'Palhaço lacrimogéneo'
Ai não há dúvida
vocês existem, vocês persistem
vocês existem com grémios e tribunais
medidas de segurança e capitais
plenários, mercenários, festivais
grades torturas verbenas
cativeiros de longas penas
com vistas para o mar
para matar
para matar{soc}
Palhaço lacrimogéneo capacete de aço
palhaço lacrimogéneo capacete de aço
{eoc}Vocês existem,
baionetas e chá com bolos
cooperativas, clubes de mães
concursos de gatos e cães
cães de luxo para lamber
cães polícias
polícias cães
para morder
barracas de lata para viver
trapos suor e lodo
amáveis conversas de casaca
e sobre as nossas cabeças
a matraca
a matraca
a matraca...[Refrão]
Vocês existem
bordados a ponto cruz
fazendo a guerra
sugando o povo
sorvendo a luz
com Estoris, cocktails, recepções
whisky, cascatas e rallies
trapeiras e esconsos saguões
discursos, salmão, lagosta
pão duro, desespero e crosta
e sorrisos de hospedeiras
e assassínios de ceifeiras[Refrão]
Ai não há dúvida
continuam ainda a existir
até ao raio que há-de partir
até ao raio que os há-de partir
Fernando Pais
Para o caso de ter interesse a sua publicação, envio uma ``cantiga de protesto''. Escrevo-a de memória, pode eventualmente faltar um ou outro verso.
A crise estudantil e de acentuada contestação ao regime vigente culmina em Coimbra com a greve aos exames no ano lectivo de 1968/69. A partir da visita do então Presidente Américo Tomás à inauguração do edifício das Matemáticas (17 de Abril, se não erro), sessão em que consegui então estar presente, sendo presidente da Associação o actual deputado Alberto Martins, meu colega de curso nesse ano, as coisas complicaram-se. O presidente da Associação Académica pediu a palavra, que lhe foi recusada pelo Almirante. Depois, já no exterior da sala, nos corredores do novo edifício, houve vaias e recordo-me de um outro colega nosso, africano, lhe ter chamado à sua passagem sepulcro caiado (o Almirante vestia de branco). Isto para além de outros mimos. A polícia de choque não interveio logo ali, o que teria tido consequências muito graves, talvez pelo facto do Ministro da Justiça de então, prof. da Faculdade de Direito de Coimbra Mário Júlio de Almeida e Costa), estar ali presente e ter evitado que tal acontecesse. Esta foi pelo menos a versão que correu entre os estudantes.
Uma das formas de mobilização dos estudantes passava pelo convívio em que participavam alguns dos cantores de protesto, como foi o caso de Adriano ou de José Afonso. Como diz um poeta espanhol, a poesia é uma arma carregada de futuro e os versos eram então uma das armas possíveis de combate.
A par das canções do Adriano ou do Zeca, hoje conhecidas porque delas existem registos gravados, outras eram cantadas, algumas demasiado ``fortes'' para poderem ser sequer gravadas.
Dos versos que escrevo a seguir conheci duas versões musicais: uma cujo autor ignoro e ouvi pela primeira vez em 1970, por um dos ``trovadores'' anónimos que na época apareciam e de que não existem gravações em disco e uma outra que ouvi cantar numa sessão com o então Padre Francisco Fanhais , alguns anos depois. Suponho também que Fanhais nunca chegou a gravá-la em disco (em CD muito menos, como é óbvio: ninguém sabia o que isso era).
Ouvi várias opiniões sobre o autor destes versos, que não sei identificar. Em qualquer dos casos, o estilo musical das versões que conheci não tinha raízes de Coimbra. Chamemos-lhe apenas canção de protesto.
um abraço. Fernando Pais