title: A chusma salva-se assim author: Fausto in: "Crónicas da terra ardente" from: Luís Quinta Já anda a gente do mar a fazer fardos e trouxas arrombando porões a roubar arcas e caixões e abandonam as mulheres os filhos desamparados que choram muito assustados sem outra consolação que uns abraçados com outros incham das águas aos poucos dos tragos salgados da morte imploram a Deus outra sorte às arfadas aos arrancos em prantos e às golfadas e uns se afogam de vez deixando-se ir ao fundo e se entregam assim ao sono mais profundo outros gritam aos céus pela absolvição e se enforcam depois com suas próprias mãos perneando com a morte as pernas descarnadas feitas em rachas em lanhos e tão estilhaçadas que por esta parte em destroços lhes vão caindo os tutanos dos ossos e sem saberem nadar sem a nau sem tábua nem pau vai o mundo adornar cai ao mar cai ao mar Daquela assada do barco constroem seu salvamento amarrou-se a gente ao troço p'la cintura p'lo pescoço indo assim tão carregada ferem com facas e lanças as mulheres as crianças que se aferram à jangada mas rezam avé-marias padre-nossos litanias p'las almas dos mutilados que p'ra ali são abandonados às arfadas em arrancos em prantos e às golfadas cheio vai o batel e quase a afundar p'ra alijarem a carga botam gente ao mar engole uma vez de vinho e da marmelada um bocado o pobre de um marinheiro mesmo antes de ser lançado deixou-se então atirar com os braços cruzados e se ofereceu todo à morte tão quieto e calado e o piloto logo abençoou os seus dois filhos que ele próprio lançou e sem saberem nadar sem a nau sem a tábua nem pau vai o mundo a adornar cai ao mar cai ao mar Pequena era a tua filha e não a quiseram salvar ficou ao colo da ama no barco grande a afundar suplicas da jangada enfim ergues teus braços de mãe mas não te escuta ninguém a chusma salva-se assim Gaspar Ximenes calado não chores alto cuidado tu chora só no coração ou também vais como o teu irmão às arfadas aos arrancos em prantos e às golfadas passam dias a fio à pura fome e sede E há quem vá tragando urina e morra do que bebe outros da água salgada falecem dos sentidos gritando sempre por água lançam-se ao mar ressequidos vai-se o soldado e o china não fica dor nem mágoa botou-se Estêvão mulato com a mesma sede de água e na tarde daquela aridez atirou-se o padre e o piloto outra vez e sem saberem nadar sem a nau sem tábua nem pau vai o mundo a adornar cai ao mar cai ao mar htmlnota: História Trágico-Marítima "Carregada a nau no fundo do mar por cobiça e cuidando então que fosse ao fundo por quão rota e aberta ia, começaram por confessar-se sumariamente a alguns clérigos, sem tino e sem ordem, que o confessor chega a tapar a boca ao alienado que vai gritando alto os seus pecados. E a gente do mar, por natureza inumana e mal inclinada, embarcava em jangadas que construíam , roubando e destruindo tudo, e defendendo as embarcações dos quais que as vinham demandar, à força das espadas e de safanões. Foi o espectáculo deste dia o mais triste e lastimoso que se podia ver. E aquela gente toda aos arrecifes agarrada, e que a maré enchendo os afogava, bradavam pelos do batel e das jangadas nomeando muitos por seus nomes, toda a noite num perpétuo grito tamanho que penetrava os céus. "