S�RGIO GODINHO

ESCRITA EM DIA

�Chega-te a mim/
mais perto da lareira/
vou-te contar/
a hist�ria verdadeira�,

in �Fotos do Fogo�

Em Abril de 1971 S�rgio Godinho entra no Strawberry Studio, em Chateau d'H�rouville, para gravar um dos �lbuns que iriam mudar o rumo da m�sica em Portugal, �Os Sobreviventes�. Agora, estamos em 1996, exactamente 25 anos depois, e S�rgio Godinho recebe o Pr�mio Carreira, atribu�do pela Redac��o do BLITZ. Hoje � noite, no Coliseu dos Recreios de Lisboa, quando se fechar o pano sobre a segunda edi��o dos BLITZ -- Pr�mio de M�sica, os sons que ficar�o a flutuar ser�o os de uma can��o de Godinho. A que ele quiser. Mas enquanto n�o anoitece podemos -- lendo a longa entrevista que aqui vem a seguir -- perder-nos pelas palavras constru�das como �castelos de areia�, por recortes de sabedoria, por uma experi�ncia de vida que pass�mos em revista com o �escritor de can��es�. Uma vida de poesia e de m�sica -- poesia da melhor que a m�sica portuguesa j� alguma vez viu, m�sica que abriu um caminho pr�prio e ajudou a abrir a de outros (podemos falar dos Trovante, mas tamb�m, como exemplos mais recentes, dos Sitiados e de Pacman, dos Da Weasel) --, coerente nas suas convic��es pol�ticas e com o olhar na liberdade e na paix�o. S�rgio Godinho reage ao que observa. Pega na arma que melhor conhece e aponta, a caneta (a outra arma perferida, a viola, andou algo perdida nos �ltimos anos). Armadilha o universo das can��es de palavras-bomba. Atinge cora��es. Atinge o corpo. Canta o amor. Canta a fantasia. Canta a pol�tica. Canta o quotidiano. Procurou uma voz na m�sica e, dizemos n�s, encontrou-a num primeiro de muitos dias. Chamar-lhe �O Sobrevivente� seria, de facto, dizer muito pouco. Est�o a passar nesta altura 25 anos sobre a grava��o, em Fran�a, de �Os Sobreviventes�. Diga-nos o que o levou � grava��o desse �lbum: o apoio de pessoas como o Jos� M�rio Branco, por exemplo?
Por um lado essa hist�ria dos 25 anos � curiosa porque n�o ligo �s efem�rides. Mas � engra�ado; n�o � aquela recusa, mas at� parece que j� morri. Sabes como �... Mas estamos a falar de �sobreviventes�, n�o �?
Sa� de Portugal em 65, vivi v�rios anos em diferentes pa�ses. Nessa altura at� estava no elenco do �Hair�, em Paris. E estive no Living Theatre num intervalo do �Hair�, em 70, no Brasil. O �Hair� era um musical aut�nomo. Nessa altura compunha muito em franc�s porque tinha um grande problema de encontrar uma voz pr�pria em portugu�s. Tudo aquilo que fazia soava a alguma coisa que j� conhecia, nomeadamente ao Zeca Afonso... Da� ter come�ado a compor em franc�s porque isso me distanciava. N�o quer dizer que tenha encontrado uma voz pr�pria em franc�s, mas estava bastante interessado na l�ngua francesa. Era o pa�s onde vivia. Na l�ngua inglesa tamb�m, naturalmente. Entretanto, conheci o Z� M�rio Branco, o Lu�s C�lia. Houve uma altura em que comecei a sentir a necessidade imperiosa de encontrar essa voz pr�pria. As palavras pr�prias. A maneira de encaixar as palavras com a m�sica. Foi na sequ�ncia de v�rias experi�ncias um pouco extenuantes e vivenciais, etc, que encontrei essa necessidade de escrever em portugu�s. E curiosamente n�o tinha tanto a ver com o esp�rito da �poca, do que se passava em Paris, mas sim com a minha liga��o com Portugal. Tinha a ver com o encontrar atrav�s das palavras da minha l�ngua essa liga��o com a minha terra. De repente, metade do �lbum �Os Sobreviventes� apareceu. Foi assim uma esp�cie de empolgamento criativo que resultou em termos de eu finalmente encontrar um caminho. Depois, o que me aconteceu foi que tinha mais can��es do que era preciso -- nunca compus muito mais, nunca fui daquelas pessoas do g�nero de ter trinta can��es para depois escolher doze para um disco. Fiz as can��es do �lbum num per�odo relativamente curto de tempo. H� para a� duas can��es que s�o vers�es portuguesas e que estavam originalmente escritas em franc�s. Mas, depois, n�o havia ningu�m em Fran�a para nos editar. Digo �nos� porque o Z� M�rio j� vinha de outras experi�ncias e escrevemos para o Arnaldo Trindade -- para quem mais tarde gravei dois discos, �Pano Cru� e �Campolide� --, que n�o se mostrou muito interessado. Escrevemos para a Sassetti, mand�mos as fitas, e eles disseram imediatamente que queriam editar o disco, estavam interessad�ssimos. Deram-nos muito boas condi��es. O Z� M�rio foi um c�mplice e parceiro nestas coisas, embora os arranjos do disco n�o tenham a assinatura dele porque n�o fez arranjos, mas esteve l� durante a grava��o do disco e foi um ouvido muito atento em rela��o a certas op��es que foram feitas nessa fase da cria��o. Mas nota-se mais a m�o do S�rgio nos dois primeiros �lbuns do Jos� M�rio Branco que o contr�rio...
O meu peso em rela��o ao Z� M�rio s�o as quatro letras que h� no primeiro disco e as duas do segundo e tamb�m uma maneira de pegar na palavra que depois desenvolveu e que tinha a ver com coisas que n�s viv�amos juntos. Em rela��o a mim, tinha um caminho que n�o era muito elaborado musicalmente. Eu estava mais interessado numa forma��o base que tivesse bateria, embora nem sempre tratada como bateria pop-rock. �s vezes com vassouras, outras vezes de outras maneiras, como � o caso de uma can��o chamada �Farto de Voar�... Que � muito rock progressivo...
�. Os m�sicos com quem toquei s�o m�sicos de forma��o rock. O �Mar� Alta� � um rock puro, com muita guitarra el�ctrica. Porque o rock tamb�m foi muito a minha forma��o. Depois de �Os Sobreviventes� a influ�ncia do rock � quase nula. Nesse disco, pelo contr�rio, h� sintetizadores em �Farto de Voar�, h� o solo de guitarra el�ctrica no �Mar� Alta�... Isso depois vai desaparecendo...
N�o acho que tenha desaparecido. O baixo el�ctrico e a bateria est�o presentes. H� uma can��o do per�odo, digamos mais duro, do PREC, que � a �Liberdade� -- �A Paz, o P�o, Habita��o...�. � rock puro. Sempre me relacionei com um certo tipo de batidas e depois juntar isso com as sonoridades da guitarra ac�stica, do baixo el�ctrico, da bateria. Fazer disso uma base. � evidente que, depois, o piano come�ou a adquirir uma preponder�ncia que n�o tinha ao princ�pio, como base. Nunca mais deixei de tocar com teclistas porque achei que certas can��es tinham que ter um certo tipo de base. O piano faz parte do meu imagin�rio musical e � uma sonoridade que a mim me d� possibilidades de partir para outras coisas e tamb�m de largar a guitarra. No fim de contas tamb�m tem a ver com a maneira como desenvolvemos as coisas ao vivo. A nossa �personna� de palco. Sempre senti o rock como um primo que �s vezes est� perto e �s vezes est� afastado. N�o � a minha �nica influ�ncia mas � com certeza uma das influ�ncias primordiais. O teatro, a forma teatral como a m�sica � cantada, como s�o colocadas as palavras... H� essa influ�ncia �bvia do Living Theatre logo em �Os Sobreviventes�...
H�, e do �Hair�, e sobretudo de uma forma��o teatral que comecei a ter muito cedo, no Teatro Universit�rio do Porto, ainda com o Ant�nio Pedro. As can��es do teatro, nomeadamente de Kurt Weil, sempre foram algo de bastante pr�ximo. Tamb�m a can��o francesa de Brel, por exemplo. H� alguma coisa do teatro musical portugu�s?
� engra�ado, cresci numa �poca em que havia preconceitos em rela��o � m�sica portuguesa que se fazia, alguns preconceitos justificados e outros que tinham um bocado a ver com um certo deserto criativo e com preconceitos que a minha gera��o tamb�m tinha. Mas gostava muito do som das can��es mais antigas que os meus pais cantavam, de revista -- tinham tudo a ver com o ambiente teatral --, porque achava que essas, sim, tinham uma maneira de se cantar em portugu�s. Achava que era muito consent�nea com a palavra portuguesa, que se encontravam formas engra�adas e havia jogos de palavras interessantes. A tal quest�o de que a l�ngua portuguesa pode ou n�o ser feita para ser cantada.
Exacto. Ali�s, em rela��o a �Os Sobreviventes�, foi conscientemente uma aposta de fazer fluir a l�ngua portuguesa. Por um lado isso surgiu naturalmente, por outro foi uma resposta a coisas que se diziam na �poca, tipo �s� a l�ngua inglesa � que singrava�. Ainda se diz, embora julgue que j� n�o se diz tanto. Hoje em dia parece-me que tem mais a ver com a quest�o de copiar f�rmulas estrangeiras do imagin�rio sonoro que se traduzem tal e qual para portugu�s e depois n�o resultam. Mas julgo que o preconceito foi destru�do desde h� muito tempo. E teve v�rias fases de destrui��o. A fase de aparecimento do Rui Veloso foi uma das fases de destrui��o desse mito. Um certo rock portugu�s. Ningu�m acha que os Xutos soem a falso. Ao contr�rio de outros cantores e compositores da sua gera��o -- Jos� M�rio Branco, Fausto, Jos� Afonso --, o S�rgio s� muito pontualmente vai buscar esquemas da m�sica tradicional portuguesa. Na obra deles s�o mais vis�veis as chulas, os malh�es, a m�sica alentejana e por a� fora... O S�rgio s� muito pontulmente usou os malh�es, as marchinhas, assim como a m�sica portuguesa urbana, o fado. Como � que o S�rgio se d� com a m�sica tradicional portuguesa?
Mas a sua influ�ncia sente-se em v�rios discos, sentem-se alguns ritmos tradicionais portugueses como ponto de partida. Por exemplo, em �Cuidado com as Imita��es�, esse g�nero de coisas. Ou no �L� Isso ɻ em que os Sitiados agora pegaram. S� que eles s�o muito transmutados em batidas que surgem, a�, com influ�ncias do rock... Mas tratava-se tamb�m de reinventar algo de novo, reinventar uma m�sica urbana que pegasse nessas influ�ncias todas. No Porto, onde vivi antes de ir para o estrangeiro, n�o havia uma tradi��o de fado, embora haja casas de fado. � uma cidade fortemente urbana, muito dura, e que tem algo a ver com as cidades do Norte da Europa. � como se esse norte tivesse desenhado uma esp�cie de linha invis�vel. Entre as segundas cidades de cada pa�s, n�o as capitais. � tamb�m uma cidade fortemente industrial, uma cidade onde se fazia bastante m�sica, m�sica de garagem. E as minhas influ�ncias principais eram um certo tipo de m�sica brasileira que estava a aparecer, nomeadamente Chico Buarque e Caetano Veloso -- o Chico j� tem uma influ�ncia urbana forte. A can��o do teatro, uma certa can��o francesa e Beatles, Stones, Bob Dylan. Foi a m�sica que me formou. Al�m da forte componente po�tica que sempre me acompanhou porque conheci a poesia desde muito novo. A minha av� tinha um programa de r�dio onde dizia poesia. Era uma coisa que, de certo modo, me estava um bocado no sangue. E tentava-se um bocado reinventar qualquer coisa de novo na can��o urbana. Nunca me relacionei, embora tenha feito experi�ncias espor�dicas, com a can��o rural, mas sempre tive uma grande admira��o... Ia muito ao Minho, conhecia muito a can��o do Douro, de Tr�s-os-Montes, gostava disso. Depois veio a influ�ncia de Ant�nio Mafra, que � uma can��o de raiz p�cara mas em que h� uma componente rural e ao mesmo tempo uma componente urbana no contar das hist�rias. Para mim era um universo em que eu captava elementos daqui e dali e fazia a minha s�ntese. Uma das raz�es porque me relacionava muito com os Beatles era o facto de eles terem muito aquela vertente de cidade n�o capital. Dos tipos que v�o construir assim uma coisa um bocado �rough�, um som um bocado �duro�, que os Stones tinham tamb�m, embora a influ�ncia dos Stones fosse mais do blues americano. Mas era um som que tinha essa componente de cidade n�o capital, e que me formou muito. Nunca tive nenhum preconceito, sempre fui uma pessoa muito ecl�ctica e aberta a todo o tipo de m�sica. H� o clich� de que em todos os g�neros h� boa e m� m�sica. O facto do aparecimento do Zeca... H� uma coisa em rela��o ao Zeca com que eu embirrava, era o fado de Coimbra, um g�nero que me causava uma certa alergia. Entre as pessoas do Porto e as de Coimbra h� um certo antagonismo ao n�vel do imagin�rio e eu achava que o fado de Coimbra era um bocado caduco, defendia valores um bocado machistas. Ainda hoje h� aquela pol�mica das raparigas a cantarem o fado de Coimbra. E h� aquela velha rivalidade hist�rica decorrente do facto de o Porto s� ter come�ado a ser a segunda cidade do pa�s no s�culo XIX...
Mas tenho feito bel�ssimos espect�culos em Coimbra. Ali�s, vou l� dentro de pouco tempo. E tenho uma grande simpatia por Coimbra. Mas, a n�vel de g�nero, de repente, o Zeca aparece precisamente com uma linguagem sa�da do fado de Coimbra e que ia buscar outras coisas muito frescas. Ele at� me fez repensar muitas coisas sobre Coimbra e o imagin�rio coimbr�o. Mas o Jos� Afonso foi dos poucos que evoluiu do fado para outras coisas, assim como, na guitarra, o Carlos Paredes. O Adriano Correia de Oliveira tamb�m mas j� n�o tanto.
Acho que � importante manter essas ra�zes mas � um facto que se n�o h� rupturas em rela��o a isso n�o h� evolu��o. Claro que o Zeca tem uma outra influ�ncia, que � a m�sica africana. Mas � um facto que ele protagonizou essa ruptura, tem outras matrizes que procura na can��o. Falando de outro tipo de influ�ncias no in�cio da sua carreira. O S�rgio teve uma forma��o acad�mica nas �reas da psicologia e filosofia...
N�o estudei filosofia. Estive dois anos a estudar psicologia, em Genebra, com o Piaget. Quero dizer, o Piaget ia l� duas vezes por semana. Era engra�ado porque a maioria dos alunos ia de carro, eu n�o, mas havia muitos meninos de bem e o Piaget ia de bicicleta com os livros amarrados atr�s... Essa forma��o influenciou-o na maneira de ver as coisas?
N�o. Acho que ser� ao contr�rio. Fui para psicologia porque essa maneira de ver as coisas pr�-existia e me agradava. Essa hist�ria est�-me um bocado encravada porque, nessa altura, o que eu queria realmente era estudar cinema, mas fui para psicologia por causa de uns tipos que conhecia e que estudavam em Genebra. Entretanto, tinha estado a perder tr�s anos da minha vida a estudar economia, dos 17 aos 20 anos. Isso foi uma total perda de tempo e n�o foi muito rico em termos vivenciais. E, apesar de tudo, era uma coisa que me agradava, pelo menos os temas que iria desenvolver. Fui para Genebra um bocado por acaso, n�o por causa do Piaget, mas porque era uma escola reputada. Mas � evidente que, no segundo ano -- o primeiro correu bem --, estava muito desperto a tudo, era a primeira vez que vivia sozinho, num pa�s estrangeiro, com coisas a acontecerem � minha volta, n�o s� a n�vel vivencial mas tamb�m cultural. Foi l� que vi o Jacques Brel pela primeira e �nica vez, ao vivo. No segundo ano entrei em crise, porque comecei a chegar � conclus�o que aquilo que fizesse tinha que ser no campo das artes. E ainda a� n�o havia uma op��o determinada para a m�sica. Interessavam-me muito o teatro e o cinema, interessava-me a m�sica. Mas n�o tinha uma op��o determinada. Sabia que teria de ir visitar outras coisas, tinha de partir � aventura. Estava muito agarrado a toda aquela no��o da partida, �on the road�, do livro de viagens. Sabia que isso tinha de acontecer na minha vida. Parti, fui trabalhar num barco e fui parar �s Antilhas, andei � boleia pela Europa toda. Acabei por aterrar em Paris um bocado por acaso, porque encontrei pessoas interessantes. Isto para dizer que a psicologia foi uma passagem um bocado epis�dica na minha vida. N�o foi nada que tivesse transformado o meu destino. O que o transformou foi ter-me sentido sozinho e ter sentido a necessidade de correr mundo. Voltando a'�Os Sobreviventes� e ao �Hair� pode dizer-se que as tend�ncias libert�rias deste musical se reflectiram no seu disco?
Digamos que era esse o ar da �poca que se respirava. Na altura, tinha uma consci�ncia pol�tica bastante determinada. Era completamente contra o regime que havia em Portugal. Era j� refract�rio. N�o ia fazer o servi�o militar, n�o ia � guerra. Era totalmente contra isso mas nunca estive ligado a nenhum partido pol�tico. Era muito vivencial e estava muito ligado a correntes que eram extra-nacionalistas e extra-nacionais. Acho que isso se sente muito n'�Os Sobreviventes� e tamb�m no �Pr�-Hist�rias�. O �Pr�-Hist�rias�, quanto a mim, era um �lbum mais solto. Talvez tenha tido a necessidade de tocar uma paleta menos densa que n'�Os Sobreviventes�... Esse �ar� do tempo passa por psicadelismos que se sentem em can��es como �Farto de Voar�, que fala mesmo disso: �farto de voar, pouso as palavras no ch�o�. Quer dizer, quando a cabe�a anda muito l� por cima, � preciso parar. �A Noite Passada�, do �Pr�-Hist�rias�, � uma alucina��o em tr�s tempos. Ou pode ser um sonho.
Pode. N�o gosto de especificar essas coisas. Sejam os estimulantes artificiais quais forem, n�o gosto muito de especificar. A n�o ser que a can��o fale especificamente disso, n�o gosto de dizer qualquer coisa do g�nero �estava dentro de um carro ou estava charrado, ou tinha tomado um �cido�. Acho que as leituras t�m de ser abertas e cada qual interpreta como muito bem entende. Inclusivamente, admito interpreta��es absurdas. H� depois v�rias can��es que permitem essa interpreta��o da alucina��o ou, pelo menos, de um estado alterado. Falou-se muito disso por alturas do �Com um Brilhozinho nos Olhos�.
O �Com um Brilhozinho nos Olhos� � uma can��o em que o contador passa a ser outro. Digamos que � um exerc�cio em que h� v�rios contadores da hist�ria. Que � �encontrei uma pessoa no princ�pio, escancaraste a porta do bar�, depois essa pessoa passa a dizer que est� contente por ter um novo amor e passa a ser ela a protagonista. Depois, �Ent�o, o que � que foi que ele disse?� j� � outro protagonista. � um jogo de narra��es paralelas. O conte�do � fundamentalmente l�dico. No �Pr�-Hist�rias� h� aquela can��o chamada �Barnab� em que digo �o que � que tem o Barnab� que � diferente dos outros?� e, � muito engra�ado, uma vez vieram ter comigo, por alturas da primavera marcelista, e disseram �ah, ent�o o Barnab� � o Marcelo Caetano�, isto quando eu era radicalmente contra o Marcelo Caetano. Ainda por cima estando no estrangeiro e tendo uma postura um bocado radical, etc, nunca senti sequer qualquer efeito da primavera marcelista e nunca podia sequer achar que poderia estar a fazer a apologia do Marcelo Caetano. Na m�sica �A Noite Passada� tem aquele poema impressionante de �encontrei-te num castelo de areia(...) disseste-me fui gaivota e sou sereia/ Ri-me de ti, "ent�o porque n�o voas"/ tu olhaste, abriste a janela e voaste�. Uma pessoa como o S�rgio -- que d� a ideia de ser muito sonhador mas com uma grande consci�ncia da realidade -- acredita que � possivel �viver em castelos de areia�, �voar� e �ser-se arrastado por uma viola-irm�?
Acredito nisso tudo. Sou fundamentalmente, por um lado, um sobrevivente e, por outro lado, um conhecedor de ilus�es. Conhe�o as minhas esperan�as e renovo-as sistematicamente. Posso ter per�odos em que estou em baixo, mas recome�o sistematicamente a acreditar nas coisas e n�o tenho um sentimento nada passadista em rela��o �s coisas. De qualquer maneira, penso que h� tr�s tempos de uma felicidade amorosa. As minhas can��es podem ser can��es felizes em que uma certa amargura se transforma em sabedoria e h� muitas can��es que falam do fim dos amores. Lembro-me que quando comecei a escrever essa can��o, no Brasil -- estava l� com o Living Theatre -- quando estava numa praia na Ba�a e h� coisas que s�o, �s vezes, aned�ticas, e depois se transformam numa coisa muito mais s�ria. Esse verso, �tu olhaste, abriste a janela e voaste� foi inspirado numa anedota. Depois tiras-lhe a coisa jocosa e podes transformar isso em algo diferente... Muitas vezes as matrizes s�o comuns a tanta coisa diferente. Podes pegar numa can��o que teve um come�o de imagin�rio perfeitamente banal... Tamb�m gosto disso porque � o concretizar de qualquer coisa imposs�vel e, acho que sim, que � poss�vel concretizar. Devido ao enquadramento pol�tico e social em que a can��o surge, mesmo sendo indiscutivelmente uma can��o de amor, o �abrir a janela e voar� pode ser interpretado politicamente. Ou seja, mesmo as can��es de amor podem ser lidas numa �ptica pol�tica.
Essa foi uma interpreta��o que fizeram na altura e que eu n�o renego. As duas coisas n�o se confundem? Nos seus primeiros dez anos de carreira n�o se confundem muitas vezes as can��es de amor com can��es de interven��o pol�tica? Teve, obviamente, as can��es de amor, as de interven��o, as do quotidiano e as can��es em que essas coisas todas se confundem.
Tenho um problema com essa coisa das defini��es. Essa hist�ria de m�sica de interven��o... Sempre recusei esse ep�teto porque acho que s�o can��es mais com um quotidiano pol�tico, mas parece-me que esse termo de �interven��o� acabou por n�o significar nada. Houve uma altura em que falaram de mim como um poeta do quotidiano... Que recusou.
S� recusei porque acho que sou incapaz de me ater ao quotidiano, uma vez que pego em elementos do quotidiano precisamente para os transmutar e para fazer deles uma coisa em que h� simbolismos evidentes que nascem de clich�s do quotidiano. Podem dizer �precisamente por isso � que � um poeta do quotidiano�, porque ao politizar o quotidiano o estou a transformar. Mas o quotidiano � apenas um ponto de partida para desenvolver uma outra fantasia. Quando come�o com uma coisa muito realista imediatamente dou voltas a esse clich� realista. N�o me considero de maneira nenhuma um realista. O quotidiano, para mim, nunca � um ponto assente. Mas s�o hist�rias? Isso podemos dizer?
S�o hist�rias ou s�o narra��es. S�o narrativas. Muitas vezes n�o s�o hist�rias com princ�pio, meio e fim. Ou s�o, mas n�o necessariamente por essa ordem, como dizia o Godard.
Exactamente. S�o narrativas ou exposi��es de personagens. Sem d�vida que h� muitos personagens e sem d�vida que, muitas vezes, quando falo na primeira pessoa n�o sou eu. Penso que isso � �bvio. Quero dizer, h� os casos �bvios de uma mulher, �disseram-me um dia "Rita p�e-te em guarda"�, mas h� os outros menos �bvios. Penso que o elemento autobiogr�fico se mistura de uma maneira mais subtil que nem sequer, muitas vezes, � quando estou a falar na primeira pessoa. Acha poss�vel editar um livro seu de poemas? S� poesia, sem qualquer base musical?
Acho poss�vel, claro. Inclusiv� tenho poemas que n�o fiz para m�sica. N�o tenho assim para um grande livro, mas fui fazendo. H� coisas que fa�o e que n�o seriam nem s�o para serem musicados. Isso poder� acontecer, at� tenho coisas er�ticas que n�o podem ser mostradas...