title: Fado gago author: Sérgio Godinho in: "As noites passadas", 1995 from: Victor Almeida Fado triste fado negro das vielas onde, agora é que são elas encomendaram-me este fado "...- Mas só se for falado..." Fado falado? Pagam bem e dão trocado o fado é pago! Mas eu que sou gago só consigo balbuciar... (melhor cantar:) Mãos caprichosas que sebosas mimoseiam a guitarra mimoseando o fado nefando que se entranha nas vielas mãos tagarelas indecentes mãos tão juntas, tão ardentes os dedos quentes insolentes só se amainam na guitarra Espera aí já percebi que entoando mesmo falando, mesmo falando se falar como que em verso não gaguejo e até converso (como as tais mãos na guitarra...) Eram assim essas mãos mãos de ferro e mãos de farra desse Chico de má-vida que (p'ra ser fiel à história) andava na boa-vida com a Glória e está bom de ver que o mulherio de Alfama que é todo de alta linhagem achava aquilo suspeito: vem de viagem esse Chico marinheiro, todo feito e vá de pendurar a âncora na varanda da pequena (Estão a ver a cena...) E está bom de imaginar (mesmo sem ver) que dentro desse lugar o que tinha a mercearia mesmo em frente tudo era transparente o Chico, quando dormia era marinheiro em terra era a paz depois da guerra, a sua Glória por isso dormiam juntos sem divisória Mãos muito sábias tantas lábias nas linhas das quatro palmas são duas almas irmanadas pelas sinas da paixão corpo na mão mão que esvoaça e amordaça a sensatez e cada vez que o fado canta esqueço tanta da gaguez Mas um dia - há sempre um dia (Moeda ao ar!) a cara e a coroa viram a sorte mudar vamos lá explicar É que o Chico, c'a memória de ter amor de mulher vez à vez, em cada porto não cuidou de amar a Glória foi-se à fruta no pomar deixou a planta no horto ou seja: resolveu catrafilar toda a mulher que passava na rua por onde a Glória - e aqui vai mas desta história - espreitava Ah! Que a Glória é mulher tesa... quando viu o Chico rua abaixo, rua acima atracado a uma 'pirua' uma garina de resto bem conhecida daquelas que faz p'la vida e ela toda pimpante e ele todo galante Veio-lhe à boca o ciume e a navalha foi lume brilhando de raiva todo este bairro, que saiba que os dois que ali vão vão ter de morrer ai, vai correr muito sangue eu esfolo, estrafego eu pego nos dois atiro as carcaças ao rio e nem olho p'ra trás tudo isto faz alarido e o Chico já ferido só tenta dizer: - Glória, que fazes? Que morro sem quase ter tempo de me arrepender dá-me uma oportunidade e nesta cidade eu prometo ser teu eu quero morrer no mar alto e depois ir p'ró céu Mãos homicidas amanticidas assim eram se não fosse o olhar doce por um instante desse homem tão inconstante mãos que da Glória têm o nome e em seu nome vão amar eu fico gago com o afago que essas mãos souberam dar E o afagar dessas mãos já desenha na pele a promessa futura - Jura, vá jura que és todo meu 'té ao fim todo, todo de mim - Glória, vou desembarcar dessa vida em que andava à deriva no amor - Chico, os meus braços de mar dão-te abrigo e calor E assim acaba esta história o Chico e a Glória está bom de se ver ambos com vidas atrás vão atrás de uma vida em que é tudo viver quem fala assim não é gago (não quero voltar a um assunto encerrado) mas... digam-me lá se eu não sou gago e canto o fado htmlnota: Foi composta para o espectáculo "Fados" de Ricardo Pais e tem como fontes inspiradoras o "Fado Falado" de Villaret e o "Fado Mal Falado" da Hermínia Silva. faz parte do álbum gravado ao vivo no S Luís e no no Coliseu dos Recreios, "As Noites Passadas", edição de 1995