havia os CNOs, os Cursos das Novas Oportunidades, CNOs. E então, quando passaram pelos frangos – ele é muito engraçado, é muito engraçado: “Este é um novo curso CNO, que nós temos aqui, este é um CNO. E mais, estes já têm todos garantido lá para outubro – eu já lhes prometi – tenho um tacho.” E ela ria-se imenso. E depois também fez uma cesta com frutinha para oferecer à senhora Ministra e tal e ela também gostou muito.
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Violeta-5 |
pof | entrevista_Violeta |
keys | humor |
Mas gostava muito do sentido de humor, lembro-me – é outra coisa que me vem à memória muito gratificante – de uma turma de 12º ano que eu tinha. E a sala era voltada para uma dessas placas ajardinadas que o liceu tinha. E, na altura, o Presidente do Conselho Diretivo pediu a um funcionário que plantasse agapantos, aquelas flores que agora se vê muito, brancas e azuis, que agora está na época de andarem por aí. E então, o funcionário que estava a fazer esse trabalho andava a retirar cebolas de uns canteiros mais afastados para pôr naquele. E então estava a pôr as cebolas – tinha um passeio em cimento e depois tinha a placa que ia ser ajardinada, depois tinha o estacionamento dos carros. Então o senhor trazia as cebolas e pousava ali muito direitinhas para depois plantar. E a certa altura diz um aluno, bate no vidro e diz assim baixinho: “Aí não pega! Aí não pega!” Eu não contava com aquilo, eu desatei uma gargalhada, comecei-me a rir, porque, realmente… “aí não pega”. Mas eram muito engraçados, muito engraçados. E eles riam-se muito comigo, porque…havia um outro que era muito aborrecidinho, muito aborrecidinho, muito picuinhas, muita coisa, e eu, um dia, virei-me para ele e disse: “Oh D., quando começar a namorar avise-me, que é para eu avisar a rapariga no que ela se vai meter! Já viu o que é, anda sempre aí, não sai do sítio?”. Portanto, é muito isto.
3º Ciclo e Secundário
ciclo | 3º Ciclo e Secundário |
id | Virgílio-1 |
pof | entrevista_Virgílio |
keys | poema // fim de ciclo |
Vou ler o que uma aluna escreveu, se leu ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’, sabe que ele foi buscar um bocadinho. Mas eu vou ler: “Aqui, onde o secundário acaba e a vida principia, despedimo-nos de si. Com a saudade bem presente na memória, dedicando-lhe estes versos inexperientes, escritos entre a alegria do sim e a tristeza do adeus. Deixamos um passado saudoso para alcançar um futuro promissor. É hora. Hora de partir e deambular por novos versos, novas rotas com igual emoção com que ensinou cada ensinamento que nos deu. No teatro da vida, ao fechar a cortina, ovamos de pé a sua dedicação. Aqui, onde a vida principiou e o secundário se eternizará, deixamos com muito amor e admiração um enorme agradecimento ao nosso professor Virgílio.
Muito bonito, neste livro, isso escrito por uma miúda a representar a turma.
Eu fiquei com as lágrimas a cair. Não consegui dizer mais nada. Eles agarraram-se a mim e ficamos por ali, e ficamos por ali. É isto. Mas eu continuo a dizer, é uma profissão… sei lá, isto é mais uma paixão. Não é bem uma profissão, é mais uma paixão, não é?
Pré_Escolar
ciclo | Pré_Escolar |
id | Alexandra-1 |
pof | entrevista_Alexandra |
Tinha sete ou oito crianças, não havia crianças naquela aldeia. Era muito complicado, era muito frio, muitas vezes eu ia com os meninos para casa da senhora que morava em frente e íamos para junto da lareira para estarmos mais aconchegados, com os jogos, a contar histórias. Lembro-me que a senhora contava histórias comigo também, foi um tempo muito bonito. Acho que aquelas crianças, se calhar, ainda hoje são capazes de recordar esses bons momentos como eu os recordo também.
Pré_Escolar
ciclo | Pré_Escolar |
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pof | entrevista_Gina |
E agora, dou-lhe um exemplo, o ano passado criaram as assembleias de alunos. Para os alunos poderem participar na Escola e com questões que queiram levantar e fizeram a assembleia. Então estavam todos representados, menos o pré-escolar. Aquilo foi a pedagógico e eu percebi que já tinha havido uma assembleia de alunos, e eu disse “eu não acredito, mas e o pré-escolar?”, “ah, porque os pequeninos não vão aguentar”, “Desculpa os pequeninos, aguentam o que aguentam. Se para os pequeninos irem eles só podem estar lá meia hora, eles estão lá meia hora, mas participam. Eu não admito que o pré- escolar não esteja”. E foi a partir daí que o pré-escolar foi. E é engraçado que a primeira ata dos miúdos de nono ano dizia que o pré-escolar tinha trazido propostas muito interessantes. E eu digo assim “toma!” (risos) Não é? E depois de fazer estas barbaridades. Mas ainda há aqui escolas, há uma colega minha que entrou o ano passado aqui no jardim de infância que dizia assim “Ai, eu vim de outros agrupamentos e não é nada assim. Isto é só assim aqui, porque tu não te calas”. Ora bem, eu não me calo. Mas, os outros, quando há gente que não fala tanto quanto eu, tem que haver sensibilidade por parte dos directores. Portanto, não foi tão bom por causa disso.
Pré_Escolar
ciclo | Pré_Escolar |
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Fiquei muito ansiosa. Lembro-me de que nessa noite eu não dormi. Lembro-me que escolhi a roupa com muitos pormenores - que eles se identificassem comigo em alguma coisa. Os pequeninos são muito espontâneos, comentam muito e dizem: “Estás tão gira!”. Depois, por outro lado, estava ansiosa também com os pais. Eles já tinham tido outra educadora nesse ano letivo. Eu pensava: “Será que a educadora tinha muita experiência? Como é que ia ser? Vai haver uma comparação?” Portanto, a primeira noite não dormi. Lembro-me que levantei-me muito cedo, estava pronta muito cedo. Lembro-me de ter trocado de roupa - ainda não estava muito bem. Depois, a minha ansiedade aumentou porque Évora Monte é uma aldeia pequenina e tem uma população - como a maior parte do Alentejo - muito envelhecida. Lá tinha uns banquinhos, daqueles banquinhos de jardim com ripinhas de madeira, onde se sentavam os senhores da aldeia - que não trabalhavam já. No Alentejo, os homens usavam boina ou chapéu. Na altura usava-se. Toda a gente já sabia que eu era a nova educadora. Então eu ia muito incomodada, a olhar para o chão. Ao longo do caminho, os senhores levantavam-se e tiravam o chapéus e diziam: “Bom dia professora. Bom dia senhora professora.”.
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Eu fui para casa da senhora que me alugou um quarto, que era o sofá. Não tinha casa de banho com banheira, nem com chuveiro. Eu tinha que carregar baldes de água quente, quase a atravessar a casa toda - naqueles alguidares antigos para poder tomar banho. A senhora já tinha alguma idade e vivia com outra senhora, também com alguma idade - estavam à espera da reforma. Uma sentava-se numa ponta do sofá, a outra na outra ponta [do sofá] e eu ficava no meio a ver a telenovela - elas começava a dormir imediatamente. Eu só estive lá duas semanas e foram, assim, muito engraçadas. Eu não podia cozinhar em casa da senhora. Eu ia almoçar a um café-taberna onde o senhor, especialmente, fazia-me o almoço. Era quase sempre grão cozido com uma posta de bacalhau, batata frita e um ovo. Portanto, em duas semanas eu tinha tudo para dizer: “Desiste, vai-te embora.”. Mas não. Eu tinha os miúdos. Eu adorei trabalhar com os miúdos.
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ciclo | Pré_Escolar |
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Lembro-me uma vez que estava a ver a pauta final, já foi mesmo quando tinha estourado a guerra, era barulho por todos os lados, principalmente à noite, estava um monte de gente a tentar ver e eu era pequenininha, fiquei para trás, mas estava um preto grande à minha frente e diz eles assim: “Estás a ver aquela ali, Guiomar, estás a ver? Guiomar, estás a ver, 19, 19, 19 e depois diz que o computador não tem cunha, tem cunha sim” E eu digo, “Olha, vou me embora porque já sei as minhas notas, já sei que tenho com 19 mas com cunhas, afinal o computador também tem cunha…”
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E então eu lembro-me de uma vez, fui comprar…os meninos, um grupinho de três anos muito amoroso, e então não sei quem é que tinha nascido pintainho na avó, viu pintainho, viu patinho e os outros também queriam ver. E eu disse que ia arranjar um patinho para eles. A quarta-feira há feira nos Carvalhos e eu na quarta-feira logo a seguir fui comprar dois patinhos, eu nunca compro só uma coisa porque eu acho que a companhia faz falta, e trouxe os dois patinhos para eles. Isto deu uma celeuma na escola com a presidente do pedagógico que me dizia que eu não tinha nada que ter ido comprar patinhos sem passar pelo pedagógico. Eu disse: “Como? desculpa cara colega, mas tu não sabes o que é trabalhar em jardim de infância. Se os meus meninos tinham interesse, que é o que eu tenho que responder é aos meninos não é ao teu, ao dela ou ao dela”, eu aí fui mesmo má, eu já não gostava delas, eu já tinha sentido esse afogadilho e, portanto, eu já estava toda com as minhas lanças na mão e eu já estava… não vou fazer amizades aqui por isso… “Não são os teus interesses nem os interesses de ninguém, nem do ministro, nem da ministra, é dos meus meninos eles estavam interessados em ver patinhos e ter patinhos. Pois já fui comprar os pratinhos, com o meu dinheiro, não pedi a ninguém, com o meu dinheiro. Sim eu gasto do meu dinheiro, não estou a fazer contas e fui comprar os patinhos e agora estão ali os patinhos”; “Ah foste comprar os patinhos? devia ter ido ao pedagógico”; “Pois e o pedagógico era daqui a um mês e o interesse dos meninos ia esperar um mês?”; ” Ah e não pediste autorização para usar o tanque para os patinhos”; “Pois eu recuperei uma coisa que estava cheia de teias de aranha, sabes quando? ao fim do dia, depois dos meninos saírem, comprei o material e estive aqui a trabalhar.”
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ciclo | Pré_Escolar |
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E houve alguém relacionado com o jardim de infância, foi criado um jardim ali no C., onde eu vivia - pela necessidade já das mães que trabalhavam e de crianças - e havia uma criança especial, já naquela época, em que ninguém entendia muito bem o que a criança tinha e os médicos diziam que ele devia frequentar, e então o mais próximo que havia era aqui o João de Deus, ali no C.. Os pais eram novos, juntaram-se e formaram uma associação e criaram um jardim - que foi encerrado apenas há uns dois anos, e para onde eu fui, eu e uma outra mocinha, ela só tinha o quarto ano, eu tinha acabado o sétimo e depois eram 37 crianças e duas cachopas de 18 anos. E era muito giro, porque como eu digo, eu tinha outras crianças e até tinha uma destreza física muito grande. Só que muito rapidamente a gente vê que um jardim de infância não é entreter meninos! Há necessidade de ser muito mais. E depois havia o problema: o que é que se faz, o que é que não se faz? E a gente vai procurar. E eu lembro-me de ensinar-lhes canções que eu aprendi quando andei no jardim de infância, que acho que isso nem se chamava assim, na Imaculada Conceição, em Braga. E as que eu sabia e que pedia, ora lá está, aos ditos segundos primos, aprendi as coisas com eles, para levar para os meus. Portanto, eu fui fazendo uma certa formação
ciclo | Pré_Escolar |
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E eu vivia no meu cantinho. Sempre vivi. Quando começámos a ser um grupo mais restrito, a estar mais tempo no mesmo sítio - com o Agrupamento - e eu, quando fiquei efetiva, fiquei efetiva aqui numa aldeia e, é assim, ser da Póvoa era desprestigiante e para mim estar na Póvoa era maravilhoso, porque eram cinco minutos de casa. Eu moro ao pé da escola aqui de C., não sei se conhece, e a Póvoa fica ali em baixo. Aquilo era ótimo! E eu que tinha tido anos em que tinha de me levantar para ir para Castro Daire antes da estrada ser retificada, levantava-me às 05h00, não sei se tinha mais medo de a subir ou de a descer, cada vez que via o autocarro da carreira pensava “pronto, vai ser desta que ele me toca e eu vou por aqui abaixo é desta que ele me vai empurrar”. Era horrível. As estradas eram horríveis em Viseu, atravessar a avenida da Bélgica ou íamos cedo…
ciclo | Pré_Escolar |
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pof | entrevista_Helia |
keys | autismo // dificuldades |
A menina que tive com autismo, ela era muito interessante, não é? E a auxiliar uma vez brincava, porque é assim, ela só se lhe encostasse o pão à boca é que ela comia, se lhe puséssemos as mãos a meio do caminho ela ficava parada. E o primo comia-lhe o pão todo, e então a auxiliar uma vez virou-se para mim e disse-me “Assim é pecado, professora”, “Não, se nós não virmos a faceta lúdica, damos em doidos”. Porque é assim, ela era um holocausto, porque ela já estava comigo quase há dois anos e eu não a conseguia pôr a comunicar comigo, não é? Se ela não comunicar comigo, eu não sei como vai ser, porque eu não consigo entrar. Ela não deixa, ela é como se estivesse dentro de uma redoma de vidro e eu não consigo passar para o lado de lá. Até que ela uma vez, vestida de carnaval, eu disse a um coleguinha dela “Olha, leva a A., vai para a frente do espelho para ela ver se está bonita”. E depois, enquanto vestia outro disse “olha traz a A. cá”, porque ela onde alguém a punha, lá ficava. E ela chegou ao pé de mim e eu disse-lhe “então a princesa, como é que estamos? Estás bonita? Olha para mim, estás bonita!”, e ela diz-me “estás bonita”. E eu naquele momento disse “temos menina, temos menina!”. Foi o clic, foi o despertar dela. E foi interessante porque a partir daí pronto, ela conhecia a utilidade, mas não conhecia o nome das coisas. Foi preciso parar mesmo muito para pensar como é que eles aprendem, como é que eles começam. E o certo é que ela começou a falar, está num 12.º ano profissional. Eu não sei o que é que fizeram os papéis dela, mas felizmente nunca ninguém acreditou muito no grau de autismo que ela tinha. Foi a sorte dela. Para mim ela é a minha medalha de ouro. Ela é o colmatar de todo o meu conhecimento!
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ciclo | Pré_Escolar |
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geo | Odemira |
E era um bocadinho a figura do professor do que nós, às vezes, encontramos na Literatura, porque era eu que fazia as cartas quando as pessoas me iam pedir, às vezes, para eu fazer uma carta para aqui ou para acolá, era eu que respondia. As pessoas recebiam uma coisa da Segurança Social, ou não percebiam o que era aquilo, era eu que fazia o contacto, eu ia a Odemira, pediam-me: “Ah, se a professora me trouxesse da farmácia isto, isto, aquilo, como vai a Odemira”, porque às vezes eu pegava no carro e ia a Odemira fazer compras, que ali era muito difícil comprar tudo, se bem que ainda não deixavam o professor comprar nada ali. Portanto, era uma ofensa para eles eu poder comprar batatas, ou cebolas, ou amendoins… eu tinha peixe todos os dias à porta. Batiam-me à porta e diziam: “Professora, está aqui o baldinho”. Se eu recusasse as pessoas ficavam ofendidas, porque no fundo eu era a professora, ali da comunidade. Fui muito feliz, tanto que tive logo um início muito feliz, independentemente de estar afastada de casa, mas pronto, fui realmente muito, muito feliz ali.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Luísa-2 |
pof | entrevista_Luísa |
geo | Castro Verde |
havia uma colega minha, quer era Educadora de Infância e namorou aqui com um rapaz de Castro Verde, aqui de uma aldeia. E a rapariga deixou o rapaz. E a mãe dele, que era assim uma pessoa, pronto, uma pessoa simples, sem estudos, disse tudo: “Olha para ela, armada em importante. Nem sequer é professora de Primeiro Ciclo”. “Nem sequer é professora primária”. Era isto. Está a imaginar, a gente ainda hoje conta essa anedota. Mas foi uma anedota real, foi uma anedota real.
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ciclo | Pré_Escolar |
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pof | entrevista_Maria Tiago |
Eu posso falar do T, que eu até nem queria que o meu filho fosse o Tiago, mas o meu marido pôs-lhe J T e assim ficou. Ele tinha asma. E trabalhava muito com a porta aberta, era mais livre. Li muito, assim aos 18 anos, o [incompreensível] e coisas assim. Ele era muito pouco comunicativo, parece que não estava a fazer nada. E uma vez eu fui ver. Ele tinha partido quatro termos - os termos que os meninos traziam para o almoço. E eu fui obrigada a ir comprar comida. Eu chegava a um jardim com ele e eu via as educadoras todas irem embora porque ele começava a morder as crianças e eu a correr atrás dele para o apanhar. Não conseguia parar. Aquilo era ao pé de S e agora é um agrupamento. Ele partiu várias cabeças de crianças, muito mais velhas, porque mandava pedras. Depois eu falava com ele e ele ficava sem olhar para mim. Ele levou um coelho para a sala. Eu tive o coelho na sala. O único dia que eu faltei - que eu faltei muito pouco ao longo da minha vida - faltei uma sexta feira e ia tomar café sempre ali no F N, no cafezinho. E cheguei lá e o senhor disse-me: “Oh educadora, já foi à escola?” Eu disse: “Não, mas há algum problema?”. Eu cheguei, ele estava com a comida, a falar do coelho - e estavam todos a gritar, com todas as mães a olhar para. “Ele matou o coelho na sexta-feira!!!” Ele mandou o coelho contra a parede. Eu na altura tinha uma estagiária - que eu disse na Escola Superior de Educação que não queria ter porque era ainda muito novinha -mas ia lá uma psicóloga e dizia que estava tudo bem, que eu estava a fazer bem com o T. E eu achava que estava a ser muito permissiva. E foi quando falei. Num dia de chuva, ele já tinha ido lá para fora dez vezes. Ele estava com asma. Foi quando eu cheguei ao pé dele e a chuva a cair por cima de mim, dele. Agarrei, mas agarrei o entre o desespero e até com alguma assertividade, disse: “Eu estou cansada e não sei o que fazer contigo.”. Ele ficou a chorar agarrado a mim e eu a chorar, com a chuva, agarrada a ele. Vim cá para fora e disse à coordenadora que ia embora porque estava quase na hora de sair. E fui-me embora. E no outro dia, entrei, ele estava a olhar na sala e disse-me “Olá.”. Depois disse… As pessoas irritaram-se com a mãe. A mãe também era muito calma. Eu acho que ele estava há muito tempo a querer que eu fosse mais assertiva com ele e eu não estava. Portanto, ele ia de problema em problema. Mas ele nem é de desafiar - porque hoje tenho muitos que desafiam. Mas ele ficava assim. Na escola, a mãe disse-me que estava a correr tudo lindamente. Dizia-me a mãe: “Até tenho pena de si, foi consigo que ele fez tudo isto.”. Passado quatro anos eu fui ao C. M. - ele morava ao pé do C.M., numa casa de venda de produtos, de materiais - e alguém lá dentro perguntou se estava aqui alguma M.T. Eu disse: “Sou eu.”. Estava a mãe dele e estava ele à porta. Ele estava no quinto ano. Eu aproximei-me do T e as lágrimas caíam pela cara do menino. Ainda hoje emociono-me porque abracei-me a ele e disse: “Então T, estás bom? Estás tão bonito e tão grande.”. Ele continua a abraçar. Ele não disse nada e a mãe também fez assim um abraço e disse: “Que corra tudo bem e disse xau.”. Mas tenho mais histórias.
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ciclo | Pré_Escolar |
id | Mariana-1 |
pof | entrevista_Mariana |
Fui colocada num no jardim de infância nas Termas do Carvalhal que não existia. Na altura as Câmaras diziam que sim que havia, mas não havia edifício. Lembro-me que fui, procurei a escola primária e pensei, os professores devem saber, e chego lá e diz-me um professor “oh menina, vens dar o leite?, ainda bem que vens dar o leite que é a coisa que não gosto nada é de dar o leite aos miúdos, não gosto nada dessas coisas.” “Não, eu sou educadora de infância”, “oh menina, eu não sei que é isso”, professores primários, não sei o que é isso. Eu regresso novamente à vila e pergunto ao delegado escolar, “óh Sr. delegado, mas não há sala, não há jardim de infância, como é que eu faço?” ” Ah sabe colega, isso foi tudo à pressa, isto foi aberto, mas o presidente da Câmara ficou de arranjar as instalações, ainda não estão”. Eu estive, tinha que cumprir o meu horário. Arranjei um quarto lá nas Termas do Carvalhal e tive setembro, outubro assim sem fazer nada… até que há certa altura estava eu, estávamos mais… umas 10, estávamos lá e não tínhamos nada, porque não tinha instalações.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Mariana-2 |
pof | entrevista_Mariana |
Negociei com os pais porque senão eu praticamente não vinha à casa. Negociei com os pais, todas nós. Então como nós durante a semana trabalhávamos até às sete horas, os pais também não houve problemas “ai não, deixe ficar, oh D. Mariana, deixe ficar, então segunda feira à tarde inicia e na sexta de manhã há e depois à tarde a senhora vai embora”. Lá vinha eu carregada com muitos coelhos, muitos chouriços, muitos salpicões que depois distribuía por toda a gente quando chegava à Régua.
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ciclo | Pré_Escolar |
id | Nena-1 |
pof | entrevista_Nena |
keys | solidariedade // carências // iniciativas // ajuda |
nvivo | incidentes críticos |
De vez em quando, como os miúdos tinham assim uma certas carências, de vez em quando fazia assim, arranjávamos maneira de fazer qualquer coisa lá na escola.
Eu fazia assim pedia “trazes-me uma batatinha de casa? Tens batatas não tens?”, então era assim, “traz uma batata, traz não sei o quê”, então arranjámos ali qualquer coisa, eu e a funcionária e fazíamos uma refeição boa para aqueles miúdos e ficavam super felizes.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Nena-3 |
pof | entrevista_Nena |
keys | amizade // educação de adultos // condições de trabalho |
nvivo | percursos |
Também tive uma experiência muito engraçada aí, havia uma colega do primeiro ciclo também - eu morava relativamente perto dela e ela como tinha que ficar lá e aquilo era um bocado isolado e a gente ficava muito sozinha, ela convidáva-me algumas vezes a ir a casa dela e tal - então ela dava aulas à noite a adultos e convidou-me. E eu então comecei a dar aulas também à noite aos adultos. Foi muito engraçado! Então acabei por ter também lá assim aquelas pessoas com mais de idade. E criou-se ali uma amizade espetacular. Foi um sitio que eu gostei imenso. Gostei, mas as condições em que eu estava eram complicadas, fisicamente e psicologicamente, fui um bocado abaixo. Em todos os sítios tenho assim histórias. Tenho algumas que me lembro mas acho que não são propriamente adequadas para contar aqui, assim de dizeres dos miúdos que era qualquer coisa de fantástico.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Nena-4 |
pof | entrevista_Nena |
keys | higiene // saúde |
nvivo | incidentes críticos |
Por acaso vou-lhe contar uma história dos piolhos. Até hoje foi sempre um problema nas escolas. E é um tema complicado. Parece simples, mas é um tema complicado. Piolhos e higiene. Nas aldeias isso vê-se muito, com muita facilidade, a falta de higiene e por isso mesmo até tinha, por exemplo, sempre a mania de ter escovas dos dentes para os miúdos pelo menos lavarem os dentes. E tentava, por exemplo, quando fazia de manhã o acolhimento, simular que estávamos a tomar banho, fazer aquelas brincadeiras. Como fazer aqueles jogos vocais para falar melhor, coisas do género. E porquê? Porque eu tinha meninos que cheiravam muito mal. E tinha inclusive uma menina que ela tinha um otite e a otite rebentou e cheirava mal, horrivelmente mal. Nós tentamos, mas não conseguimos nada. Até que um dia eu fiz uma reunião de pais. Fiz uma reunião de pais e, sem atacar ninguém, falei que é importante cuidarmos da higiene dos nossos filhos. Bom, eu sei que saímos da reunião, aquela senhora enfiou a carapuça e as pessoas também atacaram-na, porque os miúdos queixavam-se também, e a senhora começou a insultar-me. Por acaso várias pessoas estavam ali e depois chamaram-na à atenção. “Olha pensa, pensa com a cabeça. Se a professora não se preocupasse com a filha, não fazia esta reunião. Ela não nomeou sequer o teu nome, não falou no teu nome, no nome da tua filha, não falou no nome de ninguém. Falou como se fossemos todos. Portanto, é sinal que ela também quer estar próxima da tua filha, mas se ela cheira mal, é impossível estar”. E conseguiram dar-lhe a volta, a senhora acalmou. E conseguimos que ela levasse a menina ao médico e limpasse aqueles ouvidos, porque cheirava mesmo mal. Poranto, esse era um problema que existia nalgumas aldeias.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Nena-5 |
pof | entrevista_Nena |
keys | saúde // higiene |
nvivo | condições de trabalho |
Na altura era complicado porque o tomar banho não era valorizado. Dormiam muitos menino, muitas famílias, muito juntas num compartimento, portanto, as condições eram outras. Agora, as pessoas já se habituaram a ter outros cuidados e têm outro modo de vida. As casas já têm casas de banho, eu lembro-me que as casas não tinham casa de banho. Portanto, as condições mudaram. Felizmente que mudaram para melhor. Mas ainda sou do tempo que não havia casas de banho, nem nas escolas, eu lembro-me que nós costumávamos ir rapazes para um lado, e as raparigas para outro. Depois era ver quem fazia o xixi mais longo (risos) Nós temos assim histórias muito giras! Temos assim coisas muito engraçadas.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Nena-6 |
pof | entrevista_Nena |
keys | condições de trabalho // aldeia // aquecimento |
nvivo | outros |
Portanto, isto já foi nos anos, olhe eu tinha sete anos, em 66/67. Eu nasci em 60, portanto tinha sete, oito anos. E, nessa altura, íamos com o braseira pedir brasas pelas casas para aquecermos a professora.
Eu nasci numa aldeia. E portanto não havia aquecimento. Na altura nem havia televisão. Só mais tarde começou. Ainda me lembro quando veio a luz, quando meteram a luz. Ainda me lembro quando nós tivemos a primeira televisão. Ouvíamos a rádio, aquela telenovela da Maria, em que íamos todas para a beira da Rádio.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Nena-8 |
pof | entrevista_Nena |
keys | desporto |
Eu tenho uma experiência com uma miúda por acaso, que como já disse, eu fazia muitos teatros com os miúdos. E alguns até mais tímidos. Eu punha um lençol, luz atrás, punha música e elas atrás do lençol expressavam-se todas, revelavam-se ali. E eu fiz umas descobertas e falei com aquelas encarregada de educação. E disse ” esteja atento, se puder coloque a menina num balet”. Uma delas faz neste momento ginástica rítmica. Faz parte de um grupo muito conhecido. E a mãe quando interage comigo diz “isto devo-lho a si! Se não fosse a professora a alertar-nos eu provavelmente não estaria tão atenta”.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Nena-9 |
pof | entrevista_Nena |
keys | mãe // diversidade dos alunos // comportamento |
nvivo | dificuldades |
Estamos a falar de muitas horas na escola, quer dizer, muitas horas. Eu cheguei a ter uma mãe, que isso é que me perturbou, eu fiquei mesmo doente! Eu vi logo que ia dar bronca. A mãe tinha três meninos. Um depois já saiu. Andavam os dois miúdos comigo na sala. Nós tinhamos grupos heterogéneos: de três, quatro, cinco anos. Eu com os de três anos de vez em quando tinha uma animadora ou então tinha a funcionária e arranjava uma forma de eles estarem ali noutra atividade. E incidia muito mais nos meninos de quatro, cinco anos. Memso os de três anos não tinham grau de atenção, de comunicação, de fazer, enfim. Nunca os excluía, mas nestas coisas mais puxaditas eu tentava ter outra ocupação, até no recreio, até lhes arranjei umas bicicletas e eles ficaram todos contentes. E uma hortinha e também ficavam contentes, para alguns era uma terapia. E tive essa mãe e eram, portanto, os dois irmãos. E eu na reunião, portanto comecei a perceber que a senhora deixava lá de manhã cedo o miúdo até às quinhentas, um miúdo de três anos. O miúdo chegava depois de almoço e estava morto de cansaço, cheio de sono, irritadiço. E berrava, berrava. Eu falei com a mãe e disse “Olhe, eu aconselho-a a vir buscar o menino, depois de almoço, porque ele não se aguenta. Nós não temos condições para o menino descansar”. Não me ligou nada, absolutamente nada. Porque, lá está, era educadora. Porque se fosse uma professora, provavelmente ligavam. É que há uma diferença de estatuto, naquela altura havia uma diferença de estatuto. Agora também há, mas mais diluído. Mas havia um diferença de estatuto, o que o professor dissesse estava bem dito, o que o educador dissesse alto lá, ponto de interrogação. E ela não me ligou patavina. Conclusão: o miúdo continuava a berrar na sala. Tentei de tudo para o acalmar. Não consegui. Até que um dia tomei uma decisão e disse “Olha!” Perguntei “alguém te está a fazer mal?” Então vamos fazer o seguinte: eu vou-te pôr lá fora, ali nas escadas” - é dentro do edifício, portanto, não havia perigo - “quando tu parares de chorar podes entrar na sala, enquanto não parares de chorar não entras na sala”. A miúda era mais velha, cinco anos, e foi contar a mãe que eu pus o menino fora da sala e a mãe quis vir chatear-me a cabeça. E eu disse ” Já falei consigo sobre a situação, certo? A senhora gosta de ouvir o seu menino a berrar em casa?“,”Ai não! Ai, ele irrita-me!“,”Ah, então agora, a senhora ponha-se no meu papel. O seu filho a berrar e eu com 24 meninos”. Ela calou-se! Bem, entretanto, continuaram a não ligar muito, mas o miúdo começou também a acalmar e tal. Portanto, a verdade é que eu saí de lá e um dia fui ao tribunal e vi lá a senhora no tribunal. Andava metida na droga, só podia dar assim uma coisa destas. Só podia dar… não estava a trabalhar e os miúdos eram revoltados. São situações que nós também acabamos por ver e que nos custa muito, também, porque os miúdos não têm culpa. O miúdo até era amoroso, coitadinho, mas o miúdo sentia-se que estava ali abandonado pela mãe e, portanto, pela mãe. Enfiava-o lá uma porrada de horas. Isto é violento demais!
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ciclo | Pré_Escolar |
id | Noel-1 |
pof | entrevista_Noel |
keys | relações de poder // oposição |
nvivo | incidentes críticos |
geo | Alentejo |
A nível institucional também tive problemas, porque essas coisas vão contra o poder. Resumindo e concluindo. E o poder não gosta. Eu lembro-me que houve um ano, e até foi a seguir a um destes encontros com os franceses, que me disseram “ah e tal, o Noel não é educador, ele é um animador cultural e não sei quê. Temos que investigar isso. Temos que averiguar essa situação, não sei o quê”. E obrigaram-me a interromper as férias do verão para responder a um inquérito. E isto a nível da Direção Regional de Educação do Alentejo. Por acaso houve uma pessoa que eu cconhecia e que tinha feito a formação dos inspetores e nós encontrámo-nos em Lisboa, casualmente, e ele “o que se passa contigo? Pareces um bocado em baixo” e eu expliquei-lhe, e ele “o quê? Isso não pode ser, quem te pode fazer uma coisa dessas é a inspeção”. E parece que depois ele lá deu o lamiré senão eu estava tramado. É que estas coisas para além do trabalho, depois há resistência e oposição. Portanto, em relação a situações destas, é muito difícil.
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ciclo | Pré_Escolar |
id | Olga-1 |
pof | entrevista_Olga |
keys | colocação // direção |
nvivo | percursos |
geo | Portalegre |
Depois de três anos nesta experiência, que me cansou um bocadinho por causa do contexto, concorri ao Ministério de Educação. Sabia que queria sair dali, e fiquei logo colocada no jardim de infância S., também daqui do concelho de Portalegre. E aí foi uma experiência interessante. Foi giro. No primeiro dia que cheguei ao jardim de infância eu não sabia nada do que era, dos mapas que tinha que fazer, dos ofícios, desses pormenores todos que nós tínhamos que fazer, porque naquela altura nós já éramos diretoras, nós próprias (risos) e este processo depois, enfim, tem muito que se lhe diga ao longo dos anos. E era um jardim infantil unitário. Funcionava numa dependência da Junta de Freguesia. Nem sequer era um espaço próprio para jardim de infância. E eu cheguei ao jardim de infância, lá perguntei onde é que era, fui à Junta de Freguesia, portanto era 30 de Setembro. E aquilo ficava numa zona, num bairro ali daquela daquela vila, daquela aldeia, aquilo nem sequer era vila. E eu lá estive dentro a ver os papéis que a minha colega tinha antes, o que é que tinha que fazer. Verifiquei tudo o que havia de material, e o que é que não havia. E depois fui-me embora para o carro e vim-me embora. Portanto, saí do jardim de infância, cheguei ao carro e tinha um pneu furado. Tinha o pneu furado! Agarrei no macaco, agora se calhar é mais complicado, mas naquela altura não era muito difícil. Acho que devia ser o primeiro que eu fazia. Mas pronto, lá fui vendo as coisas e mudei o pneu! Mudei o pneu e vim-me embora. Portanto, havia imensos olhos por ali a verificar o que se passava. Portanto, perceberam logo quem era a nova professora dos pequenos.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Olga-2 |
pof | entrevista_Olga |
keys | transporte // zonas rurais // acesso |
nvivo | incidente crítico |
geo | Algarve |
Nesse ano que estive no Algarve, fizemos um trabalho muito interessante entre os colegas. E eu estava num jardim de infância que tinha duas salas, numa freguesia grande que tinha quatro salas em duas localidades. E só três é que estavam com educadoras. Na altura até tinha um rapaz. E no resto da freguesia havia escolas de primeiro ciclo. A zona da Mexilhoeira Grande, que é uma freguesia das maiores do país, mas tem uma zona rural muito densa, e nessa altura - agora já não - mas nessa altura tinha três escolas primárias rurais e as crianças destas áreas não iam para o jardim de infância, porque ficava a uma distância e, portanto, a escola era ali perto. Ali perto não havia jardim de infância, o jardim de infância havia a cinco ou seis quilómetros, na sede de freguesia
Entrevistadora: Pois, e já não iam.
Olga: E eu e a minha colega pensámos “então,mas há ali uma sala que não está ocupada”. Fomos à Junta de Freguesia explicar ao presidente da Junta. Depois o presidente da Junta disse: “se houver inscrições eu posso tentar arranjar transporte”, que agora é uma coisa que é obrigatória, mas que na altura não havia transportes. Nós deslocarmo-nos no meu carro pela zona rural toda, pelas tascas, pelos cafés, as mercearias, deixámos os papéis para pré inscrição dos meninos. Para saber quantos meninos é que havia. Fomos às escolas de primeiro ciclo, falámos com as professoras, se têm irmãos mais pequeninos, deixámos os papéis nos cafés para que o presidente da Junta, se houvesse um número razoável, fizesse o transporte. Mas ele fazia o transporte, se depois a delegação escolar requisitasse mais educadores. E nós fizemos todo este processo e até agora funciona o transporte pelas zonas rurais.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Olga-3 |
pof | entrevista_Olga |
tempoh | anos 90/2000 |
keys | Projetos // associação profissional // viagem // educação itinerante |
nvivo | incidente crítico |
geo | Portalegre |
Já contei algumas, mas recordo-me agora de uma que, quando andei a pensar nisto e no que havia de dizer. Neste anos que estive a trabalhar nesta associação de profissionais de educação, nós tínhamos muitos projetos. E quando foi na Expo de Hannover nós tínhamos um projeto relacionado com o montado, aqui, com o sobreiro, com o ambiente. Tínhamos muitos, muitos projetos, os tais pré-pri. E fomos convidados para ir a Hannover. Levávamos alunos e professores.
Entrevistadora: Em que ano estamos? Assim mais ou menos, mais ou menos. Não é preciso uma data certa,
Olga: Assim, 90 e… quase 2000.
Entrevistadora: Pronto, então se calhar fins de 90.
Olga: É uma questão de a gente procurar quando é que foi a Exposição Internacional da Hannover [em 2000]. Datas sou terrível! E nós tínhamos este projeto e este projeto tinha a ver com jardins de infância rurais, escolas de primeiro ciclo, alguns da cidade. Pronto, a verdade é que nós fomos convidados para ir a Hannover, uma delegação daqui da associação, dos projetos que tínhamos. E a colega que tinha um determinado jardim de infância, que na altura havia uma coisa que era educação itinerante. E na educação itinerante, havia uma colega que circulava para alguns sítios onde havia duas ou três crianças e ela deixava livros, fazia uma animação da manhã com estas crianças, no outro dia estava noutro sítio. Porque havia poucas crianças em cada, não se justificava abrir um jardim de infância, não havia o transporte ainda organizado. E é num destes sítios - muito dentro da Serra de São Mamede - essa colega ficou doente e eu tinha relação com essas crianças, tinha relação com o projeto e entre a criança não participar e ir a Hannover como deveria ir, a criança não foi com a educadora que ficou doente, mas foi comigo. Portanto, eu levei uma criança que tinha ido o mais longe possível. Portanto, daqui ela tinha ido talvez a Abrantes ou perto de Abrantes e não tinha saído para mais longe. Eu acompanhei, com os outros colegas do primeiro ciclo e com outros meninos, mas a minha responsabilidade era para tratar aquele menino. Eu levei o menino, num dia de manhã, de autocarro - com os colegas, claro - de Portalegre até Hannover. Portanto ele foi de Portalegre, de autocarro, até Lisboa e ele quando começou a passar a ponte - era Vasco da Gama já - ele ficou deslumbrado porque ele nunca tinha visto o mar! Ele entrou no aeroporto, entrou no avião, fez o processo. Ele nunca imaginava o que era aquilo, como é que era aquilo?! Ele foi à casa de banho no avião e ficou espantado por saber para onde é que ia o xixi, o xixi ia lá para baixo. O J. M. era fantástico! E chegámos à Alemanha nesse dia. Foi uma coisa absurda! E eu com o menino, tínhamos de fazer uma comunicação no pavilhão Português. E tivemos uma entrevista com a correspondente na altura, é uma senhora que está na RTP África. Na altura era a correspondente na Alemanha, da RTP. E a senhora fez-nos uma entrevista. E, portanto, levar um menino do meio da Serra de São Mamede, que nem sequer vivia num povoado, ele vivia longe do povoado, até à Alemanha num dia e viver a experiência lá e trazê-lo de volta. O mundo que ele viu! Foi das experiências mais interessantes que eu acho que vivi enquanto profissional de Educação.
Pré_Escolar
ciclo | Pré_Escolar |
id | Rita-1 |
pof | entrevista_Rita |
keys | Conselho pedagógico // Ciências da Educação // formação |
nvivo | incidente crítico |
Tive uma cena caricata num pedagógico, em que a presidente do Pedagógico dizia assim: “a senhora educadora faltou e não avisou ninguém”. Eu avisei quem tinha de avisar, mas ela insistia que ela tinha de ser avisada. Então, eu disse-lhe: “Você realmente quer saber? Pois eu vou-me levantar desta cadeira e vou dizer-lhe que tem de me bater continência porque eu fui defender a minha tese de mestrado em Ciências da Educação”. Olhe, começaram a olhar umas para as outras, caladas. “Vá lá ver à secretaria se a falta não está válida!”. Até aí elas não sabiam sequer que eu andava a estudar, ninguém sabia. Uma vez [a presidente do pedagógico] pegou comigo por causa de dois patinhos que eu comprei para os meninos do jardim de infância. Ela disse-me que eu tinha que ter avisado o [conselho] pedagógico, para poder deliberar se podia comprar ou não. “Ora, vamos lá ver. O pedagógico reune uma vez por mês. As minhas crianças estavam ansiosas por ter patinhos. Eles iam esperar um mês para ter patinhos? Crianças de três anos! Vocês passam-se da cabeça! Eu não vou pedir autorização, até porque comprei com o meu dinheiro. Conversei com as crianças numa terça-feira e comprei na quarta-feira”. Era o que mais faltava vir a [conselho] pedagógico, mas pronto.
Pré_Escolar
ciclo | Pré_Escolar |
id | Rute-1 |
pof | entrevista_Rute |
keys | isolamento // desertificação // frio // serra |
Fui parar a uma aldeia de Vale de Cambra. Uma aldeia muito isolada, fiquei completamente isolada, sem condições nenhumas, mesmo para habitar com condições muito precárias… porque era uma aldeia que ficava a caminho de São Pedro do Sul, bastante já na Serra, um local muito bonito, mas que não tinha alunos. Eu tinha cinco crianças inscritas. Uma delas era deficiente, só a conhecia porque fui visitar a casa. Três delas vinham de um ponto muito longínquo, tinham que fazer um percurso muito grande e, portanto, só vinham à escola na primavera, nos dias em que estava bom; se estivesse chuva não vinham porque eram pequeninas. Se estivesse muito calor também não vinham e tinha um que era meu vizinho. Portanto, esse era o L., que nunca mais me esqueci dele, que era o meu companheiro e, portanto, foi assim um ano muito… foi um desencanto, foi um desencanto.
Pré_Escolar
ciclo | Pré_Escolar |
id | Tânia-1 |
pof | entrevista_Tânia |
tempoh | 1984 - 1985 |
keys | Banco Alimentar // solidariedade social // IPSS |
nvivo | incidentes críticos |
Um dia recebo um telefonema do Banco Alimentar - que deve ter sido criado em 1984, 1985 - e ninguém ouvia falar do Banco Alimentar. Telefonam-me e dizem: “Como a BQJB é uma IPSS - uma IPSS é uma instituição particular de solidariedade social - estaria em interessada [em participar], dado que têm famílias que precisam?”. Eu disse: “Olhe, não faço a mínima ideia o que é o Banco Alimentar, mas vou levar a reunião de direção!”. “Então nós vamos enviar os documentos todos para vocês preencherem!”. E assim foi. Depois percebi, claro. Mas houve decisões, muitas decisões, que eu tive que tomar e que não conhecia.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Tânia-2 |
pof | entrevista_Tânia |
tempoh | anos 2000 |
keys | rede pública // rede privada // requisição // MEM |
nvivo | percursos |
No ano 2000 eu concorro à rede pública. No ano 2000 eu passei a ser presidente da APEI, como voluntária. Passo a fazer parte, mais ativa, do MEM. Sou convidada para o último semestre de 2000 a dar aulas para a Universidade de Évora - numa substituição. Peço ao colégio, que sempre me fez as vontades todas. Sempre me disseram: ” Sim, com muito orgulho!“. Os donos de colégios de X. são cinco estrelas. Em 2000, o colégio passa por uma situação financeira um bocadinho complicada. Eu, o outro coordenador e alguns professores concorremos à rede pública. Tudo conversado com a direção. Se fôssemos chamados, tentaríamos de imediato continuar no colégio com uma coisa que havia nessa altura, que era ficar requisitado. Neste momento já não há muito para os privados. Há casos pontuais, com o Ministério a abrir exceções, mas nessa altura era possível. Concluindo, em 2000 eu fui colocada em Portalegre, mas nunca exerci. Portanto, não há muitas educadoras com este percurso. Eu acho que sou única. Entre 2000 e 2017, eu fui sempre concorrendo à rede pública, fui-me aproximando, fui ficando em Portalegre, depois Setúbal, depois Charneca da Caparica e o agrupamento de escolas E.T. onde efetivamente comecei a trabalhar. Mas fui sempre pedindo requisições. O Ministério, tendo em conta o meu percurso, foi-me sempre autorizando, tendo em conta que considerava que eu, no colégio, fazia falta. Estava a exercer as funções de educadora, de coordenação, porque conheciam o meu percurso. Entretanto, em 2017, o Ministério disse que eu tinha que tomar uma decisão e eu falei com a direção e disse:”Eu tenho que sair do colégio, mas também é assim, neste momento já não faço aqui tanta falta porque as equipas estão formadas. Eu posso indicar uma ou duas coordenadoras que vão assumir bem e, portanto, eu para o ano saio”. Ora, o Colégio do X. fica a cinco quilómetros do sítio onde eu estava colocada e estou colocada - no agrupamento de escolas E.T. Todos os anos eu tinha que ir lá dizer: “Continuo requisitada no Colégio do X.”. Éramos conhecidas. As educadoras conheciam-se. Isto para dizer que eu fui estando sempre muito atenta, porque eu, na verdade, era uma educadora de infância da rede pública requisitada.
ciclo | Pré_Escolar |
id | Tânia-3 |
pof | entrevista_Tânia |
keys | ajuda // cuidado // solidariedade social |
nvivo | incidentes críticos |
geo | Lisboa |
Hoje eu já não faria isso, nem recomendaria a ninguém que fizesse. Portanto, são momentos que marcam muito. Eu sabia que aquelas mães estavam em casa a dormir e os meninos estavam por lá e que elas não os levavam à BQJB. Eu combinava com as minhas colegas - algumas faziam isto mas eu era a mais arrojada - e ia lá bater à porta e dizia às mães: “Está ai a R.? Está ai a M.? Já tomou o pequeno almoço? Já está vestida?” Às vezes era só assim, de porta. Eu sabia que ela tinha estado toda a noite a prostituir-se. Eu quando falo nisto comovo-me muito. Eu sabia que era a única forma de eu poder participar em momentos mais felizes daquelas crianças, senão elas ficavam todo o dia e as mães a dormirem. Isto não aconteceu uma vez, nem duas, nem três, nem quatro. Aconteceram várias vezes. Também fazia outra coisa: a etnia cigana vendia numa grande praça, na Ajuda. Eles tinham os meninos lá, que eram os meus. Eles não tinham tido tempo de os ir deixar à BQJB. Eu fazia a recolha dos meninos também. Eu ia buscar uns e depois ia a outra rua - nós chamavamos Rua da P. - eu sabia onde é que eles estavam, porque eu sabia onde é que os pais estavam a vender. Eu perguntava [aos pais]: “Ele pode vir?” Eles têm assim algumas conceções muito próprias. Umas vezes diziam que sim, outras vezes diziam que não. A maioria das vezes diziam que sim. Os meninos também queriam ir, embora os meninos já gostassem muito de estar a vender com os pais. Era engraçado. Fosse roupa, fosse fruta, fosse pratos, panelas, eles gostavam muito de vender. Mas eu também sabia que era importante que eles fossem [à escola]. E, portanto, eu dizia: “Olhe, eu passei por aqui! Quer que eu os leve?” Lá ia eu. Ora, hoje, isso já não se pode fazer. Isto foram momentos muito, muito marcantes. Tenho muitos momentos assim, que foram fundamentais no meu percurso.