title: Como um sonho acordado author: Fausto in: "Por este rio acima"; gravado em 82 from: José João Como se a Terra corresse Inteirinha atrás de mim O medo ronda-me os sentidos Por abaixo da minha pele Ao esgueirar-se viscoso Escorre pegajoso E sai Pelos meus poros Pelos meus ais Ele penetra-me nos ossos Ao derramar-se sedento Nas entranhas sinuosas Entre as vísceras mordendo Salta e espalha-se no ar Vai e volta Delirante Tão delirante É como um sonho acordado Esse vulto besuntado A revolver-se no lodo A deslizar de uma larva Emergindo lá no fundo Tenho medo ó medo Leva tudo é tudo teu Mas deixa-me ir Arrasta-me à côncava do fundo Do grande lago da noite Cruzando as grades de fogo Entre o Céu e o Inferno Até à boca escancarada Esfaimada Atrás de mim Atrás de mim É como um sonho acordado Esses olhos no escuro Das carpideiras viúvas Pelo pai assassinado Desventrado por seu filho Que possuiu lascivo A sua própria mãe E sua amante Meu amor quando eu morrer Ó linda Veste a mais garrida saia Se eu vou morrer no mar alto Ó linda E eu quero ver-te na praia Mas afasta-me essas vozes Linda Tens medo dos vivos E dos mortos decepados Pelos pés e pelas mãos E p'lo pescoço e pelos peitos Até ao fio do lombo Como te tremem as carnes Fernão Mendes htmlnota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto Como um sonho acordado "Embarcado num jurupango, com o Mouro Coja Ale, feitor do capitão de Malaca, fomos surgir no rio de Parles no Reino de Quedá. Nesse tempo, estava o rei celebrando com grande aparato e pompa fúnebre as exéquias da morte de seu pai, que ele matara às punhaladas para casar com a sua mãe que já estava prenhe dele. Para evitar murmurações mandou lançar pregão que sob gravíssimas mortes ninguém falasse no que já era feito. Mas Coja Ale era de sua natureza solto de língua e muito atrevido em falar o que lhe vinha à sua vontade. E foi assim que preso por soldados fui chamado ao rei e olhando para onde ele me acenava, vi jazer de bruços no chão muitos corpos mortos todos metidos num charco de sangue. Entre eles o mouro Coja Ale. Por mais de uma grande hora estive como pasmado, debaixo de abano, sem poder falar, arremessado aos pés do elefante em que el-rei estava. Depois de perdoado pelas lamentações e desculpas toscas, mas que vinham ao momento muito a propósito, me fiz à vela muito depressa pelo grande medo e risco de morte em que me vira".