A incrível história de Gabriela de Jesus

Letra e música: Miguel Araújo

Pobre menina, tão acidentada sina
Encontrada numa esquina, numa cestinha de palha
Em Lourizela, nas traseiras da capela
Como cria de cadela, sem santinho que lhe valha

O padre Alfredo velho, cobarde e azedo
Não é tarde nem é cedo, despachou a desditosa
'Por este meio', foi na volta do correio
Numa mula sem arreio enviada pra Murtosa

A dona Otília que ninguém nem dada queria
Viu na curiosa cria, cura para a solidão
Deu-lhe uma sopa, e de alguns restos de estopa
Fez-lhe carapins e roupa e uma cama sem colchão

Ao ver aquela, tez de cravo e de canela
Deu-lhe o nome Gabriela, dava a cara com a careta
Mas sua beleza, em brasa, em chama acesa
Pegou fogo à redondeza como o bafo do capeta

E a inocente um pobre meio-rei de gente
Muito recatadamente, espairecia a sua mágoa
Com um rádio velho, boca de batom vermelho
A cantar em frente ao espelho as canções da Lena d'Água

Lobos malvados, velhos, loucos, reformados,
Mexericos, maus olhados das beatas da igreja
Mal via a hora de arrancar dali para fora
Sem deixar rasto, ir embora, ver o mundo, ver Estarreja

Sem pé de meia, teve uma brilhante ideia
Decidiu pedir boleia e só parar em Paris
Sem carteira, lá foi sem eira nem beira
E nem sequer viu a fronteira, não chegou nem a Sanfins

E em Valpaços, com alma em mil pedaços
Entreteve-se nos braços de um magala de Alcafache
Pediu boleia a um pelintra de Gouveia
Que a mandou sair em Seia e nunca mais olhou para trás

Sem armar giga, cantou-lhe uma cantiga
Deixou-a de barriga e arrancou sem dar sinal
Sem dois tostões, deu por ela aos trambolhões
Junto ao porto de Leixões, com uma filha e um ucal

Sacou dinheiro a um velho engenheiro
E escondeu-se num cargueiro que rumava à capital
Chegou-se à proa e quase achou que a vida é boa
Ao ver as luzes de Lisboa lindas como num postal

Entre destratos, desaforos, desacatos,
Varreu escadas, lavou pratos, numa tasca do Cacém
Entregou-se a um tratante de Pedrouços,
Saído dos calabouços, que a deixou sem um vintém

No Intendente, tropeçou numa vidente
Que jurou que mais à frente, a sorte havia de sorrir,
A cartomante, uma velha de turbante,
Intuiu pelo semblante um futuro a reluzir

Na luz da vela, viu a luz de Gabriela
Com direito até a estrela no passeio de Hollywood
Em poucos dias por misteriosas vias
Cumpriam-se as profecias mais certeiras que o Talmude

Nessa semana foi pra América, fez fama,
Privou com a Primeira Dama, levou a filha ao Hawai
E em Gouveia passa um louco, volta e meia
Que blasfema e cambaleia e garante que é o pai

Na Murtosa, o padre faz menção honrosa,
Festa, missa, pompa e prosa que hoje é feriado local
Em Lourizela, há uma estátua em honra dela
'Aqui nasceu Gabriela, o grande orgulho nacional'

Em Lourizela, bem de frente para capela
Para sempre Gabriela como quem diz 'ah pois é'
(E o engenheiro confere o bolso traseiro,
Vê que lhe falta o dinheiro e volta para Leça a pé)